Carlos Eduardo Siste, Osvaldo Ferreira Sarmento e Vany Martins Leite
Compartilhar um pequeno espaço de terra em torno de um açude capaz de captar e armazenar água de chuva em quantidade suficiente para viabilizar a agricultura irrigada no longo período seco do semiárido mineiro: eis a receita que motivou muitos(as) agricultores(as) familiares, em diferentes comunidades e municípios do Vale do Jequitinhonha, a somarem forças na busca por melhores condições de segurança hídrica e alimentar para suas famílias.
A prática da roça comunitária tem um valor pedagógico no sentido de desenvolver a união, a organização e a consciência de grupo (ESTERCI, 1984), princípios estes também aplicáveis aos açudes comunitários. A captação e o manejo da água de chuva, ao viabilizarem o cultivo de hortas e lavouras comunitárias irrigadas, incrementam os sistemas de segurança alimentar em comunidades rurais. Essa estratégia vem sendo estimulada e adotada, nos últimos dez anos, por programas e projetos apoiados pelo Fundo Cristão para Crianças junto a diversas associações comunitárias locais, tais como a associação Municipal de assistência infantil (amai), em Francisco Badaró, e a associação Jenipapense de assistência à infância (Ajenai), em Jenipapo de Minas. Essas organizações têm em comum o compromisso para com a defesa do direito das crianças e famílias que estejam em situação de risco social pela privação, exclusão e/ou vulnerabilidade de terem acesso à alimentação em quantidade e qualidade suficientemente adequadas à satisfação de suas necessidades.
Desde 1999, foram implantados mais de uma dezena de pequenos açudes em comunidades como empoeira, são João de Cima, Ribeirão de Areia e Santana. Hoje, muitas famílias dessas comunidades já podem desfrutar dos resultados do incremento e da regularidade da oferta de alimentos produzi- dos coletivamente no entorno desses açudes.
O CONTEXTO REGIONAL
A região do Vale do Jequitinhonha, localizada no Nordeste de Minas Gerais, tem sua dinâmica econômica notadamente afetada pelos intensos fluxos migratórios de mão-de-obra para outras regiões do país. Essa massa que sai em busca de trabalho e renda é, em grande parte, composta por homens adultos e jovens oriundos de comunidades rurais. De acordo com um levantamento da Pastoral do Migrante, em 2008 aproximadamente 100 mil trabalhadores deixaram a região (FACIOLI, 2009). Como consequência, as mulheres, sobretudo as mães que permanecem nas comunidades, assumem um papel funda- mental. Com sua força de trabalho na agricultura, tornam-se as únicas responsáveis pela manutenção de todos os mecanismos de acesso permanente à alimentação da família.
O potencial de chuva na região do Vale do Jequitinhonha é bastante variável e impõe limitações à prática da agricultura na estação seca do ano. Apesar disso, ainda que tomemos o ano de 2003 como sendo o de menor precipitação num período de 15 anos, verifica-se um considerável potencial de captação e armazenamento: aproximadamente 540 m³ de água de chuva por hectare.
Entretanto, outros fatores desfavorecem a infiltração e o armazenamento de água, tais como a presença de solos rasos, a significativa degradação da cobertura vegetal e o relevo suave ondulado, o que é agravado, normalmente, pela ocorrência de chuvas de curta duração e alta intensidade. Dessa forma, a maior parte da água de chuva é rapidamente escoada e drena- da pelos cursos d’água, muitos dos quais apresentam regimes intermitentes e/ou efêmeros, mantendo alguma vazão por curtos períodos de tempo.
ESTABELECENDO OS PROJETOS DE AÇUDES
Embora as técnicas de captação e manejo de escoamento superficial remontem ao passado, somente nos últimos anos elas têm recebido, por parte de pesquisadores das regiões desérticas e áridas do mundo, a abordagem técnica e a difusão que merecem (EVENARI, 1971 apud SILVA, 1981). A opção técnica pelos açudes foi feita inicialmente em caráter experimental, considerando que, em regiões semiáridas do Nordeste brasileiro, cerca de 90% do total precipitado são perdidos pelo fenômeno da evapotranspiração, enquanto 5% se perdem devi- do ao escoamento superficial (SILVA, 1981). Dessa forma, não havia (ou ainda não se conhecia) para essa região do semiárido garantias sobre a real capacidade dos pequenos açudes armazenarem água durante a longa estação seca, fornecendo água com regularidade para os cultivos irrigados.
Com base nesses pressupostos, foram implantados os primeiros açudes, dando início às experiências de modelagem do sistema açude-horta/lavoura comunitária. Para tanto, foi necessário o estabelecimento de tamanhos de áreas de cultivos supostamente compatíveis com o potencial hídrico dos açudes e o número de famílias participantes. Os grupos envolvidos tinham entre 10 e 20 famílias, enquanto a área total cultivada não excedia 1 hectare por grupo. Tanto a área do açude quanto a da horta foram doadas para o uso coletivo. O arranjo produtivo foi definido por cada grupo que estipulava o tamanho da parcela de área destinada a cada uma das famílias. O sistema de gestão da água adotado foi o coletivo, cabendo a cada um dos usuários zelar pelo manejo responsável do sistema de irrigação de sua parcela, normalmente realizado de forma manual com regadores, ainda que alguns pudessem adotar o sistema de aspersão ou gotejamento, dependendo do tipo de cultivo.
A EXPERIÊNCIA PIONEIRA DA COMUNIDADE DE EMPOEIRA
Situada a 12 km da sede do município de Francisco Badaró, a comunidade de empoeira é composta por 65 famílias agricultoras que tiram seu sustento do trabalho na roça e da criação de gado e pequenos animais. A comunidade vivenciou momentos de muitas dificuldades devido aos longos e repeti- dos períodos de estiagem que resultavam na perda de animais e lavouras. Até então, a principal fonte de água da comunidade era um poço artesiano com vazão insuficiente para atender às necessidades básicas das famílias e proporcionar a construção da tão sonhada horta comunitária.
