Nos dias 29 e 30 de outubro, em Campina Grande, o Encontro ‘Semiárido Paraibano e suas Negritudes’ reuniu cerca de 70 pessoas entre agricultores e agricultoras, jovens, mulheres, quilombolas, comunidades e povos de terreiro e representantes de organizações não governamentais todos ligados à Articulação do Semiárido Paraibano – ASA Paraíba. O evento foi promovido por três Unidades Gestoras dos Programas Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Cisternas nas Escolas da ASA Paraíba: AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM e Patac.
Os objetivos foram refletir sobre questões de identidade racial e racismo no semiárido paraibano, compreender quais as formas de expressão do racismo na região e sua construção histórica e tirar encaminhamentos para levar a discussão do preconceito racial e da intolerância religiosa para as comunidades.
Em seu momento inicial, o encontro buscou trazer elementos e propor uma reflexão aos participantes acerca da sua ancestralidade, pedindo que cada um lembrasse daquela pessoa que lhe influenciou, lá atrás a partir das perguntas: “Quem eu sou? De onde venho? Quem foi uma pessoa importante/inspiradora na minha vida?” O momento levou muitas pessoas a se emocionarem.
Uma delas foi Moizes de Souza Alves, de 21 anos, negro e estudante de Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, Campus Sumé, morador da Comunidade Mirador, município de Aroeiras. Ele lembrou do avô já falecido: “Quando eu falava que queria estudar, ele dizia que só fazia universidade quem tinha dinheiro, quem era rico. Mas eu dizia, eu vou fazer para tirar minha mãe das condições em que ela me criou. Hoje, espiritualmente, sei ele está comigo, mas queria que estivesse fisicamente, para lhe abraçar e dizer ‘eu consegui’, vou me formar e, futuramente, fazer meu mestrado e doutorado”.
Na tarde de seu primeiro dia, uma roda de conversa dividida em dois momentos, em sua primeira rodada contou com as participações de Edilene Monteiro, liderança da Comunidade Quilombola Santa Rosa, de Boa Vista-PB; Margareth Maria de Melo, professora do curso de Pedagogia e integrante do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB e Jô Oliveira, assistente social e ativista pelos direitos das mulheres e da população negra.
“A nossa luta é desde que a gente nasce” iniciou Edilene ao falar da sua comunidade e seus 320 anos de história, no final de 2018 reconhecida como território remanescente de quilombo”.
De acordo com a liderança, o maior desafio é fazer a própria comunidade se aceitar e se valorizar enquanto negra. “Sempre digo para meus filhos, levantem a bandeira do quilombo e nunca tenham vergonha de serem quem vocês são”.
Edilene listou as inúmeras conquistas trazidas com a organização comunitária após anos de esquecimento e abandono por parte das políticas públicas: uma nova sede para a associação, três poços e sistema de irrigação para um campo de palma, banco de sementes comunitário e acesso à água de beber e produzir por meio dos Programas Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas Águas.
Margareth iniciou questionando a plenária sobre o que sabiam sobre a história do povo negro no Brasil. A pesquisadora reivindicou uma nova forma de ler a história do país, desconstruindo alguns mitos: “A ideia de que o negro aceitou a escravidão é errada. O negro sempre lutou por liberdade, dignidade e tinha muito claro o seu direito a essas coisas. Exemplo disso foram as inúmeras formas de resistência individuais e coletivas como a capoeira, as revoltas, a formação dos quilombos, o movimento abolicionista, os terreiros, a estética, entre outras”.
Jô Oliveira contou sua história como filha de trabalhadora doméstica, categoria majoritariamente feminina e negra. Ela afirmou não ser nenhuma coincidência que as trabalhadoras domésticas tenham demorado 70 anos para conquistarem os direitos trabalhistas das demais categorias: “Se a gente pensar, porque será que elas foram as últimas a conquistarem direitos trabalhistas dos outros profissionais, e agora na reforma da previdência, que retirou direitos, foram as primeiras a entrar?”, questionou.
Após um momento de interações da plenária, a roda de diálogo teve sequência com a participação do agricultor e pai de santo Joeliton Elias, ou Pai Leca de Oxalá, da comunidade Malhadinha, município de Boa Vista-PB. O pai de santo falou sobre os preceitos da sua religião, sobre preconceitos enfrentados, intolerância religiosa e tirou dúvidas dos participantes do encontro sobre temas como sacrifício de animais, a fala em línguas nos rituais, diferenças entre o candomblé, umbanda e jurema sagrada, os orixás, a relação com as divindades, entre outras.
“Sem os orixás não existe a natureza, pois é isso que eles são, as forças da natureza, o ar, o fogo, os mares. Na jurema, a gente cultua a natureza, é por isso que eu não acredito no religioso que joga garrafas, velas, animais por aí, sujando o meio ambiente. Esse tipo de rito é irresponsável”, disse.
“Os animais que nós oferecemos em sacrifício são uma forma de dar continuidade à tradição. Mas não há desperdício, a carne é comestível, se a gente mata um bode hoje, amanhã tem buchada para todo mundo no terreiro, aquela carne vai alimentar a comunidade toda”, explicou.
A noite cultural do evento foi dedicada a uma imersão na cultura e nas religiões de matriz africana, por meio de uma vivência com o candomblé e a jurema sagrada, com a presença dos representantes do Terreiro de Pai Leca, o Ilê Axé de Oxalá, da Comunidade Malhadinha. Além dos cânticos, danças e da partilha da bebida da jurema, os participantes assistiram à apresentação dos tambores do grupo de percussão Batuque Ayan, de Campina Grande.
No último dia do evento, divididos em grupos de cochicho os participantes do encontro debateram as questões: O que é racismo? Já sofri racismo? Eu me identifico como uma pessoa racista? Do exercício, saíram diversos depoimentos fortes, como o de Josenildo Torres Lopes, do município de Soledade-PB: “Eu fui pedir uma informação na porta de uma loja e percebi que pela cor da minha pele e, por estar usando casaco, a moça se assustou, ela pensou que eu fosse a assaltar. Na hora eu senti que foi pela minha cor”, contou.
Ao final do encontro as representações dos territórios presentes levantaram e socializaram as lições aprendidas e as propostas sobre como levar esse debate para as comunidades rurais de onde cada um e cada uma vem e como buscar caminhos de superação.
“Precisamos enfrentar a questão do racismo e da intolerância religiosa com muita clareza, trazer para dentro das nossas ações de convivência com o Semiárido esse debate”, frisou Roselita Vitor, do Polo da Borborema e da Articulação do Semiárido Paraibano.