Mulheres camponesas da Bahia se organizaram em um movimento pelo Feminismo Camponês Popular, que busca fortalecer práticas agrícolas que aumentam sua autonomia econômica. Também conseguiram fazer pressão e garantir a criação de políticas públicas que atendem suas demandas e reconhecem seu trabalho. Essa experiência demonstra como as mulheres podem impulsionar processos político-organizativos e, assim, serem protagonistas na construção de soluções para seus desafios comuns.
Cleidineide Pereira de Jesus, Deborah Murielle Santos, Iridiani Graciele Seibert e Michela Calaça
A sociedade brasileira é regida por relações sociais patriarcais, racistas e capitalistas que subordinam as mulheres a uma condição de inferioridade, especialmente as mulheres do campo, das florestas e das águas. A situação é ainda mais crítica para as mulheres negras, que também têm que lutar contra o legado da escravidão e das desigualdades raciais.
Ao se unirem para refletir sobre suas realidades e se engajar em ações coletivas, as mulheres negras no Brasil estão desafiando os sistemas que as exploram enquanto constroem alternativas com base na Agroecologia. A luta pela autonomia econômica e por políticas públicas que atendam suas demandas é um exemplo do que o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) do estado da Bahia chama de Feminismo Popular Camponês.
LUTANDO PELOS DIREITOS DAS MULHERES
A Bahia é o maior estado do Nordeste do Brasil. É predominantemente negro, sendo morada de diversas culturas. Também tem longa história de luta pela libertação da escravidão, contra o racismo e em defesa do campesinato, sendo o estado que abriga o maior número de famílias camponesas do Brasil.
Até a Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro não reconhecia as mulheres camponesas como trabalhadoras rurais, colocando-as em uma situação de completa exclusão, tanto social quanto política. Além de não terem acesso a direitos trabalhistas formais, as mulheres camponesas sequer tinham autorização para se filiarem aos sindicatos de trabalhadores rurais, o que lhes negava um espaço para articular e apresentar suas demandas.
Para mudar esse quadro de discriminação e exclusão, as mulheres camponesas travaram uma árdua luta por direitos. A partir de 1982, mulheres de toda a Bahia passaram a se reunir para refletir sobre suas vivências. Também começaram a formular propostas para melhorar sua situação e fortalecer suas práticas agroecológicas, vistas como o caminho para alcançar maior autonomia e independência. Aos poucos, elas foram se articulando com outros movimentos que surgiam em todo o país. Em 2004, foi fundado o Movimento Nacional de Mulheres Camponesas (MMC), com representação em outros 16 estados brasileiros. Na Bahia, o MMC já está presente em 30 municípios.
O MMC travou uma luta incansável pelo reconhecimento das camponesas como trabalhadoras rurais, bem como pelo seu direito à previdência social e outras políticas públicas. Essas demandas foram finalmente acolhidas pela Constituição Federal promulgada em 1988. Embora tenha sido uma grande vitória, a batalha não acabou, já que muitos desses direitos conquistados sempre estiveram sob risco de serem desmantelados. Além disso, as mulheres continuaram excluídas de políticas importantes para a agricultura familiar. Por exemplo, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), instituído em 1995, que, entre outras coisas, confere crédito a agricultores familiares, não previa uma linha voltada especificamente para as mulheres.
Desde 2007, o MMC realiza uma campanha nacional pela produção de alimentos saudáveis que faz parte do seu projeto de promoção da agricultura camponesa agroecológica e feminista. As experiências das mulheres camponesas, que desafiam o agronegócio e o patriarcado, foram o ponto de partida. A iniciativa denuncia os efeitos negativos do agronegócio sobre o meio ambiente e propõe a construção da soberania alimentar como enfoque político para a estruturação de sistemas alimentares no país. A pedra angular da campanha é a valorização do trabalho das mulheres na produção de alimentos, assim como o reconhecimento de seus direitos como cidadãs e seu protagonismo na construção da Agroecologia.
A (RE)DESCOBERTA DO QUINTAL
Como parte dessa campanha nacional, as mulheres da Bahia realizam diversos intercâmbios e programas de capacitação/formação em Agroecologia, feminismo e políticas públicas voltadas para a agricultura camponesa. Esse processo de troca de conhecimento permite que as mulheres adotem e adaptem práticas agroecológicas a suas realidades. Ao mesmo tempo, ao refletirem e analisarem suas vidas cotidianas, despertam para as injustiças causadas pelo patriarcado, capitalismo e racismo.
