Entrevista com Elisa Guaraná, professora da UFRRJ, sobre a juventude camponesa nos últimos 15 anos
Nos últimos dias, 26 a 28 de outubro, cerca de 150 jovens de todo o País estiveram reunidos em Recife (PE), na Plenária Diálogos: Juventude e Agroecologia. O encontro contou com a participação de Elisa Guaraná, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que foi coordenadora geral de políticas transversais da Secretaria Nacional de Juventude, de 2011 a 2014. O Brasil de Fato Pernambuco, aproveitou para conversar com Elisa, que fez um panorama sobre a juventude nos últimos 15 anos e conversou também sobre a conjuntura que envolve a juventude no Brasil e, em especial, sobre agroecologia e as ocupações das escolas em diversos estados.
Brasil de Fato – Que importância tem a gente conseguir juntar as juventudes de quase todos os estados do Brasil aqui nesse encontro?
Elisa Guaraná – Fantástico, porque a gente teve, eu acho, que 15 anos de intensa aproximação e potencialização de esforços da educação popular, da educação do campo, da agroecologia e de muitas outras formas de organização popular que já vinham acontecendo e que começaram a se intensificar. Somaram algumas políticas públicas que efetivamente conseguiram chegar mais perto dessa dinâmica de fortalecer processos organizativos da juventude, mas, mais ainda, acho que somou com o esforço da própria juventude em se auto-organizar. Eu tenho trabalhado muito a ideia de que esses 15 anos foram muito importantes nessa organização da juventude. Juventude que se organizou por setores, temas e identidades territoriais. Se organizou por partidos políticos. Todos os partidos tem uma organização de juventude hoje, todo movimento do campo tem juventude organizada. Aqui você vai ter uma juventude da agroecologia, do campo e da cidade e isso é muito importante. Você vai ter a juventude organizada a partir de temas étnicos, culturais e, ao mesmo tempo, tendo o tema da agroecologia como central, que está em disputa e sempre esteve. E agora mais do que nunca nesse momento que a gente está tendo tanto retrocesso. […] Teve um evento que aconteceu esta semana, no qual o secretário nacional de juventude, um secretário golpista, se reuniu com Blairo Maggi do MAPA [Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento] e eles lançaram o que eles estão pensando para a juventude rural que é o programa Inova Jovem, focado no agronegócio. A propostas deles é identificar no agronegócio experiências de juventude que podem ser exitosas para receberem apoio. Outro rumo para isso a gente vai garantir na resistência, e aí a juventude organizada é fundamental. A gente nem precisa entrar muito nesse assunto, todo mundo sabe, mas discutir o hoje e o amanhã sem pensar a juventude é quase impossível no Brasil.
BdF– A organização da juventude nesses diversos setores mostra o papel protagonista das juventudes?
Elisa – Sem dúvida nenhuma. E eu acho que o que a gente tem de novo, de 15 anos para cá, não é que a juventude nunca tivesse se organizado. Durante a resistência à ditadura militar, especialmente em diálogo com a Igreja Católica, a gente teve um esforço de organização da juventude e é claro que a juventude estava presente em todos os movimentos sempre. Os nossos principais movimentos pela terra sempre teve jovens, o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] e a Fetraf [Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar] são dois exemplos que são bem característicos pela relação com a Igreja. A Fetraf com a Pastoral da Juventude são movimentos que tiveram jovens no seu surgimento. Eu acho que a grande diferença dos últimos anos é a identidade jovem surgindo como uma identidade política. Ela é uma identidade hoje, que mobiliza, organiza e apresenta a pauta e isso não tinha com tanta força. Nacionalmente a gente tinha alguns lugares, mas a gente não tinha nacionalmente, com exceção da PJR [Pastoral da Juventude Rural] – sem dúvida a organização mais antiga que a gente tem de juventude rural do campo, não tínhamos isso com esse grau de articulação que a gente tem hoje.
