A longevidade da agricultura não poderá ser assegurada por um período histórico superior ao de algumas poucas gerações humanas se forem mantidos os mesmos níveis de consumo de recursos naturais não-renováveis (fertilizantes derivados do petróleo), o uso crescente de agrotóxicos que contaminam o meio ambiente por períodos de tempo incertos ou não claramente conhecidos, a redução brutal da biodiversidade natural e a exclusão social de um enorme contingente de famílias de agricultores. A agricultura moderna ou convencional é insustentável como demonstram estudos, pesquisas científicas e observações realizadas com seriedade e independência em várias partes do mundo. Gradualmente o padrão convencional de produção agropecuária degrada as bases de recursos naturais que até agora lhe deram sustentação. O mesmo se pode dizer do processo convencional de desenvolvimento rural – que extrapola a noção mesma de agricultura ao agregar atividades não–agrícolas –, uma vez que também nesse âmbito a sustentabilidade econômica, social e ecológica encontra-se ameaçada.
Buscar outros rumos para a agricultura e o desenvolvimento rural se torna, portanto, um imperativo socioambiental da maior relevância no começo deste novo milênio. A transição agroecológica, referência-chave das motivações e objetivos de muitos técnicos, estudiosos e militantes, pode ser definida como um processo gradual, contínuo e multilinear de mudança nas formas de manejo dos agroecossistemas. Como propósito mais geral, está a passagem dos atuais padrões de desenvolvimento rural ou de sistemas de produção de baixa sustentabilidade para modelos de agricultura e de manejo rural que privilegiem e incorporem princípios, métodos e tecnologias de base ecológica. Isso implica não somente a busca de maior racionalização produtiva com base nas especificidades biofísicas de cada agroecossistema, mas também uma mudança nas atitudes e valores dos atores sociais em relação ao manejo e conservação dos recursos. A Agroecologia, como campo de estudos de caráter multidisciplinar, integra e articula conhecimentos de diferentes ciências, assim como saberes populares, permitindo justamente que se construam estratégias e condições para apoiar esse processo de transformação, tendo-se como referência os ideais da sustentabilidade a médio e longo prazos.
A transição agroecológica pode ser considerada uma opção tomada por uma sociedade num dado momento histórico, com base em um adequado processo de análise e compreensão dos riscos e limites hoje enfrentados pelas comunidades rurais, agricultores e consumidores em geral. Mas ela também pode representar uma necessidade inadiável dessa mesma sociedade, a partir da percepção clara da aproximação de um colapso no processo produtivo, fruto de nossas práticas e opções tecnológicas e organizativas que contrariam os referenciais da sustentabilidade. Em qualquer caso, a transição agroecológica, enquanto processo social orientado para o alcance de índices mais equilibrados de resiliência, produtividade, estabilidade e eqüidade nas atividades agrárias, sempre estará condicionada e dependente dos graus de diversidade e de complexidade social e ecológica, o que também significa dizer que vai além dos aspectos meramente tecnológicos da produção rural. Como exemplo das novas exigências está a importância das iniciativas locais na construção de estratégias e conhecimentos, assim como o protagonismo dos distintos atores sociais na definição das novas pautas de desenvolvimento agrícola e rural.
Mestres agroecólogos, como Stephen Gliessman e Miguel Altieri, nos alertam a respeito dos níveis da transição agroecológica e sua complexidade inerente, sugerindo – como referência geral e didática – a existência de pelo menos três níveis fundamentais, que vão do mais simples ao mais complexo: a racionalização do uso de insumos, a substituição de insumos e o redesenho de agroecossistemas. No terceiro caso, espera-se que os agroecossistemas redesenhados funcionem com base em um conjunto novo de processos ecológicos. Com sua perspectiva sociopolítica de interpretação agroecológica, o professor Eduardo Sevilla Guzmán nos ensina que a transição para agroecossistemas sustentáveis sempre vai depender de que os processos ecológicos emergentes venham acompanhados de um conjunto novo de construção social. Estamos nos referindo, nesse sentido, ao social e ao ambiental como partes de um único processo: co-evolução entre cultura humana e meio ambiente ou evolução integrada entre Sociedade e Natureza.
