Thiago Rodrigo de Paula Assis e Eduardo Magalhães Ribeiro
UMA EXPERIÊNCIA
O Vale do Jequitinhonha, localizado no nordeste de Minas Gerais, é considerado uma das regiões mais complexas do Brasil. Reportagens, pesquisas, rela- tórios de governo sempre enfatizam a sua extremada pobreza, seus precários indicadores sociais e a migração que se repete todos os anos. Porém, relatórios e indicadores nunca compreendem os sujeitos que vivem lá. Um olhar mais detido percebe que aquela é uma sociedade majoritariamente camponesa, ligada à terra como a uma segunda natureza, fundamentalmente auto-suficiente e voltada para mercados locais. Como isso não é visto, são conduzidos para lá programas de grande escala: barragens, reflorestamentos, mineração, que, no decorrer dos últimos 30 anos, têm privatizado e esgotado as fontes de recursos naturais e, assim, contribuído para efetivamente empobrecer o lugar e a sua população.
A sorte dos lavradores do Jequitinhonha é que nem todos, a começar por eles próprios, vêem as coisas sob essa perspectiva. Foi por isso que criaram o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), uma organização não-governamental com sede no município de Turmalina.
Este artigo analisa a experiência do CAV apresentando as contribuições dessa organização para a inserção produtiva e política de lavradores, refletindo sobre seus métodos de trabalho e comentando as lições que podem ser retiradas dessas, aparentemente, inocentes tentativas de ousar pensar o seu local com autonomia.
Um aspecto importante a ser ressaltado ao refletir sobre essa experiência é que ela surgiu de uma noção bastante ampliada de agricultura, identificada ao mesmo tempo com a Agroecologia, com as práticas tradicionais de manejo de recursos naturais e, sobretudo, com a identidade que associa a agricultura aos sujeitos que a praticam. Essa identificação permite que cultura, tradição e manejo se encontrem; e esse encontro acontece numa direção inversa àquela valorizada pelo modelo consagrado pela chamada Revolução Verde, que se limita ao aspecto produtivo e acredita que a agricultura não mais depende da natureza. No caso aqui apresentado, persistiu uma noção holística de agricultura, que a concebe como associada fundamentalmente às relações sociais.
Por isso, desde o início, as ações do CAV voltaram-se menos aos novos protocolos de cultivo e mais ao enfrentamento dos desafios que se impunham aos agricultores da região: recuperar áreas degradadas, enfrentar os problemas da diminuição das águas, buscar formas mais sustentáveis de produção, criar alternativas de agregação de valor aos produtos da agricultura familiar, abrir novos espaços para comercializar. Temas associados à própria estrutura do processo de desenvolvimento – assuntos caros à agricultura familiar –, mas invariavelmente excluídos na reflexão sobre desenvolvimento agrícola.
OS SISTEMAS AGROFLORESTAIS
Um dos primeiros desafios impostos ao CAV foi aliar a recuperação de áreas degradadas (os peladouros) a um modelo de produção que fornecesse consumo e renda. Foi com esse intuito que experimentaram os sistemas agroflorestais (SAFs), combinando o aspecto selvagem da floresta com o aspecto domesticado da lavoura. Fundamentam-se na certeza de que a recomposição natural da fertilidade, via matéria orgânica, pode ocorrer mais rapidamente que seu consumo na produção de alimentos. Nos SAFs a ação humana potencializa aquilo que a natureza espontaneamente proveria: a sucessão de espécies de plantas, o desbaste de ramos e a abertura de espaço de vegetação para plantas que servem como alimento ou matéria-prima.
Porém, esse caráter espontâneo dos SAFs, sua lentidão na produção de alimentos, a baixa produtividade comparada aos sistemas de cultivo intensivo e a enorme diversidade de produção que o marca acabam sendo obstáculos para sua aceitação em larga escala. Afinal, os lavradores têm que renunciar à produção imediata em favor de uma produção – ainda que seguramente sustentável – de longo prazo.
Apesar disso, no Alto Jequitinhonha, esse sistema foi compreendido pelos agricultores como um complemento e aperfeiçoamento dos seus sistemas de produção costumeiros por pousio e das lavouras de coivara. Assim como os sistemas tradicionais, os SAFs exigem um apurado conheci- mento da terra e das plantas, entregam à natureza o trabalho de reconstruir a fertilidade, além de demandar cálculos sobre a produção possível e futura para prover o abastecimento. Por essa razão as eventuais críticas e resistências aos SAFs foram abrandadas, visto que as diferenças fundamentais entre os métodos de cultivo estariam mais no grau e periodicidade da intervenção do lavrador do que propriamente na concepção geral dos sistemas. Usando com certa liberdade os conceitos classicamente caros à extensão rural, pode-se afirmar que, nesse caso, a recorrente tradicionalidade dos sistemas agrícolas nativos foi, numa aparente contradição, a matriz da inovação agrícola.
A ORGANIZAÇÃO CAPILAR
Outro aspecto que favoreceu essa experiência diz respeito à forma de sua implantação. Embora seja uma iniciativa desafiadora, os SAFs foram propostos com uma novidade: sua experimentação aconteceria em áreas demonstrativas, com responsabilidade de concepção e gerenciamento compartilha- da entre os lavradores que se identificassem com a idéia. Assim, no início dos seus trabalhos, o CAV articulou interessados em vivenciar profundamente os novos sistemas de produção. Os agricultores engajados na proposta foram se capacitando no coletivo, repartindo a incumbência de montar, na própria comunidade, glebas dedicadas ao aperfeiçoamento e à demonstração da eficácia da agrofloresta.
