Apesar de contexto desfavorável ao crescimento de escala da produção agroecológica no Brasil, sociedade civil não se furta do papel de provocar um debate político com o governo.
Verônica Pragana – Asacom
28/03/2012
O governo federal e a sociedade civil organizada estão empenhados na elaboração da Política Nacional de Agroecologia e Sistemas Orgânicos de Produção. De 10 a 12 de abril, acontecerá em Brasília, um Seminário Nacional no qual serão consolidadas as propostas das organizações e movimentos sociais do campo para esta política. O evento acontece após seminários em todas as regiões do país. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) anima os processos de reflexão e proposição da sociedade civil e tem intermediado o diálogo com o governo.
Apesar do desejo dessa política se tornar, de fato, um conjunto de diretrizes que favoreçam a ampliação da escala de produção de alimentos agroecológicos, as organizações e movimentos do campo acreditam que esta expectativa não será atingida no atual cenário de hegemonia do agronegócio. Mesmo sem chance de vencer essa disputa, não se furtam do seu papel de provocar um debate político com o governo e dar mais visibilidade aos exemplos práticos de produção de alimentos saudáveis para consumo dos brasileiros sem agressão aos recursos naturais. Para falar sobre o papel da sociedade civil e do governo na relação com a agroecologia e fazer uma leitura do contexto político atual, a jornalista da Asacom, Verônica Pragana, entrevistou o engenheiro agrônomo e secretário executivo da ANA, Denis Monteiro. Confiram!
Asacom – Como a sociedade civil vê a iniciativa do Governo Federal em elaborar esta política?
Denis Monteiro – Na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), vemos, por um lado, com certa surpresa, e por outro, com uma oportunidade de propor ações mais consistentes para o fortalecimento da agricultura familiar com enfoque agroecológico. Suspresa porque é um movimento aparentemente contraditório do governo, já que está claro que o modelo que defende e implementa para a agricultura e o meio rural é o do agronegócio, de exportação de commodities. O Brasil é, desde 2008, o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, e o Estado se omite de fiscalizar e ainda dá isenções fiscais. O governo atuou de forma militante para liberar, nos últimos anos, diversas variedades transgênicas de soja, milho, algodão e até feijão, o que é radicalmente contrário à agroecologia.
O Estado não tem cumprido o papel de reconhecer os territórios de comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, o que abre caminho para um ofensiva brutal sobre esses povos; a reforma agrária está praticamente parada. Não só não apoia, como também desapropria territórios para grandes obras, basta ver o caso de Belo Monte ou da Chapada do Apodi no Rio Grande do Norte. Isso tudo é contraditório com a defesa da agroecologia, pois não se avança sem uma agricultura familiar forte, sem a reforma agrária, sem reconhecer os territórios das comunidades tradicionais e sem reverter este modelo que torna o Brasil exportador de commodities, gerando riqueza para os latifundiários e corporações, pobreza nos territórios [das populações locais] e deixando degradação do meio ambiente e das condições de saúde.
Segundo motivo da nossa surpresa: por que só agora? Não estamos no primeiro ano de governo, mas sim no nono ano, se contarmos desde o primeiro governo Lula de 2003. Ficamos nos perguntando se o governo vai dedicar esforços para construir uma política consistente, abrangente, eficiente, se vai enfrentar os desafios e contradições, contrariar interesses do agronegócio, ou se isto é só uma jogada de marketing verde às vésperas da Rio+20. Queremos acreditar na primeira hipótese.
Asacom – O atual contexto político é favorável às pautas defendidas pela sociedade civil para a política?
DM – Se olharmos para as questões que levanto acima, vemos um contexto político bastante desfavorável. Porém, o modelo brasileiro baseado em exportação de commodities será colocado em questão mais sistematicamente daqui pra frente com o agravamento da crise mundial. Haverá mais espaço para visões críticas e propostas alternativas. As contradições afloram e a sociedade começa a reagir. Veja o exemplo do Código Florestal, a sociedade se manifestou em defesa das florestas, e entendeu bem que está em jogo o “liberou geral” para mais desmatamento, avanço da soja e da cana sobre os cerrados e Floresta Amazônica, do eucalipto pelo país inteiro. Cresce a preocupação com as enchentes, deslizamentos, secas prolongadas, efeitos das mudanças climáticas e da degradação ambiental gerada pelas monoculturas e pela ausência de políticas consistentes para conter o desmatamento e promover a conservação ambiental.
Outro exemplo interessante: a Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e pela Vida tem sido bem sucedida em mostrar que os monocultivos e os transgênicos estão provocando uma contaminação ambiental por agrotóxicos sem precedentes na história do país, e as pessoas não querem veneno, nem o trabalhador rural, nem o consumidor na cidade.
