Paulo Henrique Mayer
A região metropolitana de Curitiba (PR) vivencia grave crise socioambiental que tem sido responsável pela inviabilização econômica e social de um número crescente de unidades produtivas familiares. Em grandes traços, essa crise pode ser caracterizada pela combinação do empobrecimento da numerosa agricultura familiar da região, resultante da insustentabilidade econômica e ambiental de seus agroecossistemas, com processos de concentração de renda e terra engendrados pela expansão de atividades empresariais dos ramos da mineração e do reflorestamento homogêneo.
Embora não tenha incorporado integralmente os padrões produtivos da “Revolução Verde”, a agricultura familiar da região, em sua grande maioria, adota manejos tradicionais que, no atual contexto, têm levado ao esgotamento da fertilidade natural dos solos e à degradação das fontes de água. Seus produtos são mal-remunerados e chegam aos mercados por meio de uma cadeia de intermediação que se apropria de parte significativa da renda gerada.
Diante desse panorama estrutural adverso, um número crescente de grupos e organizações da agricultura familiar se mobiliza para construir e disseminar alternativas técnicas, econômicas e sócio-organizativas para o enfrentamento das dificuldades. Assessorados pela Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (Aopa), esses grupos vêm promovendo ações em diferentes campos que, juntas, contribuem para a promoção de níveis superiores de sustentabilidade nos agroecossistemas geridos pela agricultura familiar da região.
FORTALECIMENTO DE PROCESSOS ORGANIZATIVOS
Os baixos níveis de organização associativa é uma característica da agricultura familiar na região. Recentemente, esse quadro vem sendo modificado com a criação e dinamização de organizações de base voltadas para o desenvolvimento local e a emergência de um importante espaço de articulação regional, o Fórum das Organizações da Agricultura Familiar do Vale do Ribeira. Com objetivo de elaborar e executar propostas de políticas públicas destinadas à promoção da agricultura familiar, o Fórum congrega várias associações e sindicatos de trabalhadores da agricultura familiar, ONGs, como a Aopa e o Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser), e cooperativas de crédito dos municípios de Itaperuçú e de Cerro Azul (Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária – Cresol). A luta por direitos básicos de cidadania – infra-estrutura viária, serviços públicos de educação e de saúde –, bem como por políticas orientadas para o fomento da agricultura familiar – sistemas de crédito e de formação adequados, garantia da posse, documentação e titulação da terra –, faz parte do cotidiano de debates do Fórum. Além disso, as reuniões mensais têm se configurado como importantes oportunidades para a convivência inter-institucional e o aprendizado mútuo sobre diferentes estratégias para a promoção da transição agroecológica.
A constituição de grupos ou associações de agricultores vinculados à Rede Ecovida de Agroecologia tem sido outro desdobramento das ações nesse campo do fortalecimento organizacional. Vinte e cinco grupos, integrados por 302 famílias, estão hoje articulados no núcleo regional, que tem sede em Curitiba, e têm obtido o selo de qualidade ecológica da Rede. Cabe assinalar que ter um plano de conversão ecológica da propriedade é uma das condições para que a associação seja aceita pela Rede.
Algumas “portas de entrada” para trajetórias de transição agroecológica vêm sendo exploradas pelas organizações da agricultura familiar vinculadas ao Fórum. Cada uma delas encerra potencialidades e limites que merecem ser destacados.
ACESSO A MERCADOS
Os processos pioneiros de conversão ecológica de sistemas de produção na região metropolitana de Curitiba se deram principalmente por meio de iniciativas de famílias organizadas para comercializar seus produtos em redes de supermercados e em feiras ecológicas da capital paranaense. Embora sejam importantes canais de venda, eles apresentam enormes limitações quando se leva em conta o número crescente de famílias e grupos de agricultores(as) da região envolvido nos processos de transição. Vários componentes estruturais desses mercados colocam obstáculos ao acesso qualificado da ampla maioria das famílias agricultoras. Trata-se, portanto, de opções mercadológicas acessíveis a poucos agricultores que, de forma pioneira e persistente, conseguiram construir relações com seus consumidores.
Frente às limitações estruturais desses mercados, as entidades do Fórum decidiram promover ações de âmbito local e regional no sentido de estabelecer “circuitos de comercialização” alternativos na grande Curitiba e nos próprios municípios em que os alimentos são produzidos. Organizar as demandas de consumo das famílias de agricultores é uma dessas estratégias experimentadas. Ela se fundamenta na óbvia constatação de que, além de produtoras, essas famílias são também consumidoras de alimentos.