Por exemplo, a partir de suas reflexões e ações, as camponesas perceberam que parte significativa da produção da família vinha dos quintais. Embora os quintais tenham historicamente desempenhado o papel de assegurar parte importante da alimentação das famílias camponesas, a sociedade não os valoriza porque estão sob o domínio das mulheres. No entanto, por meio de suas conversas e de seu trabalho coletivo, as mulheres se conscientizaram de que seus quintais não são apenas espaços em que podem produzir alimentos saudáveis, mas também onde podem manter e disseminar conhecimentos e práticas culturais e ancestrais.
Além de abrigar uma grande diversidade produtiva – árvores frutíferas, plantas medicinais, flores e pequenos animais -, o quintal é um local onde as pessoas conversam e as crianças brincam. Assim, os quintais foram o ponto de partida para as mulheres se organizarem politicamente (entendendo como mudar sua realidade), produtivamente (por meio das práticas agroecológicas) e economicamente (criando mercados), alavancando, portanto, o papel, a renda e a autonomia das mulheres.
FORTALECIMENTO DOS SISTEMAS DE PRODUÇÃO DAS CAMPONESAS
Embora as camponesas na Bahia fossem bem organizadas politicamente, tendo iniciado seus processos de articulação ainda em 1982, tinham consciência de que precisavam dar novos passos no sentido de gerar sua própria renda e aumentar sua autonomia econômica. Diante desse desafio, 25 grupos que reúnem mais de 800 mulheres camponesas se uniram para fortalecer seus sistemas de produção e para construir mercados para seus produtos. Juntas, as mulheres começaram a aprimorar suas práticas agroecológicas e a comercializar seus próprios produtos.
Um elemento fundamental para a produção agroecológica no semiárido brasileiro são as infraestruturas para captação e armazenamento de água de chuvas. O acesso a elas foi ampliado a partir de 2003 por meio do Programa de Formação e Mobilização para Convivência com o Semiárido (P1MC) e do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), ambos implementados pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). As cisternas de placa e demais infraestruturas implementadas por meio desses programas tornaram-se um ponto de inflexão na vida de milhares de famílias camponesas. Além de tornarem a vida mais fácil, principalmente para as mulheres, tradicionalmente as responsáveis por buscar água para o consumo de suas famílias, as reservas de água de qualidade ao lado das casas possibilitaram o aumento da produção de alimentos saudáveis.
Com essas transformações, as mulheres viram sua vida melhorar. No quintal, produzem diversos produtos, como abóbora, cana-de-açúcar, vários tipos de feijão, tomate, alface, cominho, cenoura, batata-doce, quiabo, cebola, melancia, manga, goiaba, banana e beterraba. Também cultivam uma imensa variedade de plantas medicinais e plantas forrageiras, incluindo sorgo, capim e palma. A situação econômica melhorou com o aumento da venda dos alimentos cultivados por elas mesmas, sempre assegurando a prioridade para a produção destinada ao consumo de suas próprias famílias. Assim, as cisternas proporcionaram uma maior autonomia econômica para as mulheres e uma alimentação mais saudável para as famílias e comunidades.
Com a campanha nacional deflagrada em 2007, os grupos de mulheres foram se formalizando. Em alguns municípios, o processamento dos alimentos foi transferido das cozinhas das casas para locais mais estruturados. Também foram adquiridos equipamentos profissionais para a produção em escalas maiores. Com isso, além dos produtos in natura, as mulheres passaram a vender cada vez mais doces, bolos, biscoitos, beijú (tapioca) e pratos típicos do semiárido brasileiro.
É importante ressaltar que, ao organizar a produção e a distribuição de forma mais solidária, as mulheres puderam acessar mercados institucionais. Por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), elas passaram a vender para escolas, hospitais e outras instituições públicas. Isso as ajudou a tomar suas próprias decisões e a ter consciência sobre o que produzem e para quem produzem. Com isso, ficaram muito felizes ao saber que seus produtos alimentavam as crianças da cidade.
O processo de organização do movimento, de capacitação/formação de suas integrantes e o desenvolvimento de habilidades na produção e na comercialização aumentaram a confiança das mulheres na geração de renda de seus próprios quintais. Dessa forma, as camponesas construíram uma práxis agroecológica feminista que busca o diálogo entre diferentes formas de conhecer e transformar a realidade, tomando como referência a reflexão crítica sobre experiências concretas.