Uma política séria de agroecologia tem que ter um plano claro de controle do uso de agrotóxicos, que retire a absurda isenção de impostos e promova uma drástica redução do uso de venenos e transgênicos no Brasil. Isso a sociedade quer e é obrigação do Estado fazer. Isso tudo acontece quando o Brasil vai sediar a Rio+20 e as questões ambientais estarão no centro das atenções.
Vamos nos mobilizar para denunciar os impérios alimentares como grande causador da crise atual e apontar as reais soluções para a crise. Uma delas é seguramente a agroecologia e o fortalecimento da agricultura camponesa. Temos muitas experiências bem sucedidas que apontam o caminho e elas pesam a nosso favor no atual contexto político.
Asacom – Diante deste quadro, qual a contribuição mais valiosa da sociedade civil neste processo? Quais são as premissas que não devem ser deixadas de lado?
DM – A construção de experiências concretas que se orientam pelos princípios da agroecologia sempre foi feita pela sociedade civil, na grande maioria dos casos sem apoio das políticas públicas, ou apesar das políticas públicas, que no geral promovem o modelo agroquímico, mesmo junto à agricultura familiar. Não estamos falando somente de promover um setor da agricultura, de nicho de mercado para produtos orgânicos, entendemos a agroecologia como uma proposta de organização das agriculturas e do meio rural desse país em outras bases, em contraponto ao agronegócio.
Então, uma de nossas contribuições é politizar esta discussão, colocar em debate os rumos do desenvolvimento rural. Outra premissa fundamental é que não se constrói uma política nacional de agroecologia sem promover a participação ativa da sociedade civil. Se a política não fortalecer estas organizações, favorecer ferramentas para que elas protagonizem a política, não vai funcionar. Ao Estado cabe o papel de retirar entraves, apoiar, criar programas que gerem mobilização social, melhorar a infraestrutura das comunidades rurais, adequar as políticas de financiamento e de assistência técnica que promovam o diálogo de saberes entre agricultores e equipes de assessoria técnica, e não fazer uma coisa de cima pra baixo, nas quais os agricultores são apenas beneficiários.
Asacom – Em que medida a ação da ASA ajuda a sociedade civil a formular suas propostas para a Política Nacional de Agroecologia? Quais os aprendizados que vêm dessa experiência?
DM – A ASA tem contribuição fundamental. As mobilizações de 2011, contra o absurdo das cisternas de plástico e em defesa do P1MC e P1+2 como programas com participação popular verdadeira, que empoderam as comunidades, promovem a segurança alimentar e dinamizam as economias locais, foram uma lição de política para a sociedade brasileira e para o governo. Dissemos em reunião com o governo: mas como vocês querem construir uma política nacional de agroecologia e desmontam o P1MC e P1+2? É uma contradição muito evidente. O maior aprendizado está na construção de propostas de políticas públicas que geram autonomia e participação dos agricultores e suas organizações, que políticas, para darem certo, precisam promover protagonismo da sociedade civil.
Asacom – No Seminário Regional Nordeste, observou-se algum aspecto que precisa ser cuidado com atenção pensando na diversidade cultural e de biomas do Semiárido?
DM – Um dos ensinamentos é uma premissa da ANA da qual não abrimos mão: os povos tradicionais e suas práticas são muito valiosos para a agroecologia. O Estado, incluindo órgãos de pesquisa e de assistência técnica, tem que ter a humildade de reconhecer este acervo de conhecimentos e práticas e não vir com pacotes prontos, mesmo que disfarçados de agroecológicos. O que faz com que a perspectiva agroecológica avance é o diálogo entre os saberes tradicionais e os conhecimentos sistematizados e produzidos nas universidades e órgãos de pesquisa.
E no Semiárido temos muitos exemplos de iniciativas que envolvem milhares de famílias nos territórios, que ajudam a quebrar o mito que a agroecologia só se faz em pequena escala ou poucas famílias aderem à práticas agroecológicas. No Semiárido, os processos de modernização estão chegando mais recentemente, e de forma desastrosa.
As áreas onde se utilizou o pacote agroquímico, com irrigação pesada, mecanização, estão muito degradadas, até desertificadas. Ao passo que nos territórios agroecológicos que estão sendo construídos, há democratização econômica, conservação descentralizada das águas, sementes na mão dos agricultores, produção maior e mais diversificada de comida para as populações locais, não há contaminação por agrotóxicos. Então, no Semiárido é muito evidente que são dois caminhos opostos: ou se opta pelo fortalecimento da agricultura familiar com enfoque agroecológico ou pelo agronegócio.
