Miguel A. Altieri e Parviz Koohafkan
Em todo o mundo, as paisagens moldadas especificamente por fatores biológicos e culturais integram sistemas agrícolas únicos e têm sido criadas, formadas e mantidas por gerações de agricultores e criadores, utilizando os recursos naturais localmente disponíveis e um manejo ambientalmente adaptativo. Essas agropaisagens engenhosas, baseadas no conhecimento e na experiência local, refletem a evolução dos vários grupos humanos, no que se refere à diversidade de seus conhecimentos e sua profunda relação com a natureza. Além disso, elas preservam uma biodiversidade agrícola de importância mundial. Os sistemas locais de conhecimento geraram ecossistemas resilientes que fornecem múltiplos bens e serviços que garantem a segurança alimentar e os meios de vida de milhões de pessoas no mundo.
Buscando preservar e apoiar os sistemas do patrimônio agrícola mundial, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO, na sigla em inglês), com o apoio do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês), do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida) e de outras agências internacionais, iniciou a gestão da conservação e da adaptação dos Sistemas Agrícolas Engenhosos do Patrimônio Mundial (Sepam).
O objetivo da iniciativa é estabelecer as bases para o reconhecimento internacional dos Sepam, contribuindo para sua conservação dinâmica e o manejo adaptativo de sua biodiversidade agrícola. Os locais designados Sepam abrangem um excepcional conjunto de patrimônios agrícolas em muitos países e regiões do mundo, sendo baseados em sistemas agrícolas tradicionais que podem ajudar a aumentar a produção de alimentos e melhorar os meios de vida rurais, contribuindo de forma significativa para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, bem como na luta contra a fome e a pobreza.
CARACTERÍSTICAS EXCEPCIONAIS, PROPRIEDADES EMERGENTES E SERVIÇOS DOS SEPAM
Os sistemas agrícolas tradicionais que prevalecem nos locais onde se encontram os Sepam representam sistemas bioculturais com características de importância local e global:
- São geralmente ricos em biodiversidade agrícola, que pode ser observada tanto nos campos de cultivo quanto na paisagem, formando a base dos sistemas de produção de alimentos. Os locais em que se situam os Sepam compreendem paisagens rurais que não sofreram fragmentação nem homogeneização pela modernização agrícola.
- Os Sepam se mantêm graças a agentes inovadores – indígenas e camponeses – que têm amplo conhecimento da complexidade dos sistemas ecológicos locais. Entre esses agentes inovadores, destacam-se as mulheres, que são as detentoras de muitos dos conhecimentos tradicionais e, sendo assim, desempenham um papel fundamental na conservação e no uso da biodiversidade.
- São sistemas de manejo de terras, água e biodiversidade que oferecem lições de sustentabilidade para os sistemas agrícolas modernos. Eles reúnem diversas culturas fundadas na compreensão do meio natural com vistas a aumentar a resiliência e a sustentabilidade dos sistemas agrícolas.
- As paisagens diversificadas dos Sepam contribuem substancialmente para os modos de vida e a segurança alimentar local e nacional. As pequenas propriedades que produzem grãos, frutas, vegetais, forragem e produtos de origem animal na mesma área são muito eficientes em termos de produção total. O desempenho dos sistemas agrícolas diversificados pode ser de 30 a 60% maior do que o das monoculturas. Esses sistemas tradicionais correspondem pelo menos a 30% das 350 milhões de propriedades da agricultura familiar responsáveis pela produção da metade da oferta mundial de alimentos.
- Os Sepam têm demonstrado resiliência e solidez para lidar com as mudanças ambientais e climáticas. Muitas das práticas tradicionais, como a diversificação, amortecem os efeitos da variabilidade do clima sobre os agroecossistemas. A diversidade agrícola amplia a capacidade de complementaridade e de compensação, permitindo que os agroecossistemas continuem a funcionar mesmo diante das mudanças ambientais.
- Os serviços ecossistêmicos prestados pelos Sepam incluem a regulação hídrica e do microclima, serviços estéticos e culturais, assim como de subsídio à fertilidade do solo e à polinização de culturas. O manejo de uma agricultura diversificada em paisagens heterogêneas cumpre funções cruciais nas bacias hidrográficas, como a manutenção da qualidade da água e a regulação de seu fluxo, a recarga dos aquíferos subterrâneos, etc.
Em sistemas socioecológicos complexos, como os Sepam, a biodiversidade agrícola e a diversidade cultural são mutuamente dependentes e se reforçam. A estabilidade e a capacidade de fornecer bens e serviços dos sistemas ecológicos Sepam dependem principalmente das comunidades rurais, que apresentam diferentes formas de organização social e de governança responsáveis por regular os modos de produção, a organização do trabalho, as tecnologias e práticas empregadas.
