Hira Jhamtani, Purnomosidi e Putu Anggia Jenny
Como conseqüência da Revolução Verde, camponeses de toda a Indonésia foram incentivados a converter seus sistemas de produção para monocultivos de arroz. A produção aumentou consideravelmente, atingindo resultados impressionantes em escala nacional. Programas governamentais também incentivaram o consumo de arroz com o objetivo de enfrentar a desnutrição no país. Por meio do Programa Bem-estar Familiar do governo nacional, os camponeses conheceram, em 1994, os grãos brancos e polidos de diferentes variedades de arroz de alto rendimento. Essa iniciativa foi posteriormente substituída pelo Programa Arroz Para os Pobres, pelo qual o governo, logo após a crise econômica de 1997-1998, decidiu fornecer arroz subsidiado para as famílias pobres.
Atualmente, cada família pobre está habilitada pelo programa a adquirir 20 kg de arroz por mês, a um custo de 1 mil rúpias/kg (aproximadamente US$ 0,22/kg).
Entretanto, na comunidade de Giyombong, localizada no distrito de Bruno, em Java Central, muitas famílias preferem produzir seus próprios alimentos a ter que comprar o arroz subsidiado pelo governo. Os hábitos alimentares locais são distintos daqueles da maioria das comunidades javanesas. Por gerações, o leye, ou mandioca processada, é que tem sido o principal alimento básico. O arroz é consumido somente durante festividades ou ser- vido para visitas. “Se eu como arroz branco polido no café da manhã, às 11 horas estou de novo com fome”, diz Pak Cipto, um camponês da comunidade. “Mas, se como leye, posso trabalhar até a uma hora da tarde sentindo o estômago cheio.”
O LEYE E A AUTO-SUFICIÊNCIA ALIMENTAR
Giyombong é um excelente exemplo de uma comunidade auto-suficiente em alimentos, graças aos sistemas de produção diversificados que se baseiam no em- prego de recursos locais. Os camponeses plantam quatro variedades de mandioca, conhecidas localmente como Palengka, Randu, Lanteng e Tela Pait ou Jawa Ireng. O plantio da mandioca é feito em todos os tipos de terra e ocupa quase um quarto da área disponível para cada família. O arroz de sequeiro (arroz gogo) é plantado na estação chuvosa em sistema de rotação com a mandioca. Já as hortaliças e outros cultivos de raiz, tais como batata-doce, gengibre e inhame, são plantados nas outras estações em associação com a mandioca. A rotação e a associação dos cultivos são realizadas de forma a sempre atender às necessidades de alimentos e de dinheiro das famílias.
A tradição do consumo de leye teve início na época colonial como uma estratégia de sobrevivência dos camponeses frente à política de cultivo forçado imposta pelos holandeses. Cada família era obrigada a cultivar 2/3 de suas terras com espécies para a exportação em benefício dos colonizadores. Dessa forma, restava apenas 1/3 das terras para os cultivos alimentares. Em Giyombong, os agricultores conseguiram assegurar uma produção alimentar suficiente ao combinar os cultivos de arroz, de mandioca e de hortaliças nessas limitadas áreas disponíveis. Logo descobriram que o processamento da mandioca em leye constituía uma rica fonte de carboidratos que poderia ser armazenada como garantia para eventuais que- das na produção.
Em função de sua localização isolada e das dificuldades de acesso (a estrada só foi concluída em 2002), Giyombong não recebeu os programas governamentais de irrigação e de “melhoria da agricultura”, o que contribuiu para que se diferenciasse de outras comunidades da região. Esse fato explica o esforço dos camponeses locais para manter suas estratégias para assegurar a auto-suficiência alimentar fundamentadas em sistemas integrados de produção.
ENRIQUECENDO A DIETA LOCAL
A melhoria do nível nutricional da população tem sido o objetivo de programas de organizações governamentais e não-governamentais. Cabe ressaltar que a promoção de fontes diversificadas de alimentos acessíveis às famílias pobres tem se mostrado uma abordagem mais simples e bem-sucedida para enfrentar a desnutrição do que o incentivo ao consumo de um único cultivo. A diversidade de cultivos produzidos organicamente, associada à rotação com cultivos de baixo valor nos mercados, mas com alto conteúdo de micronutrientes e proteínas, pode facilmente enriquecer a dieta e melhorar o nível de saúde das famílias. Nesse sentido, a revalorização de espécies e variedades de plantas subutilizadas tem sido uma das estratégias empregadas pelos programas. Além de serem facilmente encontradas localmente, essas espécies costumam ter boa resistência a pragas, a doenças e aos estresses climáticos (secas, excesso de chuvas, etc). A reintrodução, a seleção e o melhoramento de variedades adaptadas localmente também contribuem para enfrentar as deficiências de micronutrientes na alimentação dos camponeses.
