Manoel Baltasar Baptista Da Costa
As descobertas de Justus Von Liebig em meados do século XIX deram início às pesquisas sobre a química agrícola, centradas principalmente na fertilização do solo com adubos químicos, prática que ganhou expressão a partir da primeira metade do século XX. A física do solo passou a merecer atenção com o desastre de Dust Bowl, um fenômeno ambiental ocorrido nos Estados Unidos na década de 1930 resultante de anos de práticas de manejo que deixaram o solo suscetível à erosão eólica. O fenômeno durou quase dez anos, formando nuvens de pó e areia tão espessas que escondiam o sol durante dias. Esse fato motivou a criação dos serviços de conservação do solo dos EUA, que posteriormente inspirariam a criação dos serviços públicos de extensão rural nos países do Terceiro Mundo. Já a atenção aos aspectos biológicos do solo foi limitada até meados do século XX. Em um primeiro momento, centrou-se em alguns microrganismos, como os decompositores, os fixadores de nitrogênio atmosférico e alguns agentes patogênicos dos cultivos comerciais, como os nematoides.
Vemos, portanto, que o estudo dos recursos edáficos avançou de forma compartimentada e reducionista, ora enfatizando a dimensão química, ora a física ou, com menor intensidade, a biológica. Ao tentar parametrizar o funcionamento dos solos por meio de equações simplificadas, a ciência agronômica contemporânea falha por desconsiderar o complexo multivariável envolvido nos processos físico-químico-biológicos consolidados em milhões de anos. Esse é o aspecto que Roland Bunch destaca em seu artigo publicado na página 48 desta edição. O autor chama a atenção para a inadequação de muitas das recomendações de práticas de manejo da fertilidade dos solos que derivam diretamente de três mitos consolidados nas ciências agrárias, mas que contradizem largamente o que ensina a história de formação dos solos: 1) os solos inevitavelmente se deterioram com o tempo; 2) os solos devem ser arados para se manterem produtivos; 3) a agricultura produtiva deve ser baseada em monoculturas. Ao ressaltar essa inadequação do enfoque científico dominante, Bunch aponta as bases para o manejo agroecológico dos solos.
Pela ótica da Agroecologia, o processo vital não se traduz em uma soma linear de fatores isolados, nem pode ser compreendido e previsto por intermédio de equações, uma vez que encerra processos ecológicos complexos que ocorrem em várias escalas segundo cada realidade socioambiental peculiar.
Em função das condicionantes térmicas, radiantes e hídricas, os ciclos biogeoquímicos nos trópicos possuem dinâmica fundamentalmente distinta daquela nas regiões temperadas e frias. Dada a maior disponibilidade de luz solar e de pluviosidade no decorrer do ano nos trópicos, os ciclos biogeoquímicos tendem a ser mais intensos do que nas regiões temperadas e frias. Apesar de menos abundantes, as chuvas nas regiões de maiores latitudes tendem a ser mais bem distribuídas no decorrer do ano, resultando em menores níveis de lixiviação dos nutrientes do solo. Isso explica em grande medida a predominância de solos mais ricos em nutrientes (eutróficos) e em matéria orgânica (pelo lento processo de decomposição resultante das menores temperaturas) nas regiões de clima temperado. Por outro lado, constata-se menor diversidade biótica (reino animal e vegetal) do que em ambientes tropicais e subtropicais.
Embora contem com uma menor disponibilidade de nutrientes nos solos, quando comparadas com as regiões temperadas e frias, as regiões tropicais possuem um potencial de produzir anualmente até seis vezes mais biomassa por unidade de área. O fator determinante para isso é a maior incidência de radiação solar, característica que proporciona maiores temperaturas e maior potencial fotossintético. Nesse caso, a maior concentração dos nutrientes mobilizados pelos ciclos biogeoquímicos encontra-se na biomassa, e não no solo.
Por essa razão, as práticas voltadas à recuperação e à manutenção do potencial produtivo das áreas agricultadas devem ter como referência um conceito sistêmico de fertilidade que considere a dinâmica cíclica estabelecida entre o solo e a biomassa viva e/ou morta. Essas práticas devem estar fundamentadas nos acúmulos de conhecimentos ecológicos, podendo se inspirar em experiências da agricultura tradicional.
O uso das parcelas de cultivo segundo suas classes de aptidão agrícola, a adoção de práticas conservacionistas – tais como o plantio em nível, os cordões vegetados, os terraços e a mobilização mínima do solo – e a produção e o manejo eficiente da biomassa são as estratégias técnicas centrais para que os atributos físicos, químicos e biológicos do solo sejam preservados ou aprimorados de forma conjunta. Já a queimada, uma prática tradicional de recomposição da fertilidade dos solos utilizada por séculos em muitas regiões do planeta, só é viável se combinada com longos pousios que permitam a recomposição da vegetação natural.