BdF – Importante você marcar esses últimos 15 anos porque o que sempre se ouve é que a juventude não sabe o que quer, que a juventude de hoje não é igual a dos anos de 1980. E aí você traz essa questão do reconhecimento da identidade de juventude…
Elisa – Exatamente. Qual era a nossa principal identidade nos anos 80? Eu sou urbana, era o movimento estudantil. No movimento sindical você tinha uma juventude que não se identificava nem se organizava como tal, mas estava muito presente, como eu disse, no movimento do campo. Mas o que era associado a juventude era basicamente o movimento estudantil. Então, acho que a gente tem um avanço enorme com o reconhecimento dessa diversidade, nesse sentido também acho que teve um papel do debate também na academia. Tivemos um momento que potencializa esse protagonismo e esse esforço de organização, essa força da juventude nos últimos 15 anos porque você juntou a academia saindo da caixinha, pensando um pouco que diversidade é essa, saindo um pouco das questões mais biológicas que definiriam juventude como uma lógica mais da identidade, das construções a partir da própria juventude. Você tem esse esforço mais recente de políticas públicas, ainda que com muitas limitações, mas elas aconteceram e ajudaram um processo de visibilização e fortalecimento da juventude como categoria social. Aí a juventude é percebida na sociedade brasileira como uma população que precisa de políticas públicas, que tem direito a políticas públicas. O marco é o Estatuto da Juventude, sem dúvida nenhuma. O Estatuto é uma referência no mundo inteiro e foi promulgado em 2013, mas ele vem de um longo processo, ele tinha quase 10 anos de debate. Existem poucos estatutos com essa perspectiva de diversidade e múltipla articulação de políticas públicas. Acho que a gente teve alguns avanços muito importantes, como o reconhecimento social e político da juventude. A forma como se analisa esse fenômeno acho que avançou também. Não quer dizer que a gente conseguiu que efetivamente as pautas e agendas da juventude entrassem de forma central tanto nos movimentos sociais quanto no governo, nenhuma dessas duas coisas aconteceram. Na minha opinião, a gente ainda está longe disso. Tanto nos movimentos sociais como no governo a gente ainda está em um esforço. É preciso traduzir uma narrativa que potencializa, que fortalece, que trata a juventude como algo extremamente importante, como uma população central para que efetivamente isso seja uma agenda política tanto dos movimentos sociais como do governo.
BdF – Quando você fala desse aspecto da juventude dentro dos movimentos sociais, que tem esse esforço de pautar a juventude, mas o que seria de fato a participação da juventude construindo esses movimentos?
Elisa – Eu acho que a juventude está presente fortemente, está reivindicando um outro lugar, discutindo. Em todas as organizações, se formos pegar as mais tradicionais, as organizações da Via Campesina, as organizações sindicais, você tem uma presença muito forte da juventude reivindicando esses espaços, participando e, em muitos casos, ações que foram feitas aqui e ali. Por exemplo, a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura ] no seu esforço pelas cotas, que é uma via, a única que adota isso dessa maneira hoje e você tem jovens dessa geração na direção. O vice-presidente da Contag é jovem desse processo dos últimos 15 ano. Você tem mulheres com muita presença, tanto na Contag, como na Fetraf. Eu diria que no MST um pouco menos, mas também, na PJR é muito presente jovens mulheres. Então tudo que a gente sabe do processo de expulsão das mulheres maior que dos homens no campo, na dificuldade paras mulheres participarem, num sentindo mais amplo, você ter nesses últimos 15 anos lideranças jovens mulheres representando os movimentos como a gente teve em vários casos nos diz que ali tem um espaço importante de mudança, inclusive de cultura política. Mas eu acho que isso não se traduziu ainda numa agenda mais efetiva para a juventude na hora da negociação de pautas e a gente acompanha isso já a algum tempo. Então avança bem lentamente nesse sentido. Entendendo também que as pautas da juventude do campo são peculiares. É muito interessante isso, porque se a gente olha outros segmentos da juventude, muitas vezes as pautas são muito específicas. Algumas porque são muito, muito urgentes, como no caso da juventude negra, que pauta acabar com o extermínio da juventude negra. A pauta da juventude rural e também da juventude indígena, da juventude quilombola é uma pauta muito focada no debate mais amplo da questão agrária brasileira, da estrutura fundiária. E não significa que eles não tenham pautas específicas, eles tem. E eu acho que é isso que geralmente entra num espaço menos importante e efetivamente a gente tem situações de urgência. Se não mudarmos a forma de gestão, no bom sentido da palavra, de compartilhamento das decisões na família, se a gente não mudar a maneira como as mulheres, especialmente as jovens, ainda enfrentam o machismo, o patriarcalismo no campo e a violência doméstica, que finalmente está aparecendo – era uma coisa escondida no campo brasileiro, se a gente não mudar o entendimento de que as comunidades precisam estar abertas para a juventude- até hoje a gente ouve a luta que é pra você construir um campo de vôlei, um campo de futebol porque é entendido como um espaço de invasão do de fora. Isso eu ouço há 20 anos e a gente continua ouvindo isso, ou não valorizar as outras formas de expressão cultural que a juventude traz, que nem sempre é só aquela expressão cultural tradicional, muitas vezes é a conjunção disso. No Rio de Janeiro, por exemplo, as juventudes dos quilombos ouvem funk e estão na umbigada, e eles gostam das duas coisas. E esse trabalhar as múltiplas formas de expressão cultural permite essa aproximação que a gente está vivendo aqui hoje, que a juventude urbana e a juventude do campo consigam romper fronteiras que até hoje são tão fortes para eles.
