O dia 23 de outubro de 2019 foi de alegria e de realização de sonhos no município de São João do Triunfo, Paraná. Agricultoras, agricultores, Guardiãs e Guardiões de sementes, representantes do poder público, sindicatos rurais, associações, cooperativas e organizações de assessoria se reuniram para a inauguração da Unidade Agroindustrial de Beneficiamento do Milho Crioulo Ecológico. A Agroindústria, gerida coletivamente por cooperativas da agricultura familiar, receberá milho produzido por famílias guardiãs de sementes crioulas e beneficiará alimentos como a canjica, o fubá e a quirera. Para assegurar que os grãos não estejam contaminados por OGMs, eles serão testados antes do processamento na agroindústria.
Além de produzir comida de verdade, sem contaminação por agrotóxicos ou transgênicos, a proposta da agroindústria é conectar produtores/as e consumidores/as, estreitando laços entre campo e cidade. Dois mercados já estabelecidos pela Agroindústria envolvem a parceria com o poder público local para a venda dos derivados de milho ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e ao Programa Municipal de Aquisição de Gêneros Alimentícios da agricultura familiar, que garantirão alimentos saudáveis nas escolas e creches públicas.
Além de saudar a nova agroindústria, essa matéria descreve a trajetória de conquistas e conflitos no Centro Sul do Paraná onde, nas famílias e comunidades, agricultores e agricultoras se organizam há décadas para defender a agrobiodiversidade e promover a agroecologia.
Primeiras sementes: encontros entre agricultores/as com a proposta da agroecologia
Sementes crioulas estão em risco de desaparecimento, destruindo relações sociais e ecológicas estabelecidas ao longo de séculos entre as familias agricultoras e suas variedades. Para muitas pessoas a palavra século pode soar como exagero. Porém, quem vai ao Paraná, especialmente no Centro Sul do estado, ou se encontra com as Guardiãs e Guardiões das sementes que transitam em feiras pelo Brasil, pode ter a oportunidade de segurar na palma da mão uma variedade de milho que, entre plantios e colheitas, tem mais de 100 anos.
As preocupações com as sementes crioulas no Paraná e a necessidade de práticas de conservação levam pelo menos à década de 1990, especialmente, à Rede Projeto Tecnologias Alternativas (Rede PTA). Dentre as estratégias da Rede, estavam as ações de resgate, avaliação e multiplicação das sementes crioulas. Naquele momento, o trabalho se contrapunha à erosão genética causada pela disseminação de sementes comerciais, sobretudo as híbridas.
Em 1993, a AS-PTA instalou-se na região, dando início a um trabalho sistemático de assessoria a organizações da agricultura familiar, visando à conservação das sementes crioulas. Logo no primeiro ano de atuação na região implantou ensaios de avaliação de variedades crioulas. [1] Dez variedades locais de milho e 10 de feijão foram plantadas nesses ensaios com o objetivo de avaliar suas produtividades, adaptabilidades e a respostas a práticas de manejo ecológico, como a associação com adubos verdes, o uso de caldas e biofertilizantes. O trabalho continuado foi aos poucos envolvendo novas famílias e organizações. Desde então, foram realizados 245 ensaios de variedades em comunidades de diferentes municípios da região.
Intercâmbios e aprendizados compartilhados
Um momento de grande inspiração para os/as agricultores/as do Paraná foi o intercâmbio realizado no Rio Grande do Sul, onde puderam conhecer a experiência da família Gasparin, que já desenvolvia práticas de resgate e conservação das sementes crioulas associadas à produção orgânica de milho. A partir daí foram organizados encontros para partilhar o conhecimento de práticas que poderiam ser utilizadas na produção de sementes, desde aquelas associadas ao resgate das sementes até a preparação e uso de insumos caseiros e naturais. Esses encontros se repetiram durante vários anos e criaram na região um movimento potente em defesa da agrobiodiversidade. Em poucos anos, já haviam sido resgatadas e caracterizadas na região 148 variedades crioulas de feijão, 138 de milho, 32 de arroz e 28 de trigo.
