Laércio Meirelles
“Por favor, você poderia me dizer por qual caminho devo seguir?, perguntou Alice.
Isto depende muito de onde você quer chegar, disse o gato.“
Elias Evaldt, 25 anos, é agricultor, filho de Valdeci e Zelma Evaldt e irmão de Marta, 24 anos, e Messias, 22 anos. Todos trabalham na mesma unidade produtiva, localizada na comunidade de Três Passos, município de Morrinhos do Sul, Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Eles também são sócios fundadores da Associação dos Produtores Ecologistas de Morrinhos do Sul (Apemsul).
Hoje, o dia começou cedo para Elias, o que não foi uma exceção. Normalmente, ele acorda cedo para cuidar da horta, cultivada segundo os princípios da Agroecologia, trabalhar no bananal, manejado como um sistema agroflorestal, processar parte da sua produção na agroindústria de um companheiro de outra associação, embalar produtos que serão entregues em escolas e nas cooperativas de consumidores ecologistas da região e ainda participar todos os sábados da feira de agricultores ecologistas de Torres. São tantas tarefas que obriga- riam qualquer um a espantar a preguiça e pular da cama nos primeiros raios de sol.
Dentre todas essas atividades, neste quatro de julho, Elias elegeu focar seu trabalho no açaí da mata atlântica ou, para ser mais preciso, no fruto da palmeira juçara (Euterpe edulis).
Quase extinta devido à extração ilegal do palmito, a palmeira juçara é para a Mata Atlântica uma espécie considera- da guarda-chuva: alimenta mamíferos e pássaros que atuam como dispersores de sementes e é fundamental para a preservação de um dos biomas mais biodiversos e ameaçados do planeta. Devido a sua importância, e também pela boa sinergia com bananeiras, nos últimos 18 anos diversos trabalhos implementados pela ONG Centro Ecológico e outras entidades viabilizaram a multiplicação do número de árvores da espécie no Litoral Norte gaúcho e no Sul de Santa Catarina. Em pouco mais de dez anos, foram plantados cerca de 50 mil pés de palmeira juçara na região.
O fruto da juçara produz uma polpa quase idêntica à do açaí (Euterpe oleraceae), tão conhecida no Norte do país.
No Sul, a descoberta de que os frutos da Euterpe edulis poderiam ser despolpados e processados partiu da observação da tiradeira de açaí paraense Edith Pessete. No final da década de 1980, ela adaptou os conhecimentos daquela região e começou a fazer a polpa do fruto da palmeira juçara no Litoral Norte catarinense. Atualmente, essa prática vem se difundindo em boa parte da região de Mata Atlântica onde a espécie está presente.
Voltando à família Evaldt, a tarefa de Elias hoje foi colher os frutos da juçara e levá-los para serem despolpados na Agroindústria Morro Azul, que fica a 25 km de sua casa, na comunidade de mesmo nome, no município de Três Cachoeiras, também no Litoral Norte do Rio Grande do Sul.
A Agroindústria Morro Azul pertence à família Becker. Os pais, Isaías e Rosimeri, e as filhas Anelise, 22 anos, e Joana, 11 anos, são agricultores familiares e há 20 anos ajudaram a fundar a Associação dos Colonos Ecologistas da Região de Torres (Acert). Anelise é casada com Marcelo, que se integrou à família Becker. Eles se conheceram durante suas atividades de militância na Pastoral da Juventude Rural.
Nessa agroindústria, são processados dezenas de produtos oriundos não só da unidade produtiva da família Becker, mas também de outros membros da Acert e de outras associações de agricultores ecologistas da região. É o caso dos frutos da palmeira juçara pertencentes à família Evaldt que ali são selecionados, lavados, despolpados, embalados e armazenados em uma câmara de congelamento.
Vários podem ser os destinos dessa polpa de açaí. Amanhã ou depois, Elias mandará uma parte para a Cooperativa de Consumidores de Produtos Ecológicos de Três Cachoeiras (Coopet), que fica na sede do município, a 10 km da agroindústria. A Coopet foi fundada em 1999, a partir da iniciativa de um grupo de consumidores que buscava ter acesso a ali- mentos de qualidade, produzidos por agricultores ecologistas da região. Seu exemplo influenciou o município vizinho de Torres, onde desde 2000 funciona a EcoTorres.
Na mesma viagem para deixar a polpa na Coopet, Elias fará uma entrega para a Econativa, uma cooperativa de agricultores ecologistas que, dentre outras atividades, vende açaí da mata atlântica para as escolas da região. Na merenda escolar, obrigatória em todas as escolas públicas do país, as crianças de Três Cachoeiras e outros municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul e do Sul de Santa Catarina consomem suco de açaí com banana orgânica três vezes por semana.