O acesso ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal tem sido outro caminho adotado para viabilizar a comercialização dos produtos das famílias associadas às organizações do Fórum. Somente no ano de 2006 o volume de recursos alocado pelo PAA, por meio das articulações feitas pelo Fórum, ultrapassará um milhão de reais. Esses recursos serão destinados principalmente à compra de alimentos para merenda de escolas públicas dos municípios da região. Para operar com sucesso um programa dessa natureza e nessa escala, foi necessário tecer uma complexa teia de relações políticas e institucionais.
Essa interação com as escolas, proporcionada pelo programa PAA, vem permitindo que sejam realizados debates na rede escolar pública sobre a qualidade alimentícia da merenda, os problemas de contaminação de alimentos por agrotóxicos, os impactos do desflorestamento e da poluição do solo e da água, entre outros temas afins.
Essa oportunidade de mercado também vem suscitando, em meio aos grupos de produtores envolvidos, debates sobre planos de conversão dos sistemas produtivos. Com isso, novos métodos de manejo, que permitem a renovação da fertilidade dos solos, que facilitam e diminuem a penosidade do trabalho e que alteram positivamente as relações de trabalho na família, vêm sendo gradualmente incorporados às práticas cotidianas.
AUTO-ABASTECIMENTO FAMILIAR
A especialização produtiva com foco nos mercados, induzida pelos valores da modernização agrícola disseminados na região, fez com que muitas famílias deixassem de produzir parte de suas próprias demandas alimentares. Assim, a produção destinada ao autoconsumo das famílias tem sido um tema mobilizador de muitas iniciativas que reforçam estratégias de conversão produtiva dos agroecossistemas.
A produção de pequenos animais, sobretudo de ovinos, caprinos e galinhas caipiras, é uma das frentes que vêm sendo estimuladas para atender às necessidades alimentares das famílias. O pequeno criatório permite o aumento da qualidade do abastecimento nutricional das famílias agricultoras, proporcionando também novas oportunidades para a geração de renda.
O desenvolvimento das hortas domésticas tem sido outra linha de ação nesse sentido. Além de serem espaços manejados próximos às residências que ofertam parte significativa das demandas alimentares das famílias, as hortas apresentam o potencial de integrar mulheres agricultoras nos debates relacionados à transição agroecológica
INOVAÇÃO TECNOLÓGICA
Diferentes frentes de inovação nas práticas de manejo dos agroecossistemas têm sido estimuladas junto aos grupos envolvidos em processos de transição agroecológica na região. No conjunto, elas proporcionam melhores condições para o funcionamento econômico e eco- lógico das unidades de produção e para a otimização do trabalho das famílias.
Sistemas Agroflorestais (SAFs) estão sendo desenvolvidos com o objetivo de qualificar a mão-de-obra da família para uma produção de alimentos abundante e escalonada durante todo o ano. Os produtos dos SAFs se destinam principalmente ao consumo familiar, mas também podem ser comercializados quando há excedentes.
Métodos de manejo ecológico de pastagens, como o “pastoreio racional Voisin”, também têm sido estimulados visando o aumento da fertilidade e da produtividade das áreas pastejadas, a melhoria da qualidade de vida dos animais e a diminuição da penosidade do trabalho das famílias. O plantio de árvores nos pastos é realizado para aumentar as áreas de sombreamento para os animais e incrementar a produtividade das pastagens.
O debate sobre a crescente escassez de água na região colocou para os grupos a necessidade de alteração de práticas tradicionalmente consagradas que interferem negativamente sobre a economia hídrica dos sistemas produtivos. Métodos de irrigação eficientes no emprego da água e técnicas de proteção de fontes, de uso racional de recursos hídricos e de revitalização de nascentes vêm sendo desenvolvidas e disseminadas nesse sentido. Com efeito, os debates sobre o desflorestamento e a proteção das nascentes, das matas ciliares e das reservas legais afloram regularmente nos grupos envolvidos em processos de conversão agroecológica.
