Jean Pierre Leroy
A expansão dos latifúndios monocultores e da agricultura industrial se impõe na realidade brasileira, sendo respaldada politicamente pela ideologia do crescimento econômico e pela associação entre interesses do governo – que visa ampliar a captação de divisas públicas via exportação de commodities agrícolas – e de grupos do agronegócio – em busca de lucro crescente e imediato. O avanço desse processo se faz por meio de conquistas territoriais destruidoras de ecossistemas e de meios e modos de vida de populações rurais. A resistência a esses processos de desterritorialização da agricultura vem sendo protagonizada por grupos organizados da agricultura familiar, de trabalhadores rurais sem terra, de povos indígenas, de quilombolas e de variadas outras populações tradicionais presentes nos campos. Os artigos deste número de Agriculturas apresentam alguns desses embates.
OS TERRITÓRIOS
Paradoxalmente, porque aparentemente fora do enfoque assinalado aqui, vários artigos desta publicação se referem a conflitos entre comunidades tradicionais e Parques Nacionais. Antonio Carlos Diegues, em livro com o sugestivo título de O mito moderno da natureza intocada, recupera a história de como os parques e outras áreas de conservação foram e permanecem inscritos na visão de natureza selvagem, da
“noção de “wilderness” (vida natural/selvagem), que serviu de base à criação dos parques norte-americanos [e que] foi criticada desde o início, particularmente pelos índios remanescentes já em grande parte removidos de seus territórios ancestrais na conquista do oeste. Assim, o chefe Standing Bear da tribo dos Sioux afirmava:
Nós não consideramos selvagens (wild) as vastas planícies abertas, os maravilhosos montes ondulados, as torrentes sinuosas. Para o homem branco a natureza era selvagem, mas para nós ela era domesticada. A terra não tinha cercas e era rodeada de bênçãos do Grande Mistério” (MCLUHAN, 1971, apud DIEGUES, 2000. p.28).
Apesar do reconhecimento recente no mundo do papel das populações tradicionais na conservação, parece predominar em algumas organizações públicas e privadas brasileiras uma visão estritamente preservacionista. Os que a defendem consideram essas comunidades como intrusas, de maneira idêntica aos expoentes do agronegócio empresarial. Não foi por acaso que a bancada ruralista conseguiu mobilizar a grande maioria do Congresso para apoiar um Projeto de Lei do Código Florestal que busca restringir ao máximo as áreas de conservação nas propriedades rurais. Governo, partidos políticos, salvo exceções individuais, Congresso e a grande maio- ria da sociedade comungam da mesma ideologia: a do crescimento como salvação do país. E o meio ambiente não pode ser um empecilho para tal. Seguindo essa lógica, a agricultura industrial, para poder se expandir sem entraves ambientais, necessita que certas áreas lhe sirvam de compensação. Nesse ponto, preservacionistas e ruralistas convergem, pois os parques e outras áreas de conservação permanente hoje podem ser entendidos como a contraparte do avanço de fronteiras do agronegócio. Assim, como está sendo visto no debate do Código Florestal brasileiro, estabelece-se a distinção entre a natureza ordinária, onde tudo é possível e permitido, e a natureza preservada.
Falamos acima da desterritorialização da agricultura. Talvez fosse melhor falar de projetos antagônicos de territórios, levando a conflitos em torno a sua posse. Segundo o geógrafo norte-americano Robert Sack (1986), a noção de território remete à ocupação de um determinado espaço supostamente vazio, ao traçado de limites, ao exercício do domínio e do controle sobre esse espaço. Essa definição é muito conveniente à criação de parques e à expansão da agropecuária no Brasil.
Há uma estratégia de ocupação e de regularização fundiária do território posta em prática pelas forças econômicas e políticas dominantes que buscam a apropriação massiva de terras pelo agronegócio para fins de produção de commodities. Em contrapartida, tais forças aceitam o estabelecido no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) e no Plano Nacional de Áreas Protegidas, que preveem a demarcação de áreas de conservação, reservas extrativistas, terras indígenas, etc., sob a condição de que não estejam no seu caminho de expansão e que sirvam para lhes dar uma aparência de preocupação com o futuro do planeta. Aceitam também a agricultura familiar na medida em que esta lhes permita simular um zelo pela sobrevivência dos pobres, camuflando seus interesses assim como os dispense para a produção de grãos e legumes destinados ao mercado interno, cujos preços e lucros não se comparam aos das commodities.
