Norman Uphoff
ANTIGAS VERDADES RECONSIDERADAS
Há vinte anos, qualquer uma das duas afirmações a seguir seria motivo de zombaria: “Os agricultores não necessitam arar seus campos para obterem os melhores resultados”, “Os agricultores que cultivam arroz irrigado não devem alagar seus arrozais para obterem maior produtividade”.
Como arar os solos e alagar os arrozais têm sido práticas dominantes há centenas de anos, as afirmações soavam como piadas para a maioria dos agricultores e pesquisadores. “Todos sabiam” que essas afirmações estavam erradas. Esse senso comum era sustentado por uma boa lógica, ainda que houvesse razões científicas para colocá-lo em dúvida.
As exigências agronômicas para a implantação de um cultivo e para o controle das plantas espontâneas pareciam determinar que a aração era uma prática necessária – ainda que agrônomos tivessem identificado que ela apresentava muitos efeitos nocivos, especialmente quando realizada profundamente, entre eles, a perda de nitrogênio e de matéria orgânica do solo; a perda da estrutura do solo; o aumento da erosão pelo vento e pela água; e o declínio de populações de minhocas e de outros organismos benéficos do solo. No entanto, a suposição dos agricultores e dos pesquisadores de que arar é essencial para o sucesso dos plantios tem sido revisada nas últimas décadas. O plantio sem aração, ou plantio direto, tem se mostrado vantajoso para a renda líquida dos agricultores e para o meio ambiente. Mesmo nos Estados Unidos, o centro mundial da mecanização em grande escala para o preparo do solo, mais de 30% das áreas cultivadas estão atualmente sob alguma forma de redução ou eliminação de mobilização do solo.
O arroz era considerado, na literatura e pelos agricultores, como sendo uma planta amante da água. Um texto de referência sobre arroz afirma, categoricamente: “A principal razão para alagar um arrozal é que a maioria das variedades de arroz mantém um crescimento melhor e tem produtividade mais alta quando se desenvolve em um solo alagado do que quando cresce num solo não-alagado”. Essa crença tem sido mantida, apesar das crescentes evidências em contrário e do conhecimento de que solos com oxigênio insuficiente são prejudiciais às raízes das plantas e à maioria dos organismos do solo. Nesse contexto, o sistema de intensificação de arroz (SIA) tem apresentado resultados que demonstram ser possível obter um aumento substancial da produtividade com 25% a 50% menos água do que a quantidade normalmente utilizada no sistema irrigado. Isso porque as condições do solo não-alagado oferecem muitas vantagens ao crescimento das plantas e à fauna do solo.
A lição a ser tirada desses dois exemplos de revisão do senso comum é que algumas práticas recomendadas há muito tempo podem, na realidade, ser limitantes se impedirem que os usuários e cientistas “criem enfoques inovadores”.
RECONSIDERANDO A DEPENDÊNCIA DE INSUMOS DA AGRICULTURA MODERNA
Por obter produtividades mais altas e maiores lucros com menos insumos externos, o SIA está mostrando que a dependência de insumos da agricultura moderna não é necessariamente o caminho mais produtivo e econômico. Esse sistema alternativo maneja plantas, solo, água e nutrientes de forma diferente, aumentando a abundância e a diversidade dos organismos do solo. Os agricultores estão descobrindo que podem ganhar mais reduzindo o uso de insumos externos, em vez de aumentá-lo.
O SIA exige um esforço inicial maior, enquanto os agricultores adquirem conhecimento, habilidades e auto-confiança. Esse custo inicial (investimento) é compensado pela redução na necessidade de sementes (80% a 90%) e água (25% a 50%), assim como nos gastos gerais da produção (10% a 30%). Resultados obtidos no leste da Indonésia, durante os três anos em que foram realizados 1.849 testes de campo em 1.363 hectares, são representativos dos ganhos de produtividade também registrados em outros lugares: um aumento de 84% na produtividade, com redução de 40% do emprego de água para irrigação e de 25% nos custos de produção, o que resultou em um aumento de cinco vezes na renda líquida. Resultados similares têm sido documentados na Índia e no Nepal.