BdF – Você acha que esses elementos são importantes pra a permanência no campo, para a vivência no campo?
Elisa – Acho que temos duas coisas importantes aí. Temos um campo de probabilidades, que não é o cálculo racional simples de projeto de vida. Aquele jovem que olham pro contexto e diz assim: ‘não tenho nenhuma chance de permanecer aqui em condições melhores de vida. Porque ao longo desses anos, apesar de ter avançado alguma coisa, minha família continua com dificuldade para comercializar sua produção, tem muitos altos e baixos’. Essa é uma análise bastante qualificada da realidade. A juventude hoje, principalmente essa juventude que está mais envolvida com a condição na ponta, sabe das dificuldades, olha em volta e diz: “bom, o que eu posso fazer não só na minha vivência, mas na da minha família”. Então saem, vão trabalhar. A gente avançou em coisas muito importantes, a educação do campo acho que é o nosso maior legado dos últimos anos. A gente tem hoje migração de retorno, uma coisa nova, tem uma juventude voltando porque percebe que existe possibilidade concreta. Não é só renda, é o espaço da gestão. Então tem coisas que não envolvem só a política pública ou a família. Vai avançar na comunidade, nas associações, no sentido de que a juventude não seja sempre linha auxiliar e possam participar de forma mais efetiva. Ou, nem com toda política pública do mundo, a gente consegue avançar para que eles queiram ficar. Tem essas duas coisas. Questões bem objetivas, que a gente avançou pouco ainda e tem as questões mais subjetivas, que são essas outras que envolvem a aceitação da juventude, diferenças, aceitação da juventude rural homossexual, que se já é difícil na cidade, no campo é bem difícil. Então, acho que discutir a permanência é discutir a possibilidade concreta também do que está sendo pensado para que essa juventude seja aceita do jeitinho que ela quer ser. Ela precisa ser ouvida e respeitada.
BdF – Como você enxerga o papel da juventude para o desenvolvimento da agroecologia, levando em conta até o que você já pontou sobre as especificidades dessa população?
Elisa – Olhando de onde eu estive nesses últimos anos, eu diria que a maioria dos projetos apresentados sempre envolviam agroecologia. A gente conseguiu garantir um edital de apoio a projetos produtivos coletivos. A maioria dos projetos são agroecológicos. Você não precisa nem dizer que vem. Esse era bem focado para a juventude do campo e esse era um problema, pois teria que ser só agrícola. Fizemos um longo debate que tinham que ser atividades agrícolas e não agrícolas, que é outro tema complexo e não é uma lógica da pluriatividade. É uma possibilidade de você construir uma outra vivência no campo que bem seja necessariamente pluriativa. Não quero trabalhar na terra, eu quero construir uma produtora de vídeo pra filmar festas e isso foi muito difícil de convencer eles [os financiadores]. O fundo disso é o mesmo, que o rural no Brasil é agrícola, isso ainda é uma questão complexa para a juventude, porque ela não se vê somente dessa maneira. E aí no caso da agroecologia você tem uma juventude muito presente, pensando, experimentado e querendo experimentar mais. Vimos a pouco que na nossa recuperação histórica, a gente começa a ter um reconhecimento [dessa juventude na agroecologia] no III ENA [Encontro Nacional de Agroecologia, 2014], que são mais de 10 anos depois do primeiro ENA.
BdF – Qual olhar que você traz pra a juventude do Semiárido?