RELEVÂNCIA MUNDIAL E BENEFÍCIOS
Os Sepam proporcionam muitos bens e serviços: a biodiversidade e a conservação do ecossistema; a regulação dos ciclos de água, carbono e nitrogênio; a conservação e a restauração do solo e da água; o sequestro de carbono e a regulação do clima (micro e macro); e a capacidade de recuperação e adaptação à variabilidade climática, a pragas e a surtos de doenças. Muitos Sepam estão localizados em importantes centros de origem e de diversidade de espécies domesticadas de plantas e animais.
A riqueza e a amplitude dos conhecimentos e da experiência acumulada no manejo e no uso dos recursos naturais têm importância mundial e devem ser preservadas, permitindo-se também que evoluam. Essas paisagens agrícolas se caracterizam por inovações tecnológicas e culturais contínuas, que são transferidas entre gerações, mas também por meio do intercâmbio com outras comunidades e como resposta a eventos naturais e à mudança social, tecnológica e política.
O enfrentamento das mudanças climáticas e das crises mundiais alimentar e energética tem cobrado soluções cada vez mais urgentes, eticamente responsáveis e que respeitem o meio ambiente. Nesse contexto, os Sepam têm sido uma referência para as estratégias internacionais e nacionais de desenvolvimento sus- tentável da agricultura destinadas a atender a crescente demanda de alimentos e favorecer os modos de subsistência das populações pobres e remotas. Evidências científicas mostram que os Sepam podem inspirar o desenvolvimento de alternativas viáveis e sustentáveis, especialmente para os agricultores pobres nos países em desenvolvimento. Várias avaliações têm demonstrado as vantagens comparativas desse tipo de sistemas na produção de alimentos e na mitigação de riscos no médio e no longo prazo.
AMEAÇAS E DESAFIOS
Apesar de sua notável capacidade de adaptação a perturbações e mudanças, os Sepam se deparam com grandes desafios em função das rápidas mudanças associadas à globalização que pressionam ainda mais a agricultura familiar camponesa. A penetração das grandes corporações transnacionais e a liberalização dos mercados de produtos básicos criam situações em que produtores locais nos Sepam têm de competir com os produtos de uma agricultura intensiva, geralmente subsidiada e proveniente de outras regiões do mundo. Políticas inadequadas, que levam à adoção de variedades de alto rendimento (VAR) e espécies exóticas, resultaram na perda de biodiversidade agrícola e de conhecimentos ancestrais de manejo, frequentemente associados a práticas capazes de mitigar riscos. Os insumos externos subsidiados e a redução dos preços dos alimentos básicos afetam diretamente a viabilidade econômica e a base biocultural desses sistemas.
Na verdade, muitas áreas rurais do mundo – inclusive onde encontramos Sepam – estão sob acirrada disputa entre atores com interesses opostos. O capital financeiro, as corporações transnacionais e os setores privados nacionais são agentes que promovem processos de desterritorialização, ao dispor de abundantes recursos naturais atrelados a megaprojetos, como barragens, mineração a céu aberto em grande escala e vastas plantações de monoculturas de pinus e eucalipto, bem como culturas transgênicas para os biocombustíveis. Esses interesses corporativos, apoiados por políticas econômicas neoliberais, têm gerado o crescente problema da grilagem de terras em muitos países do Sul.
Em resposta, muitas organizações e movimentos sociais dos campos, das florestas e das águas se opõem e resistem à ocupação de seus territórios, resgatando práticas ancestrais e utilizando cada vez mais a diversificação agroecológica de seus sistemas de produção como ferramenta de luta.
Com o tempo, os Sepam têm sido incorporados nas estratégias nacionais, recebido reconhecimento e apoio internacional e vêm sendo alvo de novas políticas orienta- das para a sua conservação dinâmica. Entretanto, sua efetiva aplicação continua sendo lenta. Se não houver uma rápida ação global, ainda que modesta, e intervenções nacionais que promovam a sua manutenção, a tendência é que o processo de perda dessas paisagens patrimoniais assuma um ritmo cada vez mais acelerado. Paradoxalmente, o processo geral de recampesinização que conduz à reconfiguração dos espaços rurais como territórios camponeses pode, inadvertidamente, ser uma forma eficaz de deter a rápida degradação dos Sepam. Nesses espaços, os camponeses se organizam para preservar a sua riqueza biológica e cultural e a sua capacidade produtiva por meio de estratégias de coprodução com a natureza e, assim, reforçar a sua base de recursos, tornando-se cada vez me- nos dependentes dos mercados de insumos e de créditos e, portanto, evitando o endividamento. Esse é um enfoque estratégico nos processos de transição agroecológica, que vão desde a grande dependência à autonomia relativa. Isto é, agricultores empresariais voltaram a ser, em alguns casos, camponeses; sendo esse um dos eixos da recampesinização, segundo J.D. van der Ploeg (2008). Outro eixo é a retomada da terra e do território que estavam sob o do- mínio do agronegócio e de outros grandes proprietários, seja através da reforma agrária, de ocupações de terra ou de outros mecanismos.