Essa foi a estratégia utilizada por Gita Pertiwi, uma ONG baseada em Solo (Java Central), para reintroduzir, no povoado de Tegiri, variedades locais de feijão e, assim, diversificar a produção e o consumo alimentar. Desde os anos 1980, as abordagens da Revolução Verde empregadas pelo governo alteraram os sistemas de produção integrados que predominavam nessa comunidade. Os agricultores tornaram-se dependentes de variedades de alto rendimento, do uso de agrotóxicos e de adubos sintéticos que, no longo prazo, prejudicam o solo e reduzem a produtividade. Com o sistema de monocultura, os agricultores deixaram de plantar feijões e outros cultivos, concentrando-se somente no arroz.
Os agricultores sabiam que organismos importantes como minhocas e microorganismos não sobrevivem em solos degradados. Portanto, a intervenção inicial da Gita Pertiwi foi orientada justamente para a conservação do solo com a recuperação da prática da adubação orgânica junto aos agricultores. Com um grupo de mulheres agricultoras, também trabalhou a adoção de práticas de manejo integrado de pragas, de produção de adubo orgânico e de inseticidas naturais. Outra forma de melhorar a estrutura do solo foi a reintrodução do cultivo de leguminosas locais. Além disso, por meio de atividades de identificação de variedades locais de feijão, realizadas pela equipe da Gita Pertiwi, junto com os agricultores, estudantes e professores das universidades locais, foram resgatadas 32 variedades na área em torno de Tegiri.
Durante o processo, as agricultoras do grupo puderam perceber os problemas decorrentes do uso dos adubos sintéticos e dos agrotóxicos. Foram orientadas a observar as condições em que se encontravam seus solos e cultivos, a presença de pragas e a demanda de água pelas plantas cultivadas. A equipe da ONG, por sua vez, analisou as dificuldades encontradas na reintrodução das variedades locais de feijão, um primeiro passo considera- do essencial na estratégia do trabalho. Identificaram, entre elas, a disponibilidade insuficiente de sementes, a presença de toxinas em algumas variedades de feijão (um perigo potencial para animais de criação), assim como o fato de que o processamento de alguns tipos de feijão representava uma atividade tediosa, sobretudo para a nova geração de agricultores. Outro aspecto importante foi que alguns feijões não têm valor nos mercados.
Para superar esses problemas, a equipe da Gita Pertiwi decidiu adquirir mais conhecimento sobre o processamento de feijões e identificar agricultores que ainda tivessem essas sementes e que dominassem conhecimentos relacionados ao seu plantio e processamento. Trabalhos junto com universidades locais também foram desenvolvidos para que outros conhecimentos e inovações relevantes fossem gerados.
Depois de várias safras, as mulheres participantes reconheceram as vantagens de um sistema de cultivo mais diversificado. Percebendo que as variedades locais crescem bem com pouca água, começaram a plantar milho associado a elas na estação seca. As variedades locais também foram cultivadas nas bordas das lavouras de arroz irrigado durante a estação da chuva. Experiências demonstraram ainda que esses feijões são bons adubos verdes, além de protegerem as plantas jovens de milho e de arroz.
A incorporação de feijões na agricultura local trouxe benefícios econômicos e à saúde das famílias. Por estarem envolvidas no processo, as mulheres utilizaram os feijões visando a assegurar uma dieta diversificada para a família, melhorando a nutrição. Os excedentes são vendidos no mercado local uma vez por semana, o que aumenta a renda familiar. Descobriu-se também que as variedades locais pouco utilizadas (conhecidas como koro) contêm proteínas que são comparáveis à soja. Além disso, muitos desses feijões podem ser consumidos quando ainda novos e verdes, enquanto os feijões secos podem ser transformados em tempe (bolo de feijão fermentado) e lanches, ou até molho doce, substituindo o tradicional molho doce de soja. Um exemplo é o koro glinding – feijão fava (Phaseolus lunatus ) – que pode ser processado em molho doce (da mesma forma que o molho de soja). Finalmente, a Gita Pertiwi também desenvolveu e compartilhou receitas culinárias utilizando esses feijões, sempre baseadas nos sistemas tradicionais de alimentação.
UMA ALTERNATIVA A ABORDAGENS CONVENCIONAIS
Os exemplos de Java Central revelam o quanto é fundamental observar e levar em conta os sistemas de agricultura e das culturas alimentares locais quando se tem por objetivo alcançar a segurança alimentar e nutricional. Embora os camponeses em geral consigam produzir alimentos em quantidades suficientes, o enfrentamento da desnutrição também depende da qualidade e da variedade dos alimentos consumidos.
Os dois exemplos apresentados mostram, portanto, a importância de procurar entender os sistemas alimentares e de produção locais, pois eles podem fornecer a solução aos problemas de desnutrição enfrentados pela população rural. É nesse sentido que o conhecimento local exerce grande importância nas estratégias de combate à fome e à desnutrição.
Hira Jhamtani, Purnomosidi e Putu Anggia Jeny
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Referências Bibliográficas
BRANDT, K. Issue paper: organic agriculture and food utilization (Documento apresentado na Conferência Internacional sobre Agricultura Orgânica e Segurança Alimentar. FAO), Roma, 2007.
WIDIANARKO, B. et. al. Menuai polong: sebuah pengalaman advokasi keragaman hayati. Jakarta, Indonésia: KEHATI Foundation e Gita Pertiwi, 2003.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N4 – Superando a desnutrição com cultivos e sistemas alimentares locais