Michael Mortimore
As regiões semi-áridas da África abrangem 43% de todo o continente, excluídas as áreas de deserto. Nelas, vivem 268 milhões de habitantes, o que corresponde a 40% da população africana. As secas freqüentes e outras adversidades ambientais são freqüentes ameaças aos produtores rurais. A pobreza é generalizada e, em alguns países, a insegurança alimentar e a dependência de programas assistencialistas é regra geral. Além dos riscos associados à instabilidade climática, os recursos naturais dão sinais de degradação (desertificação). Projetos de desenvolvimento em geral têm falhado e são poucos os governos que alocam recursos suficientes para a promoção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento.
O semi-árido africano não é um todo homogêneo – os índices pluviométricos anuais podem variar de mais de 1.000 mm a menos de 250 mm. Variados tipos de solo e usos da terra são vistos. A maior parte das políticas de grande abrangência não funcionam porque não são desenhadas com a flexibilidade necessária para se ajustar a essas diversidades.
São as populações locais que têm demonstrado grande capacidade de adaptação às características ambientais dessas regiões, tendo respondido de forma dinâmica às oportunidades que lhes aparecem. Suas atividades econômicas se caracterizam pela constante inovação e experimentação. Nesse contexto de instabilidade ambiental, os conhecimentos e estratégias locais são recursos valiosos que muitas vezes não são valorizados pelos programas oficiais que apostam na introdução de novas tecnologias. Por essa razão, na maioria das vezes eles têm falhado.
INOVAR PARA SE ADAPTAR A MUDANÇAS DE LONGO PRAZO
A transição pode ser um processo longo que implica em mudanças nos sistemas de produção, na relação com os recursos naturais e nos modos de vida das famílias produtoras. É o resultado de vários fatores que interagem entre si – inclusive mudanças de longo prazo, como os índices de pluviométricos, o crescimento demográfico e a cultura material das populações.
Intervenções externas podem ser importantes na indução desses processos de transição, mas em geral elas têm sido equivocadas. Em um contexto no qual se verifica a estagnação ou mesmo a diminuição dos recursos de assistência técnica governamental, torna-se essencial compreender melhor os processos de transição promovidos espontaneamente pelas populações locais para que sejam promovidos modos de vida mais sustentáveis. Nesse sentido, cabe colocar a questão: podem as famílias do semi-árido implementar processos de transição para uma condição mais sustentável, apesar de todas as adversidades que enfrentam por viverem em situações de risco de crescente degradação ambiental?
A CONVIVÊNCIA COM AS VARIAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS
As populações do semi-árido africano sempre conviveram com mudanças ambientais nos contextos em que vivem. Em geral, essas mudanças fogem a seu controle e são imperceptíveis por serem resultado de processos que se iniciaram há muito tempo. As adaptações realizadas pelas populações dificilmente são percebidas por observadores externos já que elas também são implementadas em ritmos lentos.
Atualmente, já se dispõe de informações mais seguras sobre mudanças e variações ocorridas ao longo de grandes períodos – 40 anos ou mais – na África. Obtidos por meio da memória e conhecimento local, esses dados de longo prazo podem ajudar na elaboração de políticas públicas e de práticas inovadoras ajustadas às necessidades das populações do semi-árido. As mudanças ocorridas na região de Kano-Maradi, no norte da Nigéria e a leste de Níger, são bons exemplos nesse sentido.
A urbanização é um fenômeno que torna crítica a questão demográfica nos países da África Ocidental. A capital do Níger, Niamey, por exemplo, contava com menos de 100 mil habitantes nos anos 60 e agora tem uma população de mais de um milhão. As estatísticas indicam que mais de 40% da população da Nigéria (que já ultrapassa os 100 milhões) já vivem nas cidades. Apesar da grande migração campo-cidade, a população das áreas rurais no semi-árido continuou crescendo.
Até a década de 1990, as populações rurais da região Kano-Maradi vinham dobrando a cada 30 anos. Isso significa que cada geração de agricultores dispunha de metade das terras para o cultivo do que a anterior. Em Kano, mais ao sul da região, cada produtor dispõe de me- nos da metade de um hectare de terra cultivável. Em Maradi, mais ao norte, os agricultores se sentem ameaçados pela escassez de novas terras, embora cada família ainda detenha, em média, 18 hectares.
Como a média das chuvas na região decaiu praticamente um terço entre as décadas de 60 e 90, a freqüência das secas aumentou. As perdas de safras causaram escassez de comida e a mortandade animal aumentou.
Para enfrentar esse quadro, as populações locais foram levadas a adotar novos procedimentos de manejo agrícola. Substituíram variedades de ciclo longo por outras de ciclo mais curto e de maturação mais rápida; intensificaram o cultivo nas áreas de baixio durante a estação seca; substituíram gado por animais menores e controlaram melhor as fontes de forragem, o que permitiu a intensificação da atividade pecuária. Dessas e de outras maneiras, as adaptações foram sendo realizadas no sentido de garantir a produção dos principais gêneros alimentícios em escalas que permitiram atender às necessidades básicas da população da região, apesar do aumento demográfico verificado no período.
As decisões sobre o manejo em contextos de alta variabilidade climática, como o verificado na região, são tomadas em função de análises da situação do momento. As chuvas podem cair a qualquer hora entre os meses de abril e julho e terminar inesperadamente, o que torna difícil predeterminar a melhor época para o plantio e para a execução de outras atividades de manejo. Se as chuvas pararem de cair no princípio da estação de cultivo em Kano, onde há dois períodos de colheita (o primeiro é o do milheto e o segundo o de sorgo, caupi e amendoim), o trabalho será orientado prioritariamente para a capina e para as colheitas realizadas no segundo período.