Nesse contexto, os artigos deste número da Revista Agriculturas nos dão uma mostra da diversidade de formas de manifestação ou de níveis de alcance dos processos de transição agroecológica, que podem ser visualizados e servir como referência teórica e prática desde o âmbito local (uma propriedade rural), regional e até de todo um país. Em perspectiva mais macro (agroecossistema visto como um país), o artigo sobre a experiência cubana, de Julia Wright, mostra a complexidade do processo e as muitas razões que podem obrigar os atores sociais a concentrar esforços na promoção da transição agroecológica, apesar da inexistência de políticas públicas emanadas do Estado. O texto traz importantes análises sobre limites e possibilidades para a continuidade e/ou aperfeiçoamento da transição para uma agricultura orgânica ou agroecológica de maior sustentabilidade. O artigo Transição na agricultura no semi-árido africano, assinado por Michael Mortimore, evidencia que as comunidades locais têm iniciativas próprias e capacidade para promover ajustes inovadores em seus sistemas produtivos com base no uso inteligente dos recursos localmente disponíveis. Apresenta ainda uma crítica aos programas de desenvolvimento e às políticas públicas convencionais exatamente por sua incapacidade de perceber tais iniciativas e de reforçá-las em benefício das próprias populações.
Entre as experiências brasileiras, o texto de P. H. Mayer apresenta uma concepção bastante abrangente do processo de transição agroecológica, ao abordar os esforços do trabalho de grupos e associações de agricultores familiares na região metropolitana de Curitiba (PR) “para construir e disseminar alternativas técnicas, econômicas e sócio-organizativas para o enfrentamento da atual crise”. Muitas famílias já possuem selo de qualidade ecológica da Rede Ecovida, o que significa um passo à frente no fortalecimento das estratégias de conversão ecológica das propriedades. Já F. Marciel e seus colegas nos brindam com valiosas informações sobre a experiência que vem sendo realizada por comunidades de agroextrativistas na região amazônica, no sentido de aprimorar o manejo tradicional de açaizais nativos. Fundamental nesse caso é a valorização do contexto histórico-cultural e o reconhecimento da importância de se implementar métodos de trabalho que permitam a integração entre formas tradicionais e científicas de produção de conhecimento inerente ao processo de transição agroecológica. No texto assinado por A. L. R. Gonçalves e A. B. Model, são analisadas as principais motivações que levaram os agricultores familiares no litoral norte do Rio Grande do Sul, assessorados pelo Centro Ecológico, a adotar práticas e formas de organização segundo o enfoque agroecológico. Embora as razões de natureza econômica tenham maior relevância na tomada de decisão desses agricultores, o estudo conclui que “a disseminação da agricultura ecológica não se processará sem que novos valores de convivência social e ambiental sejam construídos de forma integrada às mudanças nas práticas de manejo implementadas pelas famílias agricultoras”. O artigo Restauração de paisagens e desenvolvimento socioambiental em assentamentos rurais do Pontal de Paranapanema, de L. Cullen Jr. e seus colegas, é um exemplo muito concreto da manifestação da transição agroecológica como algo complexo e que não se restringe a algumas práticas na agricultura, ao vincular a conservação com a reforma agrária e a extensão agroflorestal. Os autores concluem que “no Pontal há uma evolução de uma reforma agrária tradicional para uma reforma agrária diferenciada, inovadora e benéfica tanto para humanos quanto para não-humanos ”.
Para finalizar, temos que avançar na compreensão da transição agroecológica não como uma volta ao passado, mas sim como avanço decisivo em direção a um “futuro sustentável”, tanto da agricultura como do desenvolvimento rural, a partir das lições tiradas dos erros e acertos de nossa larga história humana e agrícola. Como propôs o professor Ignacy Sachs, talvez um dia possamos dispensar o adjetivo sustentável, seja da expressão “agricultura sustentável”, seja da expressão “desenvolvimento sustentável”. A transição agroecológica, como referida nos artigos publicados neste número, aparece justamente como espiral de luz e como referencial prático para orientar essa larga e desafiadora caminhada cuja meta é a sustentabilidade em seu sentido multidimensional. Esperamos que a sua leitura resulte em novos e melhores frutos para todos aqueles que apostam na maior participação dos atores sociais e na prudência tecnológica com compromisso e justiça social.
José Antônio Costabeber
Extensionista Rural da Emater/RS-Ascar –Santa Maria (RS)
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Revista V3N3 – Transição Agroecológica: rumo à sustentabilidade