Elisa – Eu acompanhei um pouco mais o Semiárido via Secretaria de Desenvolvimento Territorial, mas também na Secretaria Especial de Juventude a gente fez uma experiência de formação que foi em parceria com a Unilab [Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira] no Semiárido, e no Cerrado com a UnB [Universidade de Brasília]. A gente escolheu esses dois biomas pelas suas complexidades que demandam muito da inserção para gerar efetivamente uma convivência que seja articulada, e ao mesmo tempo são regiões onde você tem também um processo, digamos, de expulsão e circulação muito intenso, de onde sai uma mão de obra, no caso do Semiárido, muito forte para o Sudeste, em função dos trabalhos sazonais, mais especificamente a cana-de-açúcar. No caso do Cerrado é uma expulsão definitiva, muitas vezes não é exatamente essa dinâmica da população que a gente vê no Nordeste. No Cerrado, com todo cerco que tem do agronegócio, o que sobra é muito difícil de se manter. Estamos dando passos. São biomas onde você tem processos de resistência muito grande. O que a gente viu nesse tempo todo foi um esforço de resistência muito grande da juventude. Ela carrega, no caso do Semiárido, várias experiências e são uma quantidade tão impressionante de experiências de juventude. A gente viu isso porque chegava em espaços que a gente promovia, porque chegava como projeto, porque chegava como demanda de evento, porque chegava de múltiplas formas. Que não necessariamente você consegue ver, por exemplo, tão claramente até mesmo no Sudeste. Claro que você tem várias experiências de juventude no Sudeste, mas acho que o Semiárido é impressionante pela quantidade de experiências de juventude. E aí a agroecologia sempre apareceu pra gente muito intenso nesse diálogo. Eu acho que esse foi outro ganho forte que a gente teve, a virada de um olhar predatório sobre o Semiárido, predatório politicamente, de geração da dependência absoluta que era o que a gente tinha como política do governo. A política de governo para o Semiárido era uma política de dominação, era uma política de coronelismo, onde os governos eram os coronéis. Numa dinâmica de dependência concreta o ano todo, não era só na época da seca. E você faz um giro, porque hoje efetivamente não é só o grande produtor da região que tem acesso às políticas que tocam o tema da água. A política de cisternas é algo espetacular, um impacto incrível de mudar a realidade do poder. Eu acho até que a gente pode não avançar, mas tem coisas que não tem como retroceder, pois ninguém vai lá e arranca tua cisterna. Pelo menos isso a gente sabe: tem coisas que foram construídas e coisas como a apropriação da tecnologia, que foi bem importante.
BdF – Por falar em resistência, a gente tem vivido esse momento de ocupação nas escolas. Queria que você falasse um pouco desse processo.
Elisa – São mais de mil escolas ocupadas, tem casos que são impressionantes do que isso significou em termos de adesão. É claro que a mídia está violentíssima em cima do caso que aconteceu agora no Paraná, que poderia ter acontecido em qualquer contexto escolar. O que é mais bacana das ocupações é que é um processo muito autogestionado. Talvez, nesse momento, tenhamos que pensar em como podemos apoiar esse processo da autogestão sem interferir, mas colaborando para que eles não fiquem tão vulneráveis. […] A reforma do Ensino Médio é gravíssima, e é no bojo desse esforço que a gente está vivendo de resistência a algo que é uma ditadura clara em termos ideológicos. Ideologicamente nós estamos vivendo uma ditadura, que de fato foi um golpe parlamentar. E essa ditadura vai se configurando com o uso, cada vez mais evidente, do parlamento que está na mão do governo. Nós temos um quadro que vamos, aí sim, enfrentar possíveis retrocessos nos espaços de debate, agora eu tenho a sensação forte de que algumas coisas a gente não retrocede mais. Esse grau de organização da juventude do Ensino Médio era uma coisa que a gente não via com tanta força a muito tempo. A gente pode não ganhar essa batalha agora, mas essa batalha continua, não é uma batalha com data. […] A gente pode dizer o que quiser, mas essa é uma geração muito presente no cenário político na esquerda e na direita. Temos uma juventude de direita muito organizada, uma juventude fascista, organizadíssima com muitas inserções nas redes sociais, com estrutura bancada por partidos e empresários. E nós [campo da esquerda] não teremos um apoio fácil, se é que um dia foi fácil, mas teremos muitos problemas financeiros de apoio as nossas causas e eu acho que a gente aprendeu a lutar de outras formas e vamos lutar e é isso. E que a juventude ocupada dentro das escolas aguente. […] As mudanças são muito graves no Ensino Médio, na verdade é uma mudança que vai do Ensino Médio à pós-graduação com discurso do Ensino Técnico, que não é verdadeiro, um discurso de inovação que não é verdadeiro.
Por Catarina de Angola para Brasil de Fato
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