Vale notar que o capital não necessita exercitar o do- mínio administrativo sobre o território. O território é território para ele quando lhe é útil demarcar suas posses. Mas é espaço indefinido quando ele o vê como mero suporte para suas atividades, fonte de extração de riqueza e local de rejeito do que não lhe dá lucro e do refugo humano (Bauman, 2005) que não lhe serve. Espaço sem limites quando limites poderiam tolher seu avanço sobre novas terras e sobre a população local. Sob esse ângulo, o capital delega ao poder público, colocado a seu serviço, o exercício do poder e do controle sobre esse território. O capital procede, assim, à desconstrução e à reconstrução permanente do território, esvaziando-o de sentidos e de povos conforme seus interesses, tornando-o móvel e incerto para poder fazer dele um território à escala do mundo desde que mantidas as aparências de território público com suas divisões administrativas. Para a bolsa de valores de Chicago, pouco importa se a soja vem da fronteira amazônica do Mato Grosso ou dos pampas argentinos. Não existem fronteiras nem povos para ela.
Já para as populações que nos interessam aqui, os sentidos de território são muito mais complexos e ricos. Povos indígenas, quilombolas, caiçaras, pescadores, camponeses/agricultores familiares em múltiplos ecossistemas, extrativistas da seringa, da castanha, do babaçu, ribeirinhos, geraizeiros, apanhadores de flores e tantos outros convidam a um descobrimento infinito.
Evidentemente, há diferenças muito grandes entre esses grupos sociais (LEROY, 2010). Destaco aqui primeiramente as comunidades tradicionais, que vivem do extrativismo ou de uma combinação de extrativismo e de produção agrícola. Através da construção social de seu território, homens, mulheres e jovens, cada um ao seu modo, criam ou reforçam as suas identidades coletivas de quilombolas, de pescadores, de extrativistas, condição necessária para conquistar o direito a um território e mantê-lo. Algumas características da gestão desses territórios se destacam. Em geral, essas comunidades estipulam restrições ao uso da terra, visando à conservação do sistema florestal e/ou aquático; elas mantêm a noção de território coletivo, para garantir sua continuidade; elas supõem organizações comunitárias legítimas e ativas e implicam a participação das famílias e comunidades locais na sua gestão, o que faz com que as regras consuetudinárias sejam mantidas, mesmo que eventualmente necessitem de adaptações. Simplificando, podemos caracterizar os territórios tradicionais não somente por seus limites, mas também pelo controle e pela gestão dos seus recursos naturais.
Vale notar que, no passado, a questão dos limites em muitos casos não se colocava, pois o espaço lhes era aberto, fosse para criar gado, apanhar frutas no cerrado, colher flores ou mesmo para executar uma agricultura de subsistência. Os limites e, com eles, o reconhecimento de um território definido só se tornam necessários quando aumenta a pressão da agropecuária e dos grandes empreendimentos sobre ele.
Aliás, quando se trata dessas populações, limites territoriais não são suficientes, mesmo quando registrados em cartório. Territórios tradicionais se sustentam com a condição de que seus habitantes sejam capazes de exercer controle e poder sobre eles. Esse domínio passa por uma gestão do espaço e formas de manejo de seus recursos que fazem com que o território e seus habitantes sejam reconhecidos pela sociedade e pelas autoridades do entorno; evitam também que intrusos ou mesmo moradores convivendo entre eles possam desviar o uso dos recursos naturais para outros fins; e lhes permitem viver melhor e, assim, permanecer e criar raízes, quer dizer: garantir as condições para que as comunidades se mantenham e se reproduzam. Nesse sentido, Alfredo Wagner de Almeida comenta que esses territórios são unidades de mobilização (ALMEIDA, 2006, p.71).