Mulheres guardiãs e o início das feiras de sementes
Em agosto de 2019 foi realizada no município de Rebouças, Paraná, a 17ª Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade que reuniu durante dois dias mais de 100 expositores/as da agricultura familiar vindos de 60 municípios e aproximadamente quatro mil visitantes. A primeira feira na região foi realizada em 1999, a partir da iniciativa de um grupo de nove mulheres agricultoras no município de União da Vitória. O grupo se reunia nas tardes de sábado em uma roda de chimarrão para conversar e organizar suas ações. Em um desses encontros, as mulheres combinaram levar as sementes que cultivavam em suas propriedades para o encontro seguinte. Veio daí a bonita surpresa – reuniram mais de 100 tipos de sementes cultivadas!
Essa constatação levou à ideia de realização de uma feira municipal para que outras sementes fossem trocadas. Com apoio e assessoria da AS-PTA, da Prefeitura Municipal de União da Vitória e do Sindicato dos/as Trabalhadores/as local, a ideia do grupo foi levada à frente. A 1ª Feira Municipal de Sementes Crioulas de União da Vitória reuniu mais de 21 comunidades do município, contou com aproximadamente mil pessoas e possibilitou o resgate de sementes de diversas espécies e variedades, incluindo plantas nativas e animais.
O sucesso dessa iniciativa incentivou que organizações de outros municípios da região dessem início às suas próprias feiras. Desde então, foram realizadas 77 feiras municipais em 14 municípios. Já no ano 2000, organizações de diferentes municípios reuniram-se para organizar a 1ª Feira Regional da Agrobiodiversidade do Centro Sul do Paraná. Alguns anos depois, organizações de municípios do Norte de Santa Catarina se associaram à iniciativa.
A contaminação por transgênicos
O ano de 2006[2] marcou a vida dos/as agricultores/as, guardiões/as e técnicos do Centro Sul do Paraná. A chegada da soja transgênica e, em seguida, do milho transgênico anunciava o agravamento de preocupações que sempre existiram por conta da difusão do milho híbrido e dos pacotes agroquímicos com apoio decisivo de políticas públicas.
Para articular uma reação diante dos riscos de contaminação genética, foi criado na região o grupo “O Milho é Nosso”. Além de intensificar o trabalho com as variedades crioulas de milho, o grupo tinha por objetivo incidir sobre as políticas públicas e denunciar as falsas promessas dos transgênicos.
Em 2007 a variedade de milho transgênico Bt[3] foi liberada para cultivo comercial pela Comissão Nacional de Biossegurança (CTNBio). Como os ataques de lagartas vinham se intensificando na região devido à redução da diversidade genética do milho pela introdução de variedades híbridas, as empresas anunciaram que a solução seria o plantio da variedade transgênica Bt. Muitos agricultores/as familiares foram atraídos por essa propaganda, o que explica a rápida disseminação dos cultivos transgênicos na região.
Para enfrentar esse desafio, o Coletivo Triunfo foi constituído entre os anos de 2010 e 2011. O grupo, formado em sua maioria por guardiões/ãs da agrobiodiversidade passou a atuar desde então na defesa da agrobiodiversidade e no monitoramento da conservação das sementes crioulas.
Mesmo diante de todos os esforços para a conservação da agrobiodiversidade, a gravidade da situação tornou-se evidente em 2010, quando um monitoramento realizado pela AS-PTA e pelo Coletivo Triunfo identificou a perda de quase 45% das variedades crioulas de milho quando comparado com o levantamento feito em 1998.
O Programa de Aquisição de Alimentos e a conservação das sementes crioulas
Em 2011, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), operado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), colocou em prática a modalidade de compra e doação simultânea de sementes crioulas. A AS-PTA assessorou a Cooperativa de Agricultores e Agricultoras Ecológicos de São Mateus do Sul (Cofaeco) na formulação de um projeto para o PAA. O sucesso do programa estimulou a formação de novas cooperativas como a CAFPAL – Cooperativa da Agricultura Familiar de Palmeira, e a COOPCATS, de Teixeira Soares. Entre as safras de 2011 e 2014, foram produzidas mais de 150 toneladas de sementes de milho crioulo de 25 variedades, que beneficiaram aproximadamente oito mil famílias, a maioria delas no Paraná.