Outra estratégia, que não desafia diretamente as estruturas de poder e opera dentro dos marcos políticos e econômicos existentes, é expandir o que tem sido chama- do de Desenvolvimento Territorial com Identidade Cultural (DTIC). O DTIC visa à implantação de um processo territorial de desenvolvimento sustentável e inclusivo que contribua para aumentar a autonomia e a qualidade de vida das populações rurais carentes de oportunidades. A principal estratégia é fortalecer os vínculos entre os mercados e as políticas públicas voltadas para a valorização do patrimônio cultural e agrícola presentes nos territórios, estimulando as parcerias público-privadas que beneficiam os pequenos agricultores e outros residentes de áreas rurais. O Sepam localizado na ilha de Chiloé, no Chile, foi o pioneiro nessa abordagem na América Latina (VENEGAS, 2014). A ideia, encabeçada pela ONG Centro de Educação e Tecnologia (CET) em conjunto com os agricultores locais, é lançar um selo de certificação Sepam. Uma das lições da experiência de Chiloé é que a conservação dinâmica das paisagens Sepam e de suas formas culturais podem configurar a base de uma estratégia de recampesinização para o desenvolvimento territorial com identidade cultural, reconhecendo que, para superar a pobreza, não se pode abrir mão da riqueza cultural existente no território. Ao contrário, o desenvolvimento regional deve se basear na biodiversidade natural e agrícola e no contexto sociocultural que o alimenta. O desafio consiste em manter o processo de desenvolvimento sob o controle dos agentes rurais locais.
QUATRO EXEMPLOS DE PAISAGENS SEPAM NA AMÉRICA LATINA.
Chile: Agricultura Chilote
No arquipélago de Chiloé, encontramos uma agricultura nativa praticada há centenas de anos, baseada no cultivo de inúmeras variedades de batata – nativas e introduzidas –, alho, maçãs, ovelhas, etc. Essa forma de agricultura está inserida em uma rica paisagem de mata virgem, que abriga muitas espécies de flora e fauna endêmicas, várias delas ameaçadas de extinção. Chiloé é considerado um dos centros de origem da batata e atualmente suas variedades são particularmente importantes para os agricultores, uma vez que a diversidade genética confere garantia de colheita e age como fator de proteção contra doenças, pragas, secas e outras situações adversas. As variedades com diferentes potenciais agronômicos permitem que os agricultores explorem toda a gama de agroecossistemas existentes nas regiões, tanto do interior como do litoral, que diferem em altitude, qualidade do solo, declividade, disponibilidade de água, etc. A maioria dos agricultores tradicionais cultiva as batatas adotando práticas agroecológicas – uso de sistemas de plantio direto (sem revolvimento do solo) e consórcio com favas ou ervilhas que fixam nitrogênio – e utilizando os recursos locais para a produção, como algas marinhas e esterco de animais para a fertilização. Tradicionalmente, as mulheres huilliche mantêm as atividades de conservação da biodiversidade nas pequenas parcelas de suas hortas familiares, sendo por isso reconhecidas em suas comunidades como fontes cruciais de conhecimento sobre a conservação de sementes in situ, o cultivo de batata e sua culinária.
Brasil: Terra preta da Amazônia ou terras escuras amazônicas
Trata-se de solos muito férteis de coloração escura, um produto único oriundo do manejo engenhoso da terra por povos indígenas. A maior parte desses solos se formou entre 500 e 2.500 anos. O manejo da terra preta, tal como é praticado na bacia do Rio Amazonas, tem como base a integração diversa e complexa de alterações orgânicas do solo para maximizar os rendimentos e a qualidade dos alimentos, ao mesmo tempo em que minimiza a degradação dos recursos.
Para a formação da terra escura amazônica, é fundamental a incorporação de carbono pirogênico, fósforo orgânico e cálcio, os elementos-chave desse sistema. Os rendimentos das culturas na terra preta são maiores do que aqueles obtidos em solos adjacentes e mantêm essa vantagem por muitos anos em uma região que normalmente não suporta mais que um ciclo de cultivo sem a aplicação massiva de fertilizantes. Essa capa- cidade de resiliência cria uma considerável segurança para as populações locais.
