Eefje den Belder, Martín García e Don Jansen
Metodologias como as Escolas de Campo de Agricultores (ECA) visam promover o desenvolvimento sustentável a partir de processos de aprendizado por auto- descoberta baseados em encontros realizados a campo. Para ser útil aos agricultores, uma ECA exige um programa bem desenvolvido e bem organizado. Isso inclui a escolha de temas sobre os quais os agricultores têm maior interesse, a definição dos conteúdos dos encontros das escolas de campo e a permanente reflexão sobre as atividades realizadas.
A metodologia da ECA é empregada no “Projeto Café Sustentável no Peru”, desenvolvido no vale Ubiriki-Perené, em Junin, um dos principais estados do país. Iniciado em março de 2003, o projeto é supervisiona- do pelo Instituto Internacional de Pesquisa de Plantas (Plant Research International) e é implementado em parceria com a Cooperativa Agrária Cafeeira Sustentável Valle Ubiriki. Atualmente, cerca de 190 famílias produtoras de café participam regularmente das nove ECAs promovidas pelo projeto.
A experiência do projeto revela como a sistematização de informações pertinentes sobre iniciativas inovadoras desenvolvidas pelos próprios agricultores tem desempenhado um papel fundamental no apoio aos processos de aprendizagem. Este artigo ilustra como a sistematização pode contribuir e fortalecer os processos de aprendizagem por meio de três exemplos: a realização de um diagnóstico sobre a situação dos cafeicultores para orientar o desenvolvimento do currículo das ECAs; a elaboração de folhetos como suporte pedagógico para a abordagem de formação adotada nas ECAs; e o emprego de um diário de campo para o registro de dados a fim de facilitar a avaliação e comparação das experiências dos agricultores.
DESENVOLVENDO O CONTEÚDO DAS ESCOLAS DE CAMPO DE AGRICULTORES (ECA)
Para orientar o desenvolvimento do conteúdo das ECAs do projeto, 150 famílias foram entrevistadas em suas propriedades. Diversos instrumentos foram utiliza- dos para a coleta de informação, incluindo um questionário de quatro páginas. O questionário abordava desde aspectos técnicos da produção e do processamento do café, até informações sobre os serviços de extensão existentes na região e sobre o grau de organização e de participação local. Enfocava também as condições de vida das famílias tais como a disponibilidade de terra, o acesso a insumos, as restrições financeiras e de abastecimento alimentar, a situação das mulheres agricultoras etc. A análise dos questionários e das observações preliminares coletadas nos cafezais transformou-se em dados qualitativos e quantitativos sobre as dificuldades vivenciadas pelos cafeicultores.
Os agricultores demonstraram sua satisfação durante as oficinas que foram realizadas após a fase das entrevistas, fazendo declarações tais como: “descobri que não sou o único a ter problemas com cola de chancho (deformação da raiz de pés de café)”; “agora temos uma lista de novas questões que precisamos aprender para aprimorar a produção de café”; ou então “percebi que ainda tenho muito o que aprender”.
Dessa forma, os participantes em potencial das ECAs foram envolvidos no desenvolvimento do programa das escolas. A equipe do projeto e os agricultores analisaram as dificuldades da produção cafeeira na região e identificaram temas relevantes que precisavam ser abordados. Perguntas do tipo “Como posso melhorar a qualidade do café? Como posso me sustentar com essa atividade? Como funciona o mercado de café?” constituíram o ponto de partida para a elaboração do programa educacional das ECAs. Mais do que definir os conteúdos das ECAs, o envolvi- mento dos agricultores desde o início permitiu assegurar que eles adquirissem uma compreensão compartilhada sobre sua situação. Como resultado, eles demonstraram grande interesse na criação da ECA (ver quadro 1).