No entanto, a redução das aplicações de água pode requerer capacidades físicas e organizacionais de controle que nem sempre as comunidades detêm, o que pode ser um fator limitante à adoção do SIA. Mas por menor que seja esse controle de água, ele já será capaz de proporcionar melhorias nos outros componentes tecnológicos do sistema. A drástica redução da população de plantas de arroz no SIA é a principal razão para que ocorra uma diminuição gradual da demanda por mão-de-obra para manter o sistema. Isso foi documentado em avaliações do Instituto Internacional de Manejo da Água (International Water Management Institute), na Índia, e da GTZ –Cooperação Técnica Alemã –, no Camboja, bem como em Madagascar, por pesquisadores da Universidade de Cornell (EUA). Uma avaliação na China identificou que agricultores em Sichuan consideraram a economia de mão-de-obra como o aspecto mais importante do SIA.
Manejos agroecológicos geralmente exigem maior uso de mão-de-obra para que, em contrapartida reduzam a demanda por insumos externos. De qualquer forma, o resultado líquido é vantajoso para os agricultores e para o ambiente. Já o SIA tem se mostrado um método que reduz tanto a mão-de-obra quanto a necessidade de insumos externos e, ao mesmo tempo, aumenta a produtividade dos arrozais. Isso porque essa forma de manejo estimula que serviços ambientais sejam promovidos pelos organismos do solo. Nos sistemas convencionais de produção de arroz, a vida no solo é inibida, suprimida ou desequilibrada pelas aplicações de agroquímicos ou está limitada aos organismos anaeróbicos (que vivem na ausência de oxigênio), devido ao alagamento.
Promover a transição agroecológica de sistemas de produção baseados no emprego intensivo de insumos industriais em geral causa uma queda imediata dos níveis de produtividade depois que eles são suprimidos. Os agricultores que adotam o SIA, no entanto, têm obtido resultados produtivos superiores desde o primeiro ano e verificam ganhos crescentes ano a ano, à medida que a fertilidade do solo melhora. Ou seja: não sofrem uma penalização inicial em função da adoção do método agroecológico. Contudo, para o alcance da sustentabilidade produtiva em longo prazo, o sistema exige a contínua aplicação de matéria orgânica no solo.
O SIA não é o único sistema de produção baseado exclusivamente em processos biológicos a oferecer ganhos de produtividade substanciais após a redução na dependência de insumos externos. No entanto, sua experiência nos últimos anos tem chamado a atenção, mais do que nunca, para a necessidade do aprofundamento dos conhecimentos científicos relacionados aos processos ecológiocos nos sistemas de produção agrícola.
VANTAGENS E BENEFÍCIOS DO SIA
Experiências de campo ao redor do mundo têm demonstrado muitos e amplos benefícios do SIA:
- as práticas do SIA trazem benefícios imediatos. Não há período de “transição”, como é necessário em muitos processos de conversão ecológica da agricultura convencional. Depois da exposição prolongada a químicos sintéticos, os solos freqüentemente requerem algum tempo para ficarem plenamente recuperados. Os rendimentos do SIA geralmente melhoram com o passar do tempo, mas não há um período inicial de perda, já na primeira safra após a adoção do SIA a produtividade é maior do que a anterior;
- o sistema é acessível às famílias mais pobres. Os baixos custos para a adoção do SIA fazem com que os benefícios econômicos (assim como outros benefícios) não sejam limitados pelo acesso ao capital. O manejo do SIA não requer empréstimos nem endividamentos. Dessa forma, o sistema pode contribuir para aumentar rapidamente a segurança alimentar das famílias agricultoras mais pobres. Algumas evidências iniciais sugeriam que as exigências de mão-de-obra tornavam o SIA menos acessível aos pobres, mas um amplo estudo no Sri Lanka identificou que agricultores mais pobres têm a mesma capacidade de adotar o método do que famílias mais capitalizadas. Além disso, eles são os que menos abandonam o sistema após adotá-lo; e
- desenvolvimento de capacidades humanas. A estratégia recomendada para a difusão do SIA enfatiza a experimentação realizada pelos(as) próprios(as) agricultores(as) e estimula processos locais de inovação segundo abordagens metodológicas que não são adotadas nas estratégias de desenvolvimento tecnológico na agricultura convencional.