No sábado, Elias irá a Torres, que fica a 40 km de sua propriedade. Levará duas a três dezenas de diferentes produtos para serem vendidos na feira. Inaugurada em 2000, a Feira Ecológica da Lagoa do Violão é resultado de uma parceria entre o Centro Ecológico, agricultores ecologistas da região e a prefeitura municipal. Nela, cerca de doze famílias vendem semanalmente seus produtos para um universo de mais ou menos 200 consumidores, movimentando entre três e quatro mil dólares por sábado. Aproveitando a ida a Torres, Elias deixará alguns produtos na EcoTorres. Dentre eles, o açaí. E assim a vida segue: o descanso possível no domingo, o recomeçar necessário na segunda.
Aos sábados pela manhã, Gabriel Barros, 16 anos, mora- dor de Torres, tem um compromisso: comprar açaí na Feira da Lagoa do Violão. Ele é um ativo praticante de jiu-jítsu e, ao menos uma vez por dia, faz uso do fruto da juçara. Quando perde a hora da feira, Gabriel recorre à EcoTorres, da qual seus pais são sócios. Eles e Gabriel também são clientes assíduos de Elias.
A polpa de açaí foi disseminada pelo país e no exterior principalmente quando combinada com banana e xarope de guaraná, formando um tipo de vitamina ou batida. Essa receita foi desenvolvida por Carlos Gracie, grande mestre de jiu-jítsu, de acordo com os princípios da Dieta Gracie, que consiste na combinação adequada dos alimentos de forma a manter o pH das refeições o mais neutro possível. Com o aval desse atleta, é natural que o açaí tenha se transformado no alimento preferencial dos adeptos dessa modalidade de luta. Em Torres, a academia Lótus, onde Gabriel treina, consome mais de 30 kg por semana, comprados na feira ou na EcoTorres.
Quando compram açaí, os membros da academia Lótus estão buscando um alimento nutritivo e energético, que os ajude a melhorar seu desempenho. Como brinde, colaboram para preservar uma espécie em extinção, contribuem para o sequestro de carbono pelos sistemas agroflorestais – o que minimiza o efeito estufa –, reduzem a quantidade de agrotóxico no prato e no meio ambiente, poupam quilômetros de circulação dos produtos que consomem e ainda garantem melhor remuneração para o agricultor familiar. Em suma, ajudam a construir um desenho alternativo ao sistema agroalimentar globalizado.
Nas últimas décadas, a produção, o processamento, a distribuição e a comercialização de alimentos se concentraram como nunca. Grandes empresas passaram a dominar o chamado sistema agroalimentar mundial. Como consequência, monocultivos com sementes geneticamente modificadas e agroquímicos; processamento em escala cada vez maior e utilizando cada vez mais aditivos, colorantes e conservantes; distribuição globalizada, aproveitando-se de subsídios e especulando com o preço dos alimentos; e varejo concentrado em poucas empresas transnacionais, com preços oligopolizados.
Para o agricultor familiar, muitas vezes sobram a concorrência injusta e os baixos preços pagos pelos complexos agroindustriais ou pelas grandes redes varejistas. Os consumi- dores, por sua vez, ficam com produtos industrializados, distantes de suas características naturais, com pouco sabor e baixa qualidade biológica. Além disso, arcam com preços substancial- mente multiplicados, em relação aos pagos ao agricultor.
Mas tem gente, muita gente, reescrevendo essa história, buscando mudar suas realidades. Gente que quer fazer de suas ações cotidianas uma forma de preparar outros sistemas de produção, transformação, distribuição e consumo de alimentos. Ou gente que simples- mente gosta de produzir de forma ecológica, que quer ganhar um pouco mais agregando valor à sua produção primária. Também pode ser gente que quer ver seus alunos e familiares comerem bem ou que quer viver melhor, consumindo ali- mentos naturais e nutritivos como o açaí. Todas essas pessoas contribuem, cada uma à sua maneira, para redesenhar o sistema agroalimentar mundial.
São pessoas como Elias, Isaías, Gabriel e suas famílias. Como os agricultores da Apemsul, da Acert e da Econativa. Gente como os consumidores da EcoTorres e da Coopet ou como os sócios e técnicos da ONG Centro Ecológico. Ou ainda pessoas como os alunos, professoras e merendeiras das escolas de Três Cachoeiras e região, da Feira Ecológica da Lagoa do Violão, seus organizadores e consumidores, sem esquecer dos praticantes de jiu-jítsu da academia Lótus.
Que bom que esses exemplos, bons exemplos, não es- tão apenas no Litoral Norte do Rio Grande do Sul ou no Sul de Santa Catarina. Que bom que eles se multiplicam em centenas de nem tão pequenas experiências, em todos os estados do país, em todos os países do continente. Que bom que, apesar da pressão cultural e econômica das grandes corporações do setor, e mesmo sem apoio mais incisivo por parte das leis e políticas que regem o sistema agroalimentar, milhares de pessoas buscam, de forma individual e coletiva, aumentar sua capacidade de decidir o quê e como produzir e consumir.
Articular essas experiências e reforçá-las com políticas de apoio, multiplicando ideias e ideais que as alimentam, é o caminho para transformá-las em números estatísticos mais significativos. Exemplos admiráveis elas já são.
Laércio Meirelles
engenheiro agrônomo e coordenador do Centro Ecológico Ipê
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Revista V8N3 – Sistemas agroalimentares: humanizar é possível