ASSEGURANDO A PRODUTIVIDADE
As famílias de agricultores cultivam campos de milheto e de sorgo para assegurar sua própria alimentação básica. Quando o ano climático é bom, os agricultores de Kano conseguem obter produções para atender às suas necessidades, apesar dos tamanhos reduzidos de suas propriedades. Conseguem isso realizando adubação intensiva com resíduos orgânicos, plantando consórcios de milheto ou de sorgo com espécies fixadoras de nitrogênio atmosférico, como o feijão caupi ou o amendoim, e capinando os campos de cultivo diversas vezes durante o início da estação do plantio. O material recolhido das capinas é fornecido como forragem para os animais. As áreas de cultivo são apenas sulcadas para que a umidade do solo seja preservada.
No norte de Maradi onde a disponibilidade de terra já foi abundante e a mão-de-obra escassa, a prática de pousio era comum. Com a diminuição da disponibilidade de terra e com o aumento demográfico, os pousios têm se tornado mais curtos ou inviáveis, provocando queda nas produtividades dos cultivos. Para melhorar o desempenho produtivo de suas lavouras, os agricultores de Maradi passaram a adotar algumas práticas de integração agricultura-pecuária. Têm deixado seus animais – ou os pertencentes a pastores nômades – pastarem nas áreas de cultivo nos períodos de entressafra. Durante as épocas de cultivo, os animais são mantidos presos. Essa medida exige o aumento de trabalho das famílias já que passam a ter que fornecer forragens aos animais confinados. A introdução de novas espécies geradoras de renda nas áreas de cultivo e o plantio e proteção de árvores nos sistemas produtivos têm sido outras estratégias adotadas espontaneamente pelas famílias agricultoras da região.
No passado, era possível estocar grãos por até três anos, o que evitava que as famílias fossem levadas à migração. Atualmente, porém, é comum que a produção de um ano seja toda consumida antes da próxima safra. Nos piores anos agrícolas, as adaptações desenvolvidas não são suficientes para compensar as safras perdidas. Nesses casos, muitos tomam a decisão de migrar em busca de meios alternativos de vida.
DIVERSIFICANDO FONTES DE RENDA E CANAIS DE COMERCIALIZAÇÃO
A especialização produtiva nas regiões semiáridas é uma aposta altamente arriscada. Essa é a razão pela qual tradicionalmente os agricultores buscam diversificar suas atividades. Na região Kano-Maradi, pequenos agricultores ingressaram no mercado agrícola global pela primeira vez por meio dos conselhos coloniais criados para promover a produção de amendoim e algodão para exportação. Na época, poucos produtores estavam dispostos a assumir os grandes riscos dessas atividades. Mantiveram seus plantios tradicionais e plantaram os cultivos para exportação em novas áreas. Atualmente, com a diminuição da disponibilidade de terras por família, essa opção praticamente não é mais viável. Por outro lado, essas alternativas de geração de renda pelo acesso aos mercados internacionais logo se mostraram inviáveis devido à queda dos preços das commodities e ao surgimento de doenças e pragas nas plantações.
Mais recentemente, a agricultura foi diversificada com o plantio de espécies com potencial de merca- do, tal como o gergelim em Kano e a chufa em Maradi. O gado produzido em ambas as regiões é cada vez mais transportado para cidades costeiras. Os mercados locais de alimentos tradicionais básicos cresceram.
As melhoria das estradas e o livre trânsito entre fronteiras, viabilizado por regulamentações da Comunidade Econômica da África Ocidental, têm permitido aos agricultores melhores condições de conseguirem oportunidades de trabalho temporário fora da agricultura.
Esse maior leque de oportunidades de geração de renda depende do fortalecimento dos mercados locais e regionais. Na região de Kano-Maradi, não há mais nenhum local tão remoto a ponto de não ter algum vínculo com os mercados.
A diversificação das estratégias de obtenção de renda pelas populações do semi-árido africano tem favorecido a plena participação dela na economia regional. Até o presente momento, essa evolução tem se dado praticamente sem qualquer apoio do Estado, que continua ignorando a contribuição que essas populações têm dado para o crescimento econômico nacional.
FOMENTANDO A TRANSIÇÃO
Nem todos os agricultores encontram-se na mesma situação. Inovações interessantes para uns talvez não sejam necessárias para outros, ou simplesmente não podem ser adotadas devido a obstáculos impostos pela pobreza, pela escassez de mão-de-obra, por limitações colocadas pelas relações de gênero ou outros fatores.
Em outros tempos, muitas intervenções realizadas por agentes externos não consideravam essas diferenças e propunham soluções únicas e padronizadas para os problemas das famílias da região. Atualmente, a abordagem de desenvolvimento que tem sido mais aceita é a que parte das demandas concretas das populações, considerando-se as especificidades que existem no interior delas.
Em vez de classificar as pessoas em duas simples categorias –“as que adotam” e “as que não adotam” as inovações propostas –, os programas de desenvolvimento devem reconhecer as diferenças existentes para responder melhor às necessidades e valorizar melhor as potencialidades dos grupos com os quais trabalham. Esse enfoque torna o serviço oferecido mais apropriado e relevante para fomentar a transição da agricultura para padrões mais sustentáveis.
O exemplo da região de Kano-Maradi demonstra a existência de um contínuo esforço realizado pela própria população local para se adaptar a mudanças ambientais e demográficas e garantir a produção de alimentos de forma a suprir suas crescentes necessidades de consumo. Demonstra também a capacidade dos pequenos agricultores para promover a transição para modos de vida mais sustentáveis sob circunstâncias adversas.
Michael Mortimore:
Drylands Research (Pesquisa do Semi-árido)
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Revista V3N3 – Transição da agricultura no semi-árido africano