CONQUISTAS DO MMC: DIVERSIDADE, AUTONOMIA E LIBERTAÇÃO DA VIOLÊNCIA
As experiências promovidas pelos processos organizativos e a valorização do trabalho das mulheres camponesas foram fundamentais para elevar os níveis de autonomia delas. Isso se reflete, entre outros, no aumento dos quintais e na diversidade produtiva neles encontrada. A ampliação dos grupos de mulheres e o incremento da capacidade produtiva dos quintais contribuíram para aumentar os níveis de soberania alimentar, a começar por suas próprias casas.
Esses desdobramentos também serviram para reconfigurar as relações familiares: as mulheres passaram a ser mais valorizadas e respeitadas por seus próprios parceiros, filhos e por si mesmas. Para muitas, foi a primeira vez que ganharam seu próprio dinheiro e se sentiram capazes de decidir como gastá-lo. Com o aumento da renda, melhoraram suas condições de trabalho doméstico. Por exemplo, a compra de eletrodomésticos, como uma máquina de lavar, contribuiu para aumentar o tempo livre para o lazer e a participação política. Muitas também voltaram à escola para terminar os estudos; algumas passaram a assumir cargos públicos e a ocupar lugar de destaque em universidades. Essas mudanças permitiram que as camponesas enfrentassem ou se distanciassem de situações de violência doméstica e se articulassem para apoiar outras vítimas.
Ao se organizarem politicamente no Movimento das Mulheres Camponesas, os grupos de mulheres na Bahia deixaram de ser experiências isoladas e passaram a se conectar nos diferentes âmbitos: comunitário, municipal, estadual, nacional e internacional. Assim, tornaram-se agentes de mudança que motivam (e são motivadas por) outras mulheres em diferentes partes do país.
Para as camponesas, os quintais são pequenas experiências que se expandem e servem de exemplo, sobretudo quando se unem a outras para a construção da soberania alimentar e a transformação dos sistemas produtivos como um todo.
LIÇÕES APRENDIDAS
A experiência do MMC mostra que políticas públicas, como as que estabelecem mercados institucionais, são importantes para que as camponesas contribuam para a construção da soberania alimentar, o combate à fome e o acesso universal à alimentação saudável. Ao se engajarem em processos organizacionais e políticos, as mulheres tornaram-se protagonistas de soluções para seus próprios problemas e foram determinantes para o desenvolvimento de políticas que reconhecem o seu trabalho e contribuem para o aumento de sua autonomia.
No entanto, a experiência também mostra que as políticas e programas públicos são vulneráveis a mudanças políticas. Desde o golpe de 2016, as políticas públicas no Brasil, principalmente as de apoio aos mais pobres, estão sendo desmanteladas. Isso reflete a conjunção de crises (econômica, ambiental, política e social) que levaram à eleição de um governo de extrema direita, neofascista e ultraliberal.
Logo no início da crise da Covid-19, várias organizações dos povos do campo, das florestas e das águas elaboraram uma lei para fortalecer a produção e a distribuição de alimentos saudáveis para combater o retorno da fome, agravada com a pandemia. A Lei Assis de Carvalho (Lei 14.048) foi aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal por ampla maioria. Mas o presidente da República a dilacerou, vetando praticamente todas as propostas voltadas a atenuar o problema da fome.
Isso mostra a importância de organizações camponesas fortes, portadoras de agenda política propositiva, que lutem contra retrocessos e defendam políticas públicas concretas orientadas a melhorar a vida no campo e nas cidades.
Em suma, a experiência ressalta que a Agroecologia não é apenas uma técnica ou modo de produção de alimentos, mas também uma forma de engajamento político. Uma Agroecologia que não incorpore as pautas feministas, antirracistas e do campesinato corre o risco de ser cooptada e corroída pelos próprios poderes que quer desafiar. A maior lição que aprendemos com as mulheres do MMC é que sem a organização política das camponesas não haverá Agroecologia.
Cleidineide Pereira de Jesus e Deborah Murielle Santos
agroecologistas do Instituto Latino-Americano de Agroecologia
Iridiani Graciele Seibert
agroecologista do Instituto Universitário de Agroecologia Paulo Freire
Michela Calaça
agrônoma da Universidade Federal Rural do Semiárido.
Todas as autoras são militantes do Movimento de Mulheres Camponesas
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