Outro exemplo: a questão das sementes no Programa Brasil Sem Miséria. Apesar de todo o acúmulo da ASA de iniciativas de valorização das variedades locais, crioulas, antes realizadas pelos próprios agricultores, e que depois contaram com apoio de políticas como o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e leis estaduais de bancos de sementes, o Brasil sem Miséria está distribuindo sementes de pouquíssimas variedades comerciais, pouco adaptadas às condições culturais e ecológicas do Semiárido. A carta política do II Encontro de Sementes do Semiárido afirma que, desde 2003, somente via PAA foram adquiridas mais de 536 toneladas de sementes de variedades locais que foram doadas a mais de 23.000 famílias.
Asacom – Os princípios da agroecologia estão pautados na participação coletiva, no respeito às diversidades e no incentivo à autonomia dos grupos sociais, neste caso, dos agricultores e agricultoras familiares e nas populações tradicionais. Como estes princípios podem ser garantidos tendo em vista que o governo vem demostrando uma preocupação com o alcance de metas a curto prazo?
DM – A proposta da política nacional de agroecologia pode jogar a favor do campo agroecológico na lida com esta tensão que realmente existe. O que aconteceu com os programas da ASA no ano passado e a distribuição de sementes pouco adaptadas pelo Brasil sem Miséria, são fatos emblemáticos desta tensão, e de como o cumprimento das metas físicas a curto prazo muitas vezes está dissociado da preocupação de resolver os problemas reais com participação popular e gerando autonomia. Os números vão estar lá nos relatórios e nas propagandas do governo, tantas milhares de cisternas ou toneladas de sementes distribuídas, mas os problemas reais não terão sido resolvidos.
Outro exemplo são as políticas de assistência técnica e extensão rural. Achamos muito importantes e reconhecemos os esforços para aprovar uma lei sobre o tema, ampliar o orçamento e reverter o processo de sucateamento dos órgãos públicos de extensão rural, porém os editais de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) estão presos a uma concepção difusionista, de atendimento indivividualizado. E numa política de agroecologia, a ATER tem papel fundamental, mas em novas bases.
Asacom – De que maneira a diminuição da participação da sociedade civil na gestão de políticas públicas da agricultura familiar bloqueia a expansão da agroecologia no campo?
DM – Bloquear a participação da sociedade na gestão das políticas para a agricultura familiar é condená-la ao fracasso, pois quem historicamente construiu as experiências bem sucedidas foram as organizações da sociedade civil. Além do fato que o Estado, principalmente na esfera municipal, permanece sequestrado por interesses de caciques políticos locais, que usam o aparato do Estado e as políticas públicas para manter o povo cativo e obter votos. Podemos citar como exemplo positivo o PAA. O programa, quando apoia diretamente as organizações dos agricultores, fomenta a diversificação da produção, auxilia a organização local e tem impacto muito positivo nos processos de transição agroecológica. Apesar disso, desde 2003, o programa só teve R$ 3,5 bilhões, muito pouco se comparado aos bilhões anuais para o agronegócio ou mesmo para o Pronaf, e sempre está ameaçado pela lógica de só operar via governos estaduais e prefeituras, sem confiar na sociedade.
Asacom – Olhando para a sociedade civil, o documento faz uma autocrítica ao reconhecer um momento em que se vivencia um apagão de ideias e proposições. A que isto se deve e como vencer este adormecimento?
DM – Muitas organizações da sociedade civil, no início do governo Lula, depositaram uma confiança muito grande na capacidade do governo promover mudanças estruturais a favor da agricultura familiar. Fomos a reboque da agenda colocada pelo governo, participamos de vários conselhos, comitês, conferências, para debater a agenda que era colocada, ou construindo propostas que não foram implementadas, embora tenha havido avanços em alguns campos como o da segurança alimentar e nutricional.
Outra questão que demonstra certa fragilidade do nosso campo: agroecologia nunca esteve com a centralidade devida na pauta de reivindicações dos movimentos sociais do campo, sempre foi algo marginal e acessório. Mas este quadro está mudando recentemente. Além disso, nos últimos anos as organizações da sociedade civil estão numa crise séria. Há uma estratégia orquestrada da direita para criminalizar os movimentos sociais e as organizações não governamentais, e o governo federal acaba refém desta tática, que é extremamente prejudicial para a democracia no Brasil.
Vencer este adormecimento passa por voltar a organizar nossas reflexões próprias, fazer a nossa análise da conjuntura política e das contradições do momento histórico atual. Deixamos de fazer isso para ir a reboque da pauta proposta pelo governo. Também acho que temos que sair da defensiva, devemos ser mais contundentes na defesa da agroecologia e formular as nossas propostas a partir das experiências, a nossa agenda política, independente de governo e fazer mobilização social para que tenhamos força política para fazer valer o que acreditamos.
Fonte: http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_NOTICIA=7272