OS FOLHETOS DA ESCOLA DE CAMPO DE AGRICULTORES
Durante os encontros realizados no campo, uma grande variedade de metodologias e instrumentos foi utilizada para o trabalho junto aos agricultores, tais como dia- gramas, desenhos, fotografias, quadros, materiais vivos, apresentações orais, canções, poemas, peças de teatro e folhetos. Era necessário adotar estratégias diferentes para tratar diferentes temas, mas os agricultores consideraram os folhetos o recurso mais proveitoso. Durante as primeiras entrevistas, 87% dos agricultores mencionaram que gosta- riam de participar de uma ECA, 60% consideraram úteis as informações transmitidas por rádio, enquanto 100% consideraram os folhetos instrumentos úteis e apropriados para atender suas necessidades.
Os folhetos foram produzidos pela equipe local em conjunto com os agricultores, sendo escritos numa linguagem acessível com ênfase nos “por quês” e nos “comos”. Eles apresentam soluções técnicas variadas, vantagens e desvantagens das diferentes alternativas, conseqüências e possíveis dificuldades para a adoção das práticas. Incluem também considerações realizadas pelos agricultores durante os encontros, muitas vezes anotadas por um dos facilitadores ou extraídas dos diários de campo individuais dos agricultores (reflexões pessoais sobre o que aprenderam com a experiência). Para ilustrar os folhetos, os agricultores escolheram desenhos feitos pelos facilitadores e fotografias tiradas durante as atividades de formação.
A idéia é reunir os 18 folhetos técnicos já produzidos para compor um pequeno manual. Dessa forma, agricultores podem reler e reconsiderar o que foi dito nos encontros e escolher melhor as soluções que querem adotar. A nossa experiência tem demonstrado que, juntamente com os folhetos, os encontros de campo proporcionam um ambiente favorável para o estímulo ao contínuo processo de inovação e adoção local das alternativas apresentadas. Como a elaboração dos folhetos técnicos foi uma atividade realizada em conjunto por agricultores e facilitadores, a relação entre eles mudou, gerando uma atitude de responsabilidade e confiança mútuas e criando um ambiente de melhor entendimento entre ambas as partes.
Os conteúdos desses folhetos variaram bastante de acordo com as necessidades dos participantes e a complexidade do assunto. Ao tratar da prática da poda, por exemplo, um pequeno grupo começou a comparar, durante um longo período, o desenvolvimento de pés de café num cafezal podado de forma “experimental” com outro manejado convencionalmente. O grupo monitorou o desenvolvimento das plantas sob ambos os “tratamentos” e apresentou os resultados para os outros participantes. Várias idéias foram discutidas e as seguintes perguntas foram inseridas no folheto resultante: “Por que devemos podar? O que acontece se os pés de café não forem podados? Como e quando devemos podar? O que acontece depois da poda?” (ver quadro 2).
COMPARANDO PRÁTICAS AGRÍCOLAS
A grande virtude da metodologia da ECA está no vínculo entre o processo de formação e a avaliação local de alternativas tecnológicas. Se o trabalho diário nos campos de café e a reflexão sobre as escolhas feitas forem sistematizados, as famílias agricultoras podem desenvolver suas habilidades para a tomada de decisão sobre o manejo. Nesse processo, o diário de campo é essencial.
O diário de campo foi usado pelos agricultores para registrar todos os gastos e horas dedicadas à produção e ao processamento do café, inclusive os despendidos com trabalho terceirizado. A informação foi registrada num diário cujo formato foi concebido nas ECAs em conjunto com a equipe do projeto. Quando necessário, a coleta de dados era orientada pelos facilitadores. A cada 14 dias os dados são recolhidos. Posteriormente, são sintetizados por meio de um modelo descritivo desenvolvido na Universidade de Wageningen (Holanda), que permite gerar gráficos simples nos quais os resultados individuais dos agricultores são visualizados. A cada três meses os agricultores debatem seus resultados, possibilitando o intercâmbio de informação e a comparação entre as diferentes práticas adotadas e os êxitos obtidos.
Por meio desse processo, os agricultores passaram a adaptar tecnologias existentes e a testar novas idéias. Foi possível, por exemplo, o enfrentamento de problemas cujas soluções eram até então dificilmente visualizadas devido aos altos custos envolvidos nas técnicas disponíveis. Ao sistematizar seus experimentos, os agricultores desenvolveram habilidades que os permitem análises mais amplas sobre seus sistemas de produção. Alguns exemplos dessas habilidades adquiridas são:
- como relacionar o número de horas dedicadas à colheita com o total colhido;
- como relacionar o número de horas de trabalho de campo com o total de café colhido;
- como comparar o que se ganha por hectare com relação aos custos de produção.