As comunidades envolvidas não são voltadas para o passado, tentando manter formas arcaicas de vida. Mas estão em processo evolutivo de adaptação permanente, buscando os meios mais adequados para se projetar no futuro sem abrir mão dos seus valores e da sua cultura. Ao assumirem essa posição, colocam-se como antípodas da tendência dominante de privatização e exploração desenfreada da natureza, convertendo, potencialmente ou de fato, seus territórios em arenas políticas que exigem justamente essa mobilização permanente.
Os agricultores familiares/camponeses estão pouco presentes nesta edição da revista. A explicação mais evidente se deve ao conhecimento in- suficiente deste editor sobre o que se escreve a respeito da temática. Mas talvez possamos indagar se a noção de território é que está pouco presente na reflexão da maioria dos pesquisadores, assessores e lideranças, seja porque ainda não tenha sido assimilada como uma categoria de luta e de reflexão ou por- que é tão recente que não encontrou até o momento sua interpretação em textos escritos.
Na agricultura convencional, o que dita a maneira como o agricultor vai se comportar em sua propriedade é o produto ou os produtos que quer cultivar preferencialmente. Aliás, o mesmo pode ser dito de um ramo da agricultura orgânica. Na perspectiva da agricultura sustentável e, mais especificamente, da Agroecologia, não se considera apenas um produto central e as atividades subordinadas a ele, quando há, como ocorre na monocultura. Vale notar que as necessidades do mercado obrigam evidentemente o agricultor a optar por determinados produtos. O que se questiona é a lógica da monocultura em oposição a uma agricultura que, mesmo priorizando certas culturas, olha o sistema como um todo e trabalha com um conjunto diversificado e complementar: culturas perenes; culturas temporárias em consórcio e com rotatividade; pequenos animais; criação de gado; po- mar; horta; bosque para uso da madeira como lenha para cozinhar, para construções, etc.; reserva florestal (com possibilidade de manejo que garanta a sua conservação, quando não se trata de área de preservação permanente que limita essa possibilidade).
Nesse sistema, já experimenta- do com sucesso em várias regiões do país, não há separação absoluta entre as áreas de produção e as áreas de conservação, nem em termos de espaço ou de gestão desse espaço, nem na cabeça das pessoas que o gerem. A manutenção de bosques e de plantas não produtivos possibilita a dispersão das pragas, a permanência e a evolução da biodiversidade. Tal sistema – que permite a conservação dinâmica das sementes e matrizes rústicas (crioulas) e preserva o solo e os recursos hídricos, etc., – traz uma contribuição única para a manutenção da riqueza do território. Além do mais, é menos sensível às variações de preços que afetam os monoprodutores, tendo maior capacidade para garantir a segurança e a soberania alimentar e nutricional da família do agricultor, do país e da humanidade.
Na produção de base agroecológica, a propriedade é percebida como um ecossistema que não está destacado do entorno, em que não há separação, mental e material, entre a produção e a conservação, pois se combinam e se influenciam mutuamente. Essa percepção facilita o reconhecimento da importância do meio ambiente do entorno e o manejo do território como um ecossistema único, em que o construído e o natural se complementam.
Um adensamento de pequenas propriedades em uma microbacia, polo, assentamento ou qualquer outro nome que se dê a sua concentração numa área limitada, forma a unidade de base da reprodução camponesa, sem o qual a sua sobrevivência sempre estará ameaçada. Por outro lado, temos exemplos de propriedades praticantes da Agroecologia isoladas em meio a monoculturas que não conseguiram suportar os incêndios provocados por criadores de gado, a fumigação de produtores de soja ou a contaminação por transgênicos.
É nessa linha que podemos pensar hoje estratégias territoriais camponesas. Desenvolvimento não é visto sob o ângulo estritamente econômico de retorno imediato, mas também incorpora o ecossistema local (floresta, caatinga, campos gerais, cerrado, várzeas, etc.) como reserva de produtos para extração ou produção futura; como lugar de dispersão das pragas; como garantia de mananciais abundantes e perenes; como agente ativo na manutenção de um microclima ameno; como protetor contra os ventos que provocam erosão eólica; e, não menos importante, como beleza cênica e fonte de prazer.