Com a mobilização e o apoio técnico da amai, um grupo de sete famílias da comunidade começou a se organizar em torno do projeto que transformaria significativamente a difícil realidade: a construção de um pequeno açude comunitário para o cultivo da horta e para a dessedentação dos animais. Os recursos necessários foram captados pelo Fundo Cristão, junto ao Christian Children’s Fund inc., e investidos em 82 horas de máquina para escavação do açude, tela para cerca de proteção e construção de três bebedouros para animais distribuídos em pontos estratégicos dentro da comunidade.
A horta comunitária, que começou com um grupo de sete famílias, hoje já conta com 32, produzindo alimentos orgânicos que asseguram o sustento e a alimentação de qualidade para mais de 160 pessoas. Os resultados iniciais foram muito promissores e acabaram por influenciar e motivar outras famílias a entrarem para o grupo. Com isso, novos recursos foram destinados para a ampliação, tanto da capacidade do açude quanto da horta. Mas os avanços não pararam na melhoria significativa de qualidade e regularidade da alimentação desse grupo de famílias. Nos últimos anos, com o amadurecimento e maior organização do grupo, tem sido possível atrair e agregar novos parceiros, tais como: a Fundação Luterana, a Coordenadoria ecumênica de serviço (Cese), o Programa Mutirão pela segurança alimentar e Nutricional em Minas Gerais (Prosan) e o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), coordenado pela articulação do semiárido Brasileiro (ASA-Brasil). Também foram introduzidos outros projetos produtivos na comunidade (roça comunitária da cultura da mandioca, perfuração de um poço artesiano, construção de cisternas de placas e aquisição de um trator agrícola), com o objetivo de aumentar a produção e a produtividade da horta comunitária, permitindo, assim, o escoamento e a comercialização em comunidades vizinhas como parte do Programa de aquisição de alimentos (PAA) – compra direta do produtor e merenda escolar.
GOTAS DE ESPERANÇA
Outra experiência importante de açudes comunitários vem sendo desenvolvida recentemente em duas comunidades do município de Jenipapo de Minas. De contexto socioeconômico e ambiental bastante semelhante ao da comunidade de empoeira, as comunidades de Ribeirão de Areia e Santana estão a 10 e 17 km da sede e possuem 60 e 75 famílias, respectivamente. Com o apoio técnico da Ajenai e da Emater e com recursos captados junto ao Ministério da Cooperação econômica e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ), desenvolveu-se, no período 2006-2008, o projeto Gotas de esperança. Além de dois açudes (um com 300 e outro com 100 horas de máquina) e hortas comunitários, o projeto viabilizou a construção de duas tentas de farinha e uma casa de mel, visando incrementar a renda familiar. Nessas comunidades, as famílias sempre cultivaram pequenas hortas domésticas, porém, sempre limitadas pela disponibilidade de água, sobretudo nos meses finais da estação seca.
Na comunidade de Santana, um incidente, apesar de ter acarretado danos, acabou por produzir alguns aprendizados técnicos importantes para o dimensionamento dos açudes, uma vez que a primeira construção acabou se rompendo em função do grande volume de chuvas e demandou esforços e recursos complementares para a implantação de um novo açude. Hoje, Santana conta com um grupo que iniciou com sete famílias, todas atualmente envolvidas com a horta comunitária abastecida pelo açude. Essa comunidade também melhorou substancialmente as condições de acesso à água para consumo humano, com a construção de 50 cisternas por meio do P1MC.
Já na comunidade de Ribeirão de areia, existem atual- mente três grupos produtivos com quatro, cinco e seis famílias, cada qual organizado em torno de três pequenos açudes e suas respectivas hortas comunitárias. A expectativa é que, com o desenvolvimento dessas novas experiências, outras famílias venham a participar dos grupos e ampliar os benefícios proporcionados pelos açudes e hortas comunitários ali instalados.
ALGUNS APRENDIZADOS
De todas as experiências desenvolvidas foi possível extrair alguns aprendizados importantes. Sabemos hoje que pequenos açudes, quando bem manejados, são fontes sus- tentáveis de água para as condições do semiárido mineiro; possibilitam incrementos de produção alimentar pelos cultivos irrigados; desenvolvem o senso de responsabilidade pelo bem comum, facilitando sua gestão compartilhada; e conduzem ao melhor aproveitamento dos recursos hídricos disponíveis localmente.
Carlos Eduardo Siste
engenheiro agrônomo, assessor de Programas Sociais do Fundo Cristão para Crianças
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Osvaldo Ferreira Sarmento
técnico agrícola, educador ambiental e membro da Associação Municipal de Assistência Infantil (Amai)
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Vany Martins Leite
educadora social da Associação Jenipapense de Assistência à Infância (Ajenai)
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Referências Bibliográficas:
ESTERCI, N. (Org.) Cooperativismo e coletivização no campo: questões sobre a prática da igreja popular no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984. 160 p. (Cadernos do Iser, n. 16).
FACIOLI, i. (Org.) Vozes do Eito. Guariba: Eco.das.Letras, 2009, 80 p. il.
SILVA, a. de s.; PORTO, e. R.; GOMES, P. C. F. Seleção de áreas e construção de barreiro para uso de irrigação de salvação no trópico semiárido. Petrolina: Empraba-CPATSA, 1981, 43 p.
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Revista V7N3 – Açudes comunitários: uma estratégia para a segurança hídrica e alimentar no Vale do Jequitinhonha (MG)