Apesar de os aumentos de produtividade chamarem mais atenção na análise dos resultados do SIA, esse é somente um aspecto a ser considerado entre muitos outros quando o sistema é avaliado:
- não é necessário o uso de fertilizantes minerais, que implicam em elevados custos e provocam impactos adversos ao meio ambiente. O composto orgânico gera melhores resultados;
- pouca ou nenhuma necessidade de outros agroquímicos, uma vez que as plantas de arroz no SIA ficam mais resistentes a ataques de insetos-praga e doenças;
- embora inicialmente a demanda de mão-de-obra seja maior, dados recentemente sistematizados evidenciam que o SIA pode chegar a exigir menos mão-de-obra uma vez que os agricultores dominem bem o método;
- aumentos de 50% a 100% na produtividade têm sido observados, sem a necessidade de aquisição de novas sementes, uma vez que todas as variedades de arroz reagem positivamente ao SIA, ainda que algumas respondam melhor que outras;
- maior rentabilidade. Com o SIA, os custos de produção por hectare são, em média, 20% menores, conforme sete avaliações feitas em cinco países (Bangladesh, Camboja, China, Índia e Sri Lanka). Isso significa que os ganhos dos(as) agricultores(as) com o sistema são maiores do que simplesmente o seu efeito sobre o aumento da produtividade dos arrozais; e
- benefícios ambientais. A redução da necessidade de água e de agroquímicos diminui a pressão sobre os ecossistemas e melhora a qualidade do solo e da água.
Em termos especificamente agronômicos, agricultores(as) que adotam o SIA relatam as seguintes vantagens, além das associadas à maior produtividade e rentabilidade:
- resistência à seca. Como as plantas de arroz no SIA desenvolvem sistemas radiculares maiores e mais saudáveis, e os estabelecem no período inicial de desenvolvimento, as plantas são mais resistentes à seca;
- resistência ao acamamento. Com sistemas radiculares e colmos mais fortes, em parte devido à maior assimilação de sílica quando o solo não está permanentemente saturado, as plantas no SIA apresentam uma notável resistência aos estragos causados pelo vento, chuva e tormentas;
- tempo de maturação reduzido. Quando os métodos do SIA são utilizados adequadamente, o tempo de maturação pode ser encurtado em mais de 15 dias, mesmo quando a produtividade está sendo dobrada. Isso reduz o risco de perdas agronômicas ou econômicas dos agricultores, em função de eventos extremos de clima, pragas ou doenças, além de possibilitar a liberação da área para outras produções;
- resistência a pragas e doenças. Esse aspecto tem sido freqüentemente comentado por agricultores e agora está sendo documentado por pesquisadores. O Instituto Chinês de Pesquisa do Arroz (China National Rice Research Institute), por exemplo, relatou uma redução de 70% na ferrugem da bainha da folha, na província de Shejiang; e
- Conservação da biodiversidade do arroz. Embora as variedades comerciais apresentem as mais altas produtividades com os métodos do SIA (produtividades acima de 15 toneladas por hectare nesse sistema têm sido alcançadas com variedades melhoradas), aumentos de produtividade consideráveis também podem ser obtidos com variedades crioulas, uma vez que as plantas resistem ao acamamento, apesar de terem panículas maiores. No Sri Lanka, agricultores que utilizam os métodos SIA obtiveram produtividades entre 6 e 12 toneladas por hectare, com variedades “antigas”. Apesar de apresentar menor produtividade do que as variedades comerciais, o plantio das sementes crioulas tem se revelado mais lucrativo porque os consumidores estão dispostos a pagar um preço mais alto pelas variedades tradicionais por preferirem seu sabor, textura e aroma.
Fonte: adaptado de Norman Uphoff (2005).
O SIA NUMA PERSPECTIVA MAIS AMPLA
Dois fatores ecológicos estão por trás dos ganhos que o SIA promove na produtividade da terra, da mão-de- obra, da água e do capital empregados na produção de arroz irrigado. Eles são bem diferentes dos fatores responsáveis pelo aumento na produção de cereais promovido na Revolução Verde, que são: a) alteração do material genético dos cultivos para que eles respondam positivamente ao emprego de insumos externos; e b) aumento no uso de insumos como água, fertilizantes e outros agroquímicos.
O SIA não adota nenhuma dessas duas estratégias. Ao contrário, ele: a) melhora o crescimento e a saúde das raízes das plantas, às quais geralmente é dada pouca atenção na Agronomia convencional; e b) valoriza os serviços de um vasto número de organismos do solo, que vão desde os microscópicos fungos e bactérias às minhocas e outros seres da fauna do solo. O funcionamento do SIA é baseado nas relações simbióticas entre plantas e organismos do solo –relações essas que remontam há mais de 400 milhões de anos. Estudar essas relações é difícil e exige dedicação, mas elas representam a principal “fronteira de conhecimento” para os cientistas agrícolas.