Essa perspectiva, de certo modo ainda inovadora, reata com a tradição. Quando o tamanho de sua propriedade era suficiente e o seu sistema se mantinha estável, garantindo a reprodução de sua família, o lavrador convivia bem – e ainda convive – com o ambiente ao seu redor, do qual inclusive tirava e tira parte da sua subsistência. Em áreas de cerrado, concentra as culturas na beira do rio para deixar a criação extensiva no cerrado da chapada e combina a produção com a coleta dos frutos nativos. Na caatinga, deixa os fundos para a criação coletiva. Na Amazônia, a frente do rio para o varzeiro, reservada à agricultura, é tradicionalmente de posse individual, enquanto o fundo, campo para criação, é livre para todos, sem cercamento (LEROY, 1991, p. 56).
Historicamente, esses grupos sociais mantinham uma relação de simbiose e de troca com a natureza, graças à qual garantiam a sua reprodução. Ao mesmo tempo, esse tipo de ocupação e gestão do território favorece que a natureza se renove, assegurando a sua capacidade de resiliência. Essa relação com a natureza não se dá apenas por meio de escolhas individuais, como se fosse resultado da definição de uma determinada pessoa ou família. Ela só se sustenta a partir da vivência de todo o grupo como algo comum às comunidades. Entretanto, essa interdependência em muitos casos foi rompida ou encontra-se em risco de rompimento, seja porque um grupo populacional está sendo submetido a uma forte pressão externa ou por não conseguir mais se reproduzir senão pela sobre-exploração dos recursos naturais do território. No caso do campesinato, a sua permanente dificuldade em criar raízes num país que, apenas esporadicamente e em regiões bem delimitadas, reconheceu a sua existência fez com que esse reatar com a tradição seja um laborioso aprendizado, somente enfrentado por ser condição de sobrevivência e de reprodução.
De fato, a paz – se é que houve paz um dia – acabou porque o capital quer se apropriar do conjunto da vida e dos territórios, gerando escassez por meio da sobre-exploração da natureza. Ele quer se apropriar de áreas que não lhe interessavam até pouco tempo atrás, seja para continuar destruindo-as, ao extrair seus recursos, seja para conservá-las, manobra adotada mais recentemente. Nesse contexto, duas lógicas, a do mercado e a dos territórios dos povos e das comunidades; duas tradições jurídicas e compreensões dos direitos, a propriedade privada acima de tudo versus o bem coletivo e os direitos humanos, e duas estratégias, a de ampliar o domínio do mercado ou de fortalecer os comuns se opõem e se confrontam.
OS BENS COMUNS
Introduzo aqui o termo comuns ou bens comuns sem que ele esteja empregado em nenhum artigo desta edição. Todavia, entendo que os comuns são a maneira como os territórios podem ser apresentados à sociedade e como as populações apresentadas nos artigos podem afirmar a sua importância para o futuro da humanidade e do planeta.
Mais do que de um conceito imediatamente inteligível e indiscutível, trata-se, no meu entender, de um campo de reflexão aberto. Mais do que definições, apresento aqui algumas descrições, não conflitantes entre si, do que seriam os bens comuns.
Para Bollier, os bens comuns se referem a
“recursos compartilhados que uma comunidade constrói e mantém (biblioteca, parque, rua), os recursos nacionais que pertencem a todos (lagos, florestas, vida silvestre, o espaço radioelétrico) e os recursos mundiais dos quais os seres vivos necessitam para poder sobreviver (atmosfera, água, biodiversidade)”.
O autor inclui também o que chama de economias dom, como a ciência, grupos de software livre e até iniciativas como a Wikipédia. Podem ser divididos em três categorias: presentes da natureza, criações materiais e criações imateriais (BOLLIER, 2008, p. 38).
