Não é novidade que a agricultura familiar é responsável por produzir 70% dos alimentos que vão para a mesa da população brasileira. Não há pandemia que substitua a importância dos trabalhadores e trabalhadoras rurais no abastecimento alimentar das cidades, muito pelo contrário, a necessidade de consumir alimentos diversos e saudáveis é ainda mais evidente agora. No entanto, o fechamento de escolas, feiras e restaurantes, combinado ao enfraquecimento das políticas públicas de Segurança Alimentar, têm afetado a comercialização desse setor e consequentemente, a garantia de renda no campo e o abastecimento das cidades.
Na região sul do Brasil, à crise da Covid-19, soma-se um período de estiagem que também tem afetado a produção da agricultura familiar. Nesse novo contexto, as famílias agricultoras buscam alternativas para dar destino à sua produção e garantir a renda no fim do mês. Uma das opções encontradas por algumas delas, foi a comercialização de cestas de alimentos diretamente para o consumidor final, em diferentes modalidades.
É o caso da Cooperativa de Famílias de Agricultores Ecológicos de São Mateus do Sul (COFAECO), no Paraná, que para comercializar os produtos que antes eram adquiridos diretamente na loja física da cooperativa, aprimorou o uso das tecnologias sociais para receber pedidos por encomenda. Houve um expressivo crescimento na demanda nos últimos dois meses, após a chegada da pandemia no país. Em março, foram comercializadas, em média, 25 cestas por semana. Já nas duas últimas semanas de maio, mais de 60 cestas foram entregues entre produtos in natura e beneficiados.
Em Lages, na Serra Catarinense, apenas uma feira de produtores agroecológicos e da agricultura familiar está em funcionamento. Se deparando com uma queda no movimento em relação aos
meses anteriores e a ausência de medidas efetivas do poder público, foi preciso buscar outros caminhos de comercialização. A alternativa de alguns/as agricultores/as foi entregar parte da produção para a Cooperativa Ecoserra, que além de fornecer para o exército através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na modalidade de Compra Institucional, também faz a distribuição de cestas agroecológicas em Lages e Florianópolis.
Essa prática de delivery de cestas agroecológicas foi adotada também por famílias do Rio Grande do Sul, onde municípios como Passo Fundo seguem com decreto de suspensão das feiras. Segundo Cíntia Gris, nutricionista do Centro de Tecnologias Alternativas Populares (CETAP), que atua na região, apesar de ser uma iniciativa fundamental para o momento, é preciso aumentar a quantidade de entregas, que ainda tem um consumo inferior ao das feiras. “Estimamos que o volume comercializado atualmente significa 40% da comercialização antes exercida”, afirma Cíntia.
Já em Florianópolis, as feiras estão funcionando com restrições sanitárias, porém o movimento também caiu, segundo Gilmar Cognacco, agricultor agroecológico de Leoberto Leal, Mesorregião da Grande Florianópolis. Além de abastecer uma feira na capital catarinense, Gilmar também comercializa no município de Brusque e conta que o movimento diminuiu de 30% a 60% com relação aos meses anteriores à pandemia.
E as feiras são apenas um dos aspectos
Outra mudança que tem afetado bastante muitas famílias da região sul foi a interrupção do abastecimento escolar através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Em alguns municípios, com a suspensão das aulas, suspendeu-se também a compra de alimentos da agricultura familiar, que no caso de Gilmar Cognacco, representava 60% da renda de sua família.
No dia 7 de abril, o Governo Federal sancionou a Lei n° 13.987, que autoriza, em caráter excepcional, a distribuição de alimentos adquiridos com recursos do PNAE aos responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica. Após essa sanção, o governo municipal de Florianópolis fez a distribuição dos alimentos que estavam estocados nas escolas, no formato de kits montados pelas diretoras e nutricionistas, à famílias de estudantes identificadas com maior insegurança alimentar. Entretanto, ao abrir um edital para a compra de novos kits, não foram incluídos os alimentos in natura, como frutas e vegetais. A Secretaria de Educação disse que pretende posteriormente incluir os gêneros alimentícios da agricultura familiar.
Nas escolas municipais de Passo Fundo, os alimentos que estavam destinados para a alimentação dos meses de março e abril também foram distribuídos à famílias de estudantes através dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), mas nem todos os estudantes de baixa renda foram atendidos, havendo reclamações e a necessidade de ajustes neste sentido. O município vinha realizando compras da Agricultura Familiar acima do mínimo de 30% determinado pelo PNAE, mas desde a suspensão das aulas, não foram realizadas novas compras da Agricultura
Familiar.