Sabemos que o SIA ainda é um enfoque em construção. O conhecimento sobre seu funcionamento vai sendo acumulado a cada safra. Esperamos que o seu desempenho atraia maior interesse dos pesquisadores, dos extensionistas, dos elaboradores de políticas públicas e, obviamente, dos(as) agricultores(as). Em diversos países, agricultores(as) já estão extrapolando os conceitos e técnicas do SIA para outros cultivos, tais como o milheto, a cana-de- açúcar, o trigo e o algodão.
Agricultores(as) atentos(as) ao crescimento de seus cultivos sob diferentes condições costumam ter a clara percepção da relação existente entre a fertilidade e a dinâmica biológica dos solos. O próprio termo “solo” não reflete adequadamente o fato de que sua fertilidade é uma conseqüência da vida nele existente – a abundância, a diversidade e a atividade dos organismos do solo. Seria melhor falar e pensar em termos de “sistema solo”, como se subentende pelo ditado utilizado por agricultores orgânicos: “Não alimente a planta – alimente o solo, e o solo alimentará a planta”.
Isso pode não soar muito científico para alguns leitores, mas as bases científicas de tal conceito agroecológico estão se acumulando a cada ano. Os fundamentos desse conhecimento estão apresentados na publicação Abordagens biológicas de sistemas solo sustentáveis (Biological Approches to Sustainable Soil Systems) (Uphoff et al., 2006). O penúltimo capítulo dessa publicação sugere que esse enfoque de manejo dos recursos fornece a base para uma agricultura mais apropriada às condições e realidades do século XXI do que muitas das tecnologias atualmente em uso. O paradigma emergente para essa nova agricultura depende da ciência moderna para se desenvolver porque se apóia em pesquisas aprofundadas sobre microbiologia e ecologia:
- ela não é contrária ao melhoramento genético, mas não considera que avanços na agricultura sejam primariamente conduzidos por manipulação ou modificação de genes. Diferenças genéticas são muito importantes para poder tirar proveito de todos os recursos disponíveis, mas essas diferenças devem ser consideradas de uma forma interativa com os ambientes e não de forma determinística; e
- ela abre espaço para a adição de nutrientes ao solo, visando corrigir deficiências ou desequilíbrios. Assim, não é “orgânica” num sentido doutrinário. Contudo, rejeita esforços para acelerar o crescimento das plantas através de “alimentação forçada”, com a aplicação de grandes quantidades de nutrientes.
Um princípio geral dessa nova agricultura é que as práticas de manejo do sistema planta-solo-água-nutriente devem fomentar relações de sinergia entre os cultivos e os organismos do solo. Com o SIA, o controle de plantas espontâneas se torna um desafio pelo fato de as áreas não serem mantidas alagadas. Mas o uso de uma enxada rotativa permite aerar o solo ao mesmo tempo em que incorpora essas plantas, que se decompõem e têm seus nutrientes retidos no sistema do cultivo. Ainda são necessários estudos sobre os efeitos dessa forma de manejar as plantas espontâneas, mas dados substanciais obtidos em Madagascar e no Nepal mostram que capinas adicionais, além das que são necessárias apenas para controlá-las, podem gerar um aumento entre uma e duas toneladas de arroz por hectare, sem que para isso seja necessária a aplicação de fertilizantes industriais
As condições para essa produtividade extra estão obviamente sendo criadas a partir da valorização de recursos existentes no sistema solo-planta que contém dezenas de bilhões de microorganismos. Uma pesquisa recente realizada na China, por exemplo, documentou como bactérias do solo (rizóbios) migram para dentro das raízes e para a parte aérea das plantas através do colmo. Sua presença nas folhas permite o aumento na produção de clorofila e de fotossíntatos com efeitos no aumento da produtividade de grãos.
Ainda há muito que aprender a respeito dessas relações e de suas atuais e potenciais contribuições para a agricultura. Minha conclusão, depois de uma década trabalhando com o SIA e sendo atraído para dentro do amplo reino da Agroecologia, é que, como cientistas agrícolas, devemos expandir nosso pensamento para além dos limites da química e da física do solo, para abranger e tornar central a miríade de fatores biológicos que estão atuando tanto no solo como acima dele.
Norman Uphoff
diretor do Cornell International Institute for Food, Agriculture and Development (CIIFAD), professor do Departamento de Governo, Colégio de Artes e Ciências, Universidade de Cornell, Ithaca, Nova York, EUA.
[email protected]
Referências Bibliográficas:
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MARGULIS, L.; SAGAN, D. Microcosmos: Four billion years of microbial evolution. Berkeley: Universidade da Califórnia, 1997.
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Baixe o artigo completo:
Revista V4N1 – O sistema de intensificação de arroz e suas implicações para a agricultura