Por sua vez, o professor Yochai Benkler divide os bens comuns em quatro tipos, em função de estarem abertos a qualquer um ou somente a um grupo definido, serem regulados ou desregulados (BENKLER, 2006, p.128). Como bens abertos a todos, ele cita os oceanos, as autoestradas, a maior parte do conhecimento científico, a cultura e o ar que, apesar do controle sobre poluições industriais e urbanas, é um sistema aberto ainda bastante desregulado. Os bens abertos poderiam, em tese, ser desregulados, mas as ruas e as autoestradas são totalmente reguladas. Já as áreas de pastagens ou de irrigação comunitárias são exemplos de bens comuns de acesso limitado.
Estamos tão envolvidos na sociedade capitalista, do- minada por noções como propriedade privada, consumo e mercado, e tão saturados pela informação e pela publicidade dominantes, que não percebemos espontaneamente que há ainda uma porção grande da nossa realidade e do planeta que está situada fora dos circuitos mercantis. Paradoxalmente, é a fome voraz do mercado, na busca da apropriação privada e da mercantilização do que ainda lhe escapa, que contribui para dar maior atenção e valorizar a reflexão sobre os bens comuns. Entretanto, se de fato o mercado se interessa e avança sobre todos os ecossistemas e recursos mencionados, em contrapartida devemos reconhecer e afirmar que a humanidade atual e futura precisa e precisará desses bens e que, nesse sentido, eles não são a nossa propriedade particular, com os quais podemos fazer o que queremos. São bens comuns da humanidade, tanto no sentido espacial, superando fronteiras (por exemplo, é importante lembrar que a Amazônia exerce um papel no clima continental e, provavelmente, mundial e que as sementes que são a base da segurança alimentar mundial, cruzaram os oceanos), quanto temporal, para as gerações futuras.
Cumpre ressaltar que a afirmação de que os bens comuns são de todos e para todos não quer dizer que eles são livres para cada um acessá-los e fazer com eles o que bem entende. Os madeireiros, grileiros e criadores de bois que partiram, desde a década de 1970, ao assalto da Amazônia tinham uma ambição: se apoderar dos espaços livres. Não eram de ninguém, portanto, eram deles. Mas, dentro dos comuns citados, nos interessam os que se referem a territórios geridos por populações locais, bens comuns regulados, segundo a distinção proposta por Yochai Benkler. Aqui, estamos falando de rios e lagos, florestas, áreas úmidas, mangues e outros ecossistemas; de biodiversidade natural e agrobiodiversidade; de territórios ocupados por populações tradicionais, povos indígenas e pequenos produtores; de recursos manejados por essas populações, tais como o solo, a água, os estoques pesqueiros, as sementes. É nesse sentido que, desde a perspectiva de uma parte dos habitantes da América Latina, a jurista Margarita Flórez identifica como bens comuns, o que ela chama lo nuestro. Essa definição contrasta tanto com a noção jurídica de resnullius, algo que não é de ninguém, quanto com a de bens públicos, algo que pertence ao Estado e/ou geridos por ele (FLÓREZ, 2008, p.109). Esses bens comuns são nossos e se originam, segundo ela, na relação umbilical que os povos têm com o território.
O professor e pesquisador francês Hervé Le Crosnier sublinha que, para Elinor Ostrom, que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2009, os comuns não são somente recursos, mas lugares de negociação, e prossegue:
“A noção de Comuns se prende então a uma forma de governança particular: trata-se, para uma determinada comunidade, de criá-los, mantê-los, preservá-los, assegurar sua renovação, não num museu da natureza, mas como recursos que devem ficar disponíveis, que se deve evitar esgotar. Só existem Comuns com as comunidades que fazem a sua gestão, que sejam locais, auto-organizadas ou tendo regras coletivas fortes, inclusive leis e decisões de justiça. Os Comuns são lugares de expressão da sociedade e, nesse título, lugar de resolução de conflitos” (LECROSNIER, 2010, p.20).