Não demorou, porém, para que a iniciativa inovadora do PAA na criação de mercados para alimentos e sementes incomodasse grupos do agronegócio que historicamente se beneficiaram dos recursos públicos para viabilizar suas atividades empresariais. Entre 2009 e 2013 a Polícia Federal desencadeou a operação Agro-Fantasma com o objetivo de investigar supostas irregularidades na execução do PAA. A operação resultou em uma série de processos e prisões infundadas de agricultores. Em 2017, todas as acusações foram retiradas[4], o que retrata o caráter ficcional da investigação e o esforço de criminalização e desrespeito à livre atuação da cidadania por meio de ações que buscam deslegitimar, criminalizar e obstruir a atuação das organizações da sociedade civil que defendem o bem comum, como a alimentação saudável e a agrobiodiversidade.
Plantios atuais e a Agroindústria
O período que se seguiu ao desmonte do PAA foi de retomada dos ânimos para seguir na luta em defesa das sementes crioulas e da soberania alimentar. Já em 2015, o Coletivo Triunfo e a AS-PTA deram início à campanha Plante Sementes Crioulas. Uma nova cooperativa da agricultura familiar surgiu nesse momento, a COOAFTRIL – Cooperativa dos Agricultores/as Familiares de São João do Triunfo.
Esse mesmo ano marcou o surgimento da Rede Sementes da Agroecologia (ReSA), articulando 25 organizações do estado do Paraná, como ONGs, movimentos sociais, sindicatos, cooperativas e órgãos públicos, além de professores(as), estudantes, e agricultoras/es guardiãs e guardiões de sementes.
O fomento a ações coletivas e a formação das cooperativas no Centro-Sul do Paraná estimularam a busca por novos mercados para comercialização dos produtos da agricultura familiar. As cooperativas começaram a participar dos editais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), iniciativa que estimula a diversificação da produção nos estabelecimentos familiares, além de proporcionar a alimentação saudável e diversificada nos cardápios escolares.
O milho verde foi um dos produtos introduzidos nos cardápios das escolas da região. Mas não se trata de qualquer milho verde. É milho derivado de sementes crioulas, livre de transgênicos e agrotóxicos. Em 2017, a Prefeitura Municipal de São João do Triunfo estabeleceu a Lei Nº 1730/2017 que previa a criação do Programa Municipal de Aquisição de Gêneros Alimentícios com o objetivo de estimular o consumo de alimentos saudáveis, sustentáveis e da cultura regional. Assim como o Pnae, a legislação municipal garante pagamento diferenciado, acréscimo de 30% do valor aos produtos diferenciados como agroecológicos ou orgânicos.
Foi nesse contexto que surgiu a Unidade Agroindustrial de Beneficiamento do Milho Crioulo Ecológico. A proposta foi apresentada, defendida e aprovada no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural de São João do Triunfo. Posteriormente, foi submetida e aprovada para ser cofinanciada pela Fundação Banco do Brasil (FBB). Embora instalada em São João do Triunfo, a unidade de beneficiamento atenderá também iniciativas de outras organizações econômicas da agricultura familiar da região, notadamente as cooperativas de Palmeira e São Mateus do Sul.
Foi uma grande vitória. Mas os sinais de alerta contra os riscos de perda das sementes crioulas deverão seguir acesos. Na última safra (2018-2019), um terço dos os testes de transgenia realizados nas feiras de sementes revelaram a existência de algum nível de contaminação de sementes locais por transgênicos. Seguir na luta em defesa desse patrimônio é o compromisso assumido pelas organizações e guardiões/ãs da agrobiodiversidade integrados ao Coletivo Triunfo.
[1] De lá para cá foram realizados pela AS-PTA em parceria com os/as agricultores/as familiares 245 ensaios de variedades.
[2] Para informações detalhadas, consultar: https://aspta.org.br/campanha/o-companheiro-liberou/
[3] O milho Bt possui genes oriundos de uma bactéria de solo Bacillus thuringiensis (Bt), que produz uma proteína tóxica a determinados grupos de insetos.
[4] Para informações detalhadas, consultar: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-historia-dos-13-agricultores-presos-por-moro-e-depois-absolvidos/