Os agricultores consideraram esse processo de coleta, análise e discussão dos dados muito interessante, desafiador e prazeroso. Isso se reflete claramente na disciplina demonstrada pelos envolvidos e na alta qualidade do trabalho desenvolvido. Eles passaram a testar a utilidade desse método de acordo com suas necessidades. Inicial- mente, apenas seis agricultores de cada escola fizeram o registro de suas experiências já que o método era novo tanto para eles quanto como para os facilitadores. Após a apresentação dos resultados do primeiro ciclo de produção do café, todos os participantes das ECAs quiseram adotar a metodologia do diário de campo, pois perceberam que ela lhes permitia analisar suas próprias situações. Trata-se de uma metodologia simples, que possibilita o registro, a análise e a organização de informações úteis para os debates dos grupos das ECAs. Um dos fatores que incentivam os agricultores a adotar o diário de campo é a utilidade dele no apoio à administração de suas propriedades. Esse método, é claro, tem algumas limitações. Não se pode lidar com todos os problemas por meio do instrumento do diário de campo. Algumas questões, tais como o manejo do sombreamento dos cafezais, são muito complexas e demandam mais tempo e orientação. Outras, tais como o manejo de doenças e pragas que se espalham com facilidade – a doença dos grãos do café ou a broca-do-café (Hypothenemus hampei), por exemplo – são muito perigosos para serem colocados em experimentação a campo.
A metodologia da Escola de Campo para Agricultores proporcionou um ambiente favorável para o debate acerca dos resultados dos diários de campo porque os agricultores e facilitadores já haviam trabalhado de forma muito próxima durante um ano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que as abordagens de aprendizagem e pesquisa das ECAs produzam um impacto real na produtividade e na vida das famílias agricultoras, metodologias para o compartilhamento da informação devem ser desenvolvidas e seu uso deve ser promovido. A sistematização é uma ferramenta poderosa para integrar e disseminar conheci- mento. Os exemplos aqui apresentados mostram que:
- a sistematização sobre as condições de produção vivenciadas pelas famílias permite a identificação de problemas e suas possíveis soluções. Esse conhecimento pode ser empregado no desenvolvimento dos currículos das ECAs. Por estarem envolvidos desde o início, os agricultores sentem que são “donos”, pelo menos em parte, do programa de ensino que os motiva.
- a sistematização das conclusões dos encontros entre agricultores e facilitadores na forma de pequenos folhetos pode ajudar a construir uma relação de confiança e entendimento mútuo. Incentivar os agricultores a produzir o conteúdo dos folhetos contribui para tornar o processo de aprendizado mais efetivo e os estimula a dar continuidade;
- por meio da coleta de dados no diário de campo, os agricultores desenvolvem habilidades que lhes permitem analisar sua própria situação. Ao comparar as atividades empregadas no manejo de suas propriedades com os resultados de outros, os agricultores podem adaptar tecnologias já existentes e testar novas idéias.
Eefje den Belder:
cientista-sênior do Plant Research International, em Wageningen, Holanda / gerente do Projeto Café Sustentável no Peru.
[email protected]
Martin García:
gerente local do projeto, em Pichanaki, Peru.
Don Jansen:
cientista-sênior do Plant Research International, em Wageningen, Holanda / diretor do Projeto da DE Foundation.
Referências Bibliográficas:
FREIRE, P. Pedagogy of the oppressed. Londres: Pelican, 1996.
GALLAGHER, K. Fundamental elements of a farmer field school. LEISA Magazine, v. 19, n. 1, 2003.
THIJSSEN, R. PTD practitioners: back to school? LEISA Magazine, v. 19, n. 1, 2003.
THOMSON, I.; BEBBINGTON, J. It doesn’t matter what you teach? Critical Perspectives on Accounting, 15(4/5), 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V3N2 – Sistematização: um instrumento valioso para as Escolas de Campo de Agricultores