Se em regiões temperadas e frias são indicadas estratégias técnicas que acelerem os ciclos biogeoquímicos, nos trópicos são demandadas ações e orientações opostas. A mobilização intensiva do solo, indicada para ecossistemas de clima frio e com chuvas de baixa intensidade, é uma prática totalmente inadequada nos trópicos. Além de acelerar a decomposição da matéria orgânica e a mineralização dos nutrientes, a aração elimina a cobertura do solo, tornando-o exposto às chuvas torrenciais. Nessas condições, ocorre acelerada degradação física e química do solo, sendo que muitos nutrientes são lixiviados para camadas mais profundas.
Além desses efeitos negativos, os revolvimentos profundos e invertedores da camada superficial promovem o deslocamento dos organismos do solo para habitats não adequados à sua fisiologia e metabolismo. Organismos que melhor se adaptam às camadas superficiais, onde existe maior disponibilidade de luz e oxigênio, são mais tolerantes a alterações de umidade e temperatura. Quando translocados para camadas mais profundas, não encontram condições ideais para a sua reprodução. O mesmo ocorre quando há o deslocamento para a superfície dos seres adaptados às camadas mais profundas do solo.
A mobilização intensiva do solo deve ser substituída por processos escarificadores, pelo cultivo mínimo e pelo plantio direto, práticas que asseguram a manutenção da cobertura viva ou morta ( mulching ), condição que, ade- mais, permite a eliminação do emprego de herbicidas.
Práticas de manejo vegetativo devem predominar sobre as atividades mecânicas que levam ao revolvimento e à desestruturação do solo. Nesse caso, o mais indicado é empregar plantas de raiz pivotante e agressiva. Além de romperem camadas compactadas na subsuperfície, essas plantas contribuem para repor à superfície nutrientes presentes em camadas mais profundas do solo. O uso dessa estratégia deve atentar para os princípios alelopáticos, com destaque para as plantas conhecidas como adubos verdes, optando-se por espécies adequadas a cada época do ano (primavera/verão e outono/inverno). Em muitas situações, a própria vegetação espontânea cumpre essas funções ecológicas, a depender de sua composição, vigor vegetativo e produção de biomassa. O cultivo de espécies leguminosas pode assegurar a autossuficiência em nitrogênio, tornando os sistemas produtivos menos dependentes de insumos externos.
Embora sejam valorizados por muitos agricultores por poupar trabalho, os herbicidas inibem o potencial de produção de biomassa nos agroecossistemas, além de serem agressivos à saúde do meio ambiente e do ser humano. Por essa razão, devem ser evitados com o auxílio de métodos de manejo vegetativos, como o uso de plantas de cobertura. Também os fertilizantes de elevada concentração e solubilidade causam danos ao ecossistema e devem ser evitados. Além de favorecerem as perdas dos nutrientes por processos de lixiviação (contaminando aquíferos superficiais e subterrâneos), de volatilização ou de imobilização, os fertilizantes de síntese química predispõem as plantas cultivadas ao ataque de insetos-praga e organismos patogênicos.
Outro motivo para que o uso de agrotóxicos seja altamente condenável é a crescente resistência adquirida pelos insetos-praga, pelos microrganismos patogênicos e pelas plantas espontâneas. Além disso, esses produtos estão cada vez mais presentes na cadeia alimentar, afetando gravemente a saúde humana em função de seus efeitos mutagênicos, carcinogênicos e teratogênicos, sendo uma prática totalmente prescindível quando são adotadas estratégias técnicas que promovem a saúde do solo.
Os artigos publicados nesta edição abordam as colocações acima a partir de diferentes ângulos. O texto elaborado por Emanoel Dias e colegas (pág. 08) relata iniciativas de manejo da fertilidade em agroecossistemas na região semiárida da Paraíba. Essas experiências combinam diversas práticas, tais como: recomposição florestal; captação e armazenamento de água das chuvas; produção e armazenamento de forragens para a alimentação do rebanho nos períodos secos do ano; melhoria do manejo de esterco por meio da compostagem e da produção de biofertilizantes; redução do desmatamento com o uso de biodigestores e fogões ecológicos; e seleção e reprodução de germoplasma de espécies alimentícias utilizadas pelos agricultores da região. Embora essas iniciativas sejam conduzidas na escala dos agroecossistemas, elas são viabilizadas por processos coletivos articulados na escala do Território da Borborema por organizações da agricultura familiar. Além de promover a experimentação agroecológica e os intercâmbios entre agricultores, essas organizações coordenam a produção de mudas em viveiros comunitários, o financiamento de pequenas infraestruturas por meio de fundos rotativos solidários, a criação de bancos de sementes comunitários e outros mecanismos de gestão coletiva de bens comuns.