Outro tema importante tratado pelos grupos é a questão do manejo e da conservação da fertilidade dos solos. Práticas de controle de erosão e manutenção da fertilidade natural vêm sendo aplicadas amplamente. Assessorado pela Aopa, o Fórum criou um banco de sementes crioulas e de espécies de adubos verdes para subsidiar a disseminação dessas práticas conservacionistas. Esse banco tem permitido a introdução de centenas de variedades de espécies destinadas à adulação verde, à formação de pastos, à produção de artesanato e ao consumo alimentar das famílias.
EDUCAÇÃO AGROECOLÓGICA
Um curso técnico pós-médio em agroecologia foi criado a partir de uma parceria entre a Aopa, organizações da agricultura familiar, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), o governo do Estado do Paraná e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A idéia era dar aos agricultores escolhidos pelas comunidades e grupos envolvidos em processos de transição agroecológica a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos teóricos e práticos. O curso foi concluído em maio de 2006 e contou com 22 semanas de aulas presenciais e outras 22 de atividades nas comunidades. Todos os educandos desenvolveram ações práticas em suas propriedades e junto aos grupos de agricultores aos quais pertenciam. A principal atividade foi a elaboração de planos de conversão da propriedade, envolvendo aspectos ambientais, sociais, econômicos e culturais. Esses planos foram construídos junto com os grupos, com cada família indicando o que seria desenvolvido e estipulando a época e o prazo de execução.
A TRAJETÓRIA DO GRUPO SÃO SEBASTIÃO
O grupo de São Sebastião, do município de Cerro Azul, localizado no Vale do Ribeira, expressa bem os resultados do conjunto das ações que vêm sendo empreendidas para a promoção da transição agroecológica na região. Composto por 11 famílias, o grupo praticava formas de agricultura tradicional, com sistemas produtivos compostos por cultivos anuais manejados segundo o método de pousio, roça e queima (localmente denominado “roça de toco”), por áreas cobertas por pastagens de Brachiaria e plantios de Citrus para a venda.
O processo de conversão foi acelerado, uma vez que a maioria das famílias do grupo nunca havia utilizado agrotóxicos e adubos de síntese química em seus sistemas. Após dois anos de início da transição, as famílias implantaram sistemas agroflorestais, desenvolveram hortas comerciais, introduziram o método do pastoreio racional Voisin, criaram um banco genético vivo de sementes de adubação verde, cereais e pastagens e estruturaram onze sistemas de irrigação de hortaliças. Ações voltadas para a proteção de fontes e para o aproveitamento dos resíduos animais para a fertilização dos solos também vêm sendo implementadas pelo grupo.
Essas iniciativas motivaram as famílias a se organizarem como grupo e a se associarem à Rede Ecovida de Agroecologia. Desde abril de 2006, seus produtos estão sendo certificados pelo processo participativo da Rede, o que lhes garante o acesso ao espaço de comercialização na feira ecológica de Curitiba. Além do incremento na renda gerado com a diversificação produtiva e com a venda direta, as inovações agroecológicas introduzidas nos sistemas proporcionaram melhoria significativa na produção para o autoconsumo. Algumas famílias chegam a consumir o equivalente a R$ 1,1 mil mensais de alimentos produzidos na própria propriedade.
Nos anos 2005 e 2006, o grupo também se beneficiou do PAA, sendo que, desde que obteve a certificação ecológica pela Rede Ecovida, vem conseguindo um sobre-preço de 30 % nos produtos comercializados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência que vem sendo desenvolvida na região metropolitana de Curitiba evidencia que a transição agroecológica é um processo complexo, não podendo se limitar a medidas de substituição de insumos visando simplesmente “descontaminar” os produtos para acessar mercados de nicho. A transição deve ser concebida de forma integrada, com processos mais amplos que levem ao desenvolvimento socioambiental. Exige, portanto, articulações entre grupos e instituições para que as políticas públicas sejam influenciadas em favor da promoção do desenvolvimento em escalas que vão desde o local até o nacional. Processos de transição agroecológica devem ser socialmente envolventes, de forma a beneficiar um grande número de agricultores familiares e consumidores urbanos para que, de fato, tenham capacidade de promover mu- danças sociais e ambientais positivas para o conjunto da sociedade.
Paulo Henrique Mayer:
engenheiro agrônomo, membro da equipe da Aopa, sócio-fundador da Rede Ecovida de Agroecologia e doutorando em meio ambiente e desenvolvimento da UFPR
[email protected]
Baixe o artigo completo:
Revista V3N3 – Transição agroecológica na região metropolitana de Curitiba