Na região serrana de Santa Catarina a situação foi a mesma e o agricultor Lucas Francisco Goulart, de Campo Belo, que fornecia à escolas via PNAE, deixou de entregar pelo menos cinco variedades de alimentos frescos que já estavam licitados. Assim como Neura Grando dos Santos, agricultora agroecológica do município de Lagoa Vermelha (RS), que também ficou sem fornecer via PNAE. Por outro lado, segue fazendo feira e notou um aumento na venda online dos seus produtos.
No Paraná, a nível de estado, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi interrompido durantes quinze dias após a paralisação das aulas, sendo normalizado na sequência. É uma importante fonte de renda para muitas famílias agricultoras da região, bem como para muitos estudantes que têm a alimentação escolar como única refeição diária. As organizações da agricultura familiar realizam as entregas quinzenalmente nas escolas, onde são preparadas as cestas destes alimentos e distribuídos as famílias de estudantes em vulnerabilidades.
Sociedade civil fora da jogada
Em abril, o governo do Paraná anunciou também recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), em caráter emergencial, na modalidade de compra e doação simultânea, destinando os alimentos oriundos da agricultura familiar à pessoas em risco social. No entanto, a proposta não foi debatida com a sociedade civil e organizações da agricultura familiar. “O diálogo é importante para observar as demandas, perspectivas e desafios enfrentados no campo. O aporte emergencial do estado, no valor de R$20 milhões, é insuficiente para atender as necessidades tanto de famílias agricultoras quanto das pessoas beneficiadas com os alimentos”, de acordo com Fábio Pereira, assessor técnico da AS-PTA.
A agricultora paranaense Maria Terezinha Oliveira, da Comunidade da Invernada, zona rural de Rio Azul, é uma das que fornece ao PAA. Para complementar a renda, ela também comercializa leite, ovos, panificados e a colheita de seu quintal produtivo diretamente em sua casa, que está sempre com as portas abertas – agora com algumas medidas de precaução devido a Covid-19. “Como aqui é uma região com muita plantação de fumo, as pessoas acabam não conseguindo plantar comida para o próprio sustento, às vezes até por falta de tempo. E me procuram seja para uma cuca, biscoito, verduras, sabendo que vão levar um alimento saudável. O que sinto falta é de tomar um chimarrão com minhas comadres, mas é preciso tomar cuidado”.
Em Santa Catarina, a situação foi parecida. O governo estadual anunciou a liberação de R$ 2 milhões de reais para o PAA, na modalidade de compra institucional. Mas a proposta foi construída sem a participação do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea/SC), por meio do qual a sociedade civil apresenta suas demandas de SAN. Além do baixo valor anunciado, a proposta do governo coloca como prioritário os municípios com IDH abaixo de 0.7 para acesso ao programa, o que não revela onde estão de fato os grandes bolsões de insegurança alimentar.
Em contraste, o Consea/SC elaborou outra proposta demonstrando que o repasse precisa ser de R$ 23,2 milhões na modalidade de Compra com Doação Simultânea. O valor foi definido com base em um estudo elaborado pelo próprio conselho sobre a realidade socioeconômica de Santa Catarina.
Nesse sentido, a presença ativa das organizações da Agricultura Familiar e Agroecológica em conselhos de SAN, como os Conseas e Conselhos de Alimentação Escolar (CAE), municipais e estaduais, são extremamente importantes para pautar e cobrar ações do poder público. É essa atuação que o Centro de Tecnologias Alternativas Populares (CETAP), do Rio Grande do Sul, a AS-PTA – Agroecologia e Agricultura Familiar, no Paraná e as organizações catarinenses, Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro) e Centro Vianei promovem conjuntamente através do projeto Misereor em Rede, que tem como objetivo promover a soberania alimentar e a Agroecologia no sul do Brasil.
E se essas ações de incidência política são importantes, nossas escolhas de consumo também são. Devemos, enquanto consumidores e dentro da realidade e possibilidade de cada um/a, apoiar a agricultura familiar agroecológica consumindo alimentos diretamente do/a produtor/a. Se puder, compre de quem produz perto de você, afinal, comer é um ato político.