Outra experiência de gestão da fertilidade em região semiárida é relatada no artigo de Georges Félix (pág. 17), que apresenta como agricultores de Burkina Faso estão restaurando solos degradados por meio do manejo da biomassa em um sistema intitulado corte e cobertura, uma denominação que faz claro contraponto à tradicional prática de corte e queima. Além de enfatizar a cobertura do solo com restos vegetais, o manejo valoriza os resíduos animais, fechando ciclos ecológicos entre subsistemas de produção vegetal e animal. Para que as chuvas de apenas três a quatro meses sejam aproveitadas, o sistema é conduzido de forma que as sementes parcialmente digeridas pelos animais brotem sobre o esterco disponível no campo, iniciando um rápido processo de regeneração de terras degradadas sem a necessidade de investimento em trabalho no plantio de mudas de espécies arbóreas.
O tema do manejo da biomassa no fechamento de ciclos ecológicos nos agroecossistemas é também abordado no texto de Maria Eunice de Souza e seus colegas vinculados à Universidade Federal de Viçosa. Nesse caso, os autores destacam a importância da vermicompostagem no fortalecimento e aprimoramento da integração ecológica entre subsistemas de produção animal e vegetal em propriedades familiares na Zona da Mata de Minas Gerais.
O emprego da rochagem enquanto estratégia de gestão da fertilidade é descrito por Fábio Junior da Silva e colegas. O aspecto central assinalado pelos autores é que a rochagem não pode ser concebida como uma simples prática de substituição de insumos, ou seja, de fertilizantes solúveis por pós de rocha. Coerente com os demais textos publicados nesta edição, o artigo chama a atenção para o fato de que a produção e o manejo da biomassa são os elementos chaves na regeneração da fertilidade do solo. Nessa perspectiva, os pós de rocha são concebidos como remineralizadores do solo, ou seja, como repositores de elementos minerais nutritivos aos ciclos biogeoquímicos. Portanto, diferente da lógica convencional de manejo da fertilidade, o foco não está orientado para a nutrição das plantas cultivadas, mas para o aprimoramento da fertilidade global do sistema solo-planta.
Em artigo que aborda a ocorrência das terras pretas na Amazônia, fenômeno que há muito intriga cientistas da área de solos, Juliana Lins discorre sobre os ensinamentos legados por sociedades complexas que viveram na Amazônia entre 2.500 e 500 anos atrás (pág. 37). O fato intrigante está na existência de solos escuros e férteis em ambientes suscetíveis a elevado intemperismo e à formação de solos ácidos e distróficos. A presença de fragmentos de cerâmicas indígenas em até dois metros de profundidade reforça a hipótese de que esses solos foram criados por meio de práticas que envolviam o acúmulo de matéria orgânica (restos de comida, fezes) e, possivelmente, o uso de fogo controlado para manter a queima em temperaturas relativamente baixas. Dessa maneira, em vez de formar cinzas, que são altamente lixiviáveis, formava-se carvão, que retém nutrientes, estabiliza a matéria orgânica, aumenta a capacidade de troca catiônica e é resistente à degradação biológica. Segundo a autora, esses ensinamentos podem ser inspiradores para o desenvolvimento da Agroecologia na Amazônia, tema que será objeto de debate no próximo Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA-Agroecologia), pela primeira vez realizado na região.
Irene Cardoso, a atual presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (instituição promotora do CBA-Agroecologia), concedeu entrevista na qual aborda questões relativas ao manejo agroecológico dos solos tropicais, enfatizando a relevância de tal temática ser assumida com maior profundidade pelas políticas públicas, em particular, aquelas articuladas pela Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (pág. 42). Ao identificar a ausência de medidas específicas nessa direção no Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), a presidente da ABA-Agroecologia aponta a necessidade de reparação dessa ausência no segundo Plana- po, que terá vigência a partir de 2016.
Tal preocupação é da mais alta relevância, à luz dos cenários que se apresentam no presente momento histórico. De um lado, estima-se que 30% dos solos com potencial agrícola do planeta já foram degradados pelo mau uso. Por outro, adentramos um cenário de alterações climáticas resultantes da ação antrópica sobre a biosfera que já afeta a capacidade de produção agrícola. Esse quadro é ainda mais preocupante em um país como o Brasil que, apesar de sua extensão territorial, historicamente ancorou sua lógica de desenvolvimento no uso predatório dos recursos da natureza, sobretudo se valendo de uma agricultura com características extrativistas que foi modernizada a partir dos anos 1960 com tecnologias incompatíveis com a nossa realidade ecológica.
O Ano Internacional dos Solos é uma oportunidade ímpar para refletir sobre essa questão crucial para o nosso futuro comum. Sua celebração na sequência do Ano Internacional da Agricultura Familiar, quando a Agroecologia foi amplamente afirmada como o caminho mais indicado para o desenvolvimento agrícola, reforça a necessidade de profundas mudanças institucionais de forma a que novas relações entre a sociedade e a natureza sejam estabelecidas.
Manoel Baltasar Baptista Da Costa
Professor Colaborador do PPG/Uniara
Centro Universitário de Araraquara
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Revista V12N1 – Solos vivos