Essa novidade apresentou um triplo resultado positivo. Primeiro, transpôs para dentro da comunidade a discussão sobre a viabilidade ou não do sistema agroflorestal, atribuindo aos lavradores-monitores o papel de estimuladores desse debate. Segundo, permitiu que os monitores se valorizassem e tomas- sem a liberdade de realizar adaptações, introduzir mudanças e propor novas questões por conta própria, na medida em que eram responsáveis pela experimentação do sistema na sua comunidade. Terceiro, abriu para a organização um canal permanente de crítica participante, uma vez que os monitores assumiram solidariamente o destino da proposta.
Entretanto, o mais relevante foi o efeito inesperado, visto que, ao fugir de propostas de agricultura industrial/modernizada e se identificar com a agricultura local/costumeira, a experiência criou a possibilidade de se refletir sobre novos temas, principalmente sobre a organização social, o meio ambiente e a tomada das terras comunais das áreas de chapadas. Suscitou-se, por exemplo, a percepção por parte das comunidades e dos mediadores da existência de problemas ambientais causados pelo método de fazer agricultura até então em- pregado. Ou seja, esse processo permitiu que a reflexão fosse além do aspecto exclusivamente agrícola para identificar outros fatores que influenciam nas mudanças produtivas, ambientais e sociais observadas na região. Com isso, os agricultores incorporaram o ambiente e a sociedade ao sistema produtivo.
Além disso, essa metodologia de trabalho, parte constitutiva da dinâmica do CAV, tornou obrigatórios nas suas preocupações cotidianas temas como família, trabalho, jovens, gênero e políticas públicas. Com a influência do CAV e de novos mediadores, esses assuntos se espraiaram para os sindicatos de trabalha- dores rurais e agências municipais. Assim, o método resultou numa constante atualização temática e organizativa.
ALGUMAS LIÇÕES
Hoje o CAV desenvolve ações como as de conservação das águas; cercamento de nascentes; melhoria dos produtos locais; comercialização coletiva e estímulo aos mercados locais. A essas atividades se juntam reflexões sobre o papel da mulher na agricultura, o modelo de extensão rural que os agricultores desejam, a busca de alternativas técnicas e políticas para o semiárido, entre outras. Esses trabalhos abriram caminhos para sua participação em programas públicos como os Territórios, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC), os Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento (Consads), educação rural, gestão de bacias hidrográficas, etc.
Mesmo com seus muitos desafios e limitações, essas experiências apontam para duas certezas: que é normal que a produtividade dos sistemas agrícolas adapta- dos às propriedades de agricultores familiares do Alto Jequitinhonha seja baixa; e que, definitivamente, essa produtividade não cresce com os recursos técnicos da Revolução Verde, em função das barreiras topográficas à mecanização, financeiras à química agrícola, culturais aos pacotes agrícolas, orçamentárias à sedução dos subsídios, ambientais à irrigação em larga escala.
Assim, a trajetória do CAV com os SAFs e seus desdobramentos mostra que não deve haver vergonha em conceber horizontes modestos para o desenvolvimento rural do Alto Jequitinhonha. Ensina que não se deve hesitar em substituir programas que preguem o grande investimento, com a pretensão de igualar o padrão produtivo regional àquele do agronegócio, por iniciativas de baixo custo, na escala de operação técnica e cultural da agricultura familiar da região. A experiência acumulada revela que a) mesmo poucos recursos, com gestão descentralizada e postos à disposição desses sitiantes, alavancam sua capacidade de auto-sustentação; e b) que as organizações locais e regionais têm condições de participar e gerir satisfatoriamente esses programas.
Um balanço da experiência só pode aconselhar que novos programas deixem de lado a perspectiva, quase sempre leviana, de eliminar sistemas produtivos tradicionais, como se a Revolução Verde ainda fosse um remédio milagroso. A extraordinária concentração de renda e terra desencadeada pelos empreendimentos rurais de grande escala comprova que é necessário pensar em propostas que ofereçam a possibilidade de inovar a partir das tradições e de transformar em fatores positivos aquelas características que são consideradas distorções dos regimes agrários.
Organizações locais como o CAV vêm provando sua capacidade de contribuir nesse sentido à medida que propõem programas que integram as especificidades e cultura locais e que agregam à sua execução uma maior participação da agricultura familiar. Mesmo com dificuldades, essas organizações têm conseguido catalisar de- mandas, articular atores e ações, formular projetos integrados e gerar recursos no âmbito local, proporcionando bons resultados, com menores custos.
Thiago Rodrigo de Paula Assis
engenheiro agrônomo, doutorando do curso de pós- graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Socie dade (CPDA/UFRRJ), do Núcleo PPJ/UFLA
Eduardo Magalhães Ribeiro
economista, professor associado da UFLA, pesquisador CNPq, do Núcleo PPJ/UFLA
Referências Bibliográficas
ASSIS, T. R. de P. Agricultura familiar e gestão social: ONGs, poder público e participação na construção do desenvolvimento rural. 2005. Dissertação (Mestrado) – PPGAD/UFLA, Lavras.
GALIZONI, F.M. Terra, ambiente e herança no alto Jequitinhonha, MG. Revista de Economia e Sociologia Rural. 40(3) jul./set. 2002.
MELO, A.P.G. Agricultura familiar e economia solidária: a experiência em gestão de bens comuns e inserção em mercados por organizações rurais de Minas Gerais. 2005. Dissertação (Mestrado) – PPGA/UFLA, Lavras.
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Revista V4N2 – Sistemas agroflorestais como recurso didático para a organização dos lavradores do Alto Jequitinhonha