As comunidades e grupos sociais que habitam esses comuns os gerem há gerações de uma maneira dinâmica, num processo de coevolução, envolvendo os recursos e eles mesmos (à semelhança das sementes que se diversificam e se aprimoram ao longo do tempo). Eles não são guardiões da natureza, apenas percebem esses ecossistemas e esses recursos como condição para a sua sobrevivência, base de sustentação e de reprodução das suas vidas e, sendo assim, é preciso conservá-los. Portanto, eles são estratégias sociais e não simplesmente recursos. São regulados por um grupo através do tempo em função dos seus interesses, que coincidem com os interesses mais amplos da humanidade e com a perpetuação dos ecossistemas, garantindo a sua resiliência.
Nessa perspectiva, se o território do capital deve ser apreendido na sua dimensão mundial, os territórios dos povos indígenas, das comunidades tradicionais, dos agricultores familiares/camponeses também devem disputar no plano mundial a hegemonia quanto à nossa concepção de futuro. Os conflitos territoriais devem ser analisados e travados como parte de um conflito global sobre os rumos do desenvolvimento, da democracia, dos direitos humanos e do que seria uma nova oikonomia, em que se busca fazer prevalecer a justiça, a solidariedade e um relacionamento harmônico entre a sociedade e o planeta. Os artigos aqui apresentados mostram que essa disputa se dá no chão de cada dia.
Alguns dos relatos reunidos nesta edição mostram como, no Brasil e no mundo, a expansão da agricultura industrial e a concentração da terra continuam exigindo uma permanente luta pela manutenção dos territórios camponeses, insubstituíveis nesse tem- po de crise ambiental e climática irreversível. É o caso do artigo A grilagem de terras e recursos naturais: violações do direito à alimentação adequada, de Sofía Monsalve Suárez e Philip Seufert, dentro do espírito da Fian, rede voltada para o direito à alimentação. Também nessa linha, temos Corrida mundial por terras e direitos territoriais no Brasil, de Sérgio Sauer, que foi relator nacional para o direito à terra e à alimentação, e Terra e Poder, de autoria da Oxfam. Carlos Alberto Dayrell, em Rebeldia nos sertões, conta a saga da resistência à desterritorialização empreendida pelo latifúndio e, na sequência, pelos grandes projetos agropecuários ou pelos parques – Unidades de Conservação de Proteção Integral – ao longo das últimas décadas no Norte de Minas, ressaltando as vitórias desses geraizeiros na afirmação de suas identidades e seu lugar.
É paradoxal que unidades de conservação (UCs) compareçam como agentes agressores de comunidades rurais, como contam Emmanuel de Almeida Farias Júnior, com As práticas agrícolas e as territorialidades específicas dos quilombolas do Tambor, e Fernanda Testa Monteiro e Claudenir Fávero, em A expropriação territorial de apanhadores de flores sempre-vivas por unidades de conservação de proteção integral na Serra do Espinhaço. Seja no Amazonas ou em Minas Gerais, a liberação da terra para a exploração quase sem limites é supostamente compensada pela criação de UCs, implantadas justamente em áreas que não interessavam ao capital, mas onde comunidades camponesas mostram sua capacidade de sobrevivência e de gestão dos territórios.
Todos esses artigos, não fosse a resistência heroica de tantos povos e comunidades, soariam como uma tragédia que atinge a todos nós. Embora tenham perdido sua terra e seu território, tantos outros buscaram a sua reconquista. João Dagoberto dos Santos, em Ocupar, resistir e produzir: velhos e novos paradigmas na configuração de assentamentos rurais, dá o exemplo de novas formas de resistência por meio da produção agroecológica no Pontal do Paranapanema e no Vale da Ribeira. Ele afirma que o potencial adormecido contido nos assentamentos rurais no Brasil é gigantesco e desvalorizado. Está em tempo de revermos os processos históricos de conquista da terra e de produção que tradicionalmente são desenvolvidos nos assentamentos rurais. O seu artigo e os demais revelam um pouco do potencial e da riqueza de territórios camponeses no mundo rural, imprescindíveis para a humanidade do futuro.
Jean Pierre Leroy
assessor da FASE
[email protected]
Referências bibliográficas
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Baixe o artigo completo:
Revista V8N4 – Territórios e bens comuns