Os sistemas de conhecimento e cultura ligados ao manejo da terra preta são únicos, mas, infelizmente, têm se perdido. Apesar de ameaçadas, as terras escuras amazônicas continuam sendo um importante recurso e um patrimônio agrícola que demanda uma melhor compreensão científica.
Peru: A Rota Cusco-Puno
Os Andes abrangem uma gama de ecorregiões que estão entre os ambientes ecológicos considerados mais heterogêneos do planeta. O transecto de 350 km selecionado como local Sepam apresenta tamanha verticalidade e heterogeneidade ambiental que inclui diferentes climas e comunidades vegetais. Além disso, observa- se uma paisagem construída por mãos humanas, com terraços, obras de irrigação, mosaicos de campos de cultivos e assentamentos. A maior parte dos milhares de hectares de terraços presentes no transecto foi implantada em tempos pré-históricos. Essas áreas – embora muitas agora estejam abandonadas – continuam contribuindo com grandes quantidades de alimentos e prestando diversos serviços, ao disponibilizarem terras aráveis , promoverem o controle da erosão e protegerem os cultivos das geadas noturnas. Os povos andinos domesticaram uma série de tubérculos (oca, capuchinha tuberosa, ulluco, mandioquinha, maca e yacon), entre os quais a batata se destaca. Em média, são facilmente encontradas 50 variedades de batatas nos campos dos agricultores, sendo que, por referências locais, são apontadas até 100 variedades nativas em um só povoado. A manutenção dessa ampla base genética reduz a ameaça de perda de colheitas em função de pragas, patógenos e variações climáticas. Nos vales, o milho ainda é cultivado com outras espécies de alto valor nutritivo, como os grãos andinos (quinoa, amaranto, cañihua), plantas leguminosas (como feijões e tremoços) e raízes (como mandioquinha e yacon).
Em altitudes de cerca de 4 mil metros acima do nível do mar, os waru-warus ainda prevalecem. Eles consistem em plataformas de terra cercadas por fossos cheios de água. Proporcio- nam colheitas abundantes, apesar das inundações, secas e geadas. A água circundante aumenta a temperatura, o que contribui para mitigar os efeitos prejudiciais das geadas, comuns nessas grandes altitudes.
México: As chinampas do México
As chinampas são sistemas de policultivo em canteiros elevados nas áreas pantanosas dos lagos ao sul do Vale Central do México. Os canais que rodeiam esses canteiros, ou chinampas, são utilizados para a aquicultura e para evitar pragas e o acesso do gado. Os policultivos em chinampas incluem milho, feijão, abóbora, pimentão e uma variedade de outras culturas, frutas e flores, bem como ervas comestíveis. As primeiras evidências de chinampas podem ser encontradas na antiga cidade de Tenochtitlan. Uma das maiores inovações do povo Azteca foi o uso desses canteiros elevados para a germinação de sementes e como viveiros de mudas situados nas margens. Ao utilizar uma grande variedade de nichos, o sistema de agricultura chinampa gera altos rendimentos de produtos provenientes da terra e da água. O sistema chinampa tem a capacidade, portanto, de prover o sustento de comunidades com alta densidade populacional. Esse sistema é um excelente exemplo de agricultura sustentável, que garante a segurança alimentar e os meios de subsistência, contribuindo para atenuar a pobreza, especialmente diante das ameaças emergentes relacionadas às mudanças climáticas.
Miguel A. Altieri
Sociedade Científica Latino-Americana de Agroecologia (Socla)
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Parviz Koohafkan
World Agricultural Heritage Foundation
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Referências Bibliográficas:
KOOHAFKAN, P.; ALTIERI, M.A. Globally Important Agricultural Heritage Systems: a Legacy for the Future. Roma: Food and Agriculture Organization (FAO), 2010.
LU, J.; LI, X. Review of rice-fish-farming in China. One of the globally important ingenious agricultural heritage systems (GIAHS). Aquaculture, v. 260, p. 106-113, 2006.
VENEGAS, C. Producción agroecológica en comunidades campesinas de Chiloé y marca de certificación SIPAM: una experiencia de desarrollo territorial. LEISA Revista de agroecologia, v. 29, n. 4, 2014. Disponível em: <http:// www.agriculturesnetwork.org/magazines/latin-america/agricultura-familiar-campesina/certificacion-sipam>. Acesso em: 20 out. 2014.
VAN DER PLOEG, J.D. The new peasantries: struggles for autonomy and sustainability in an era of empire and globalization. Londres: Earthscan, 2008.
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Revista V11N3 Sepam: uma herança mundial de paisagens agrícolas notáveis