No país onde não há estratégia do Estado para evitar que milhos tradicionais virem transgênicos, atuação da sociedade civil é essencial na defesa da segurança alimentar de todos e da autonomia das famílias agricultoras.
Nas plantações de milho do Brasil, a contaminação das variedades crioulas pela transgenia – anunciada pela primeira vez em um veículo de comunicação em 2009, um ano após a liberação do cultivo comercial do milho transgênico no país – acontece em proporções cada vez maiores em todas as regiões. Inclusive, no Semiárido que concentra 4 em cada 10 estabelecimentos da agricultura familiar do Brasil e onde o avanço da agricultura convencional não foi observado de forma tão agressiva como em outras regiões devido o desafio da escassez de água.
Como no Brasil o plantio de transgênico foi liberado com fragilidades nos sistemas de biossegurança e sem medidas eficazes para evitar o que está acontecendo, tanto quem planta, quanto quem consome o milho, base da alimentação nacional, é quem amarga prejuízos, inclusive para a saúde pública, uma vez que os cultivos transgênicos recebem uma carga acentuada de agrotóxicos, que promovem um rastro de contaminação do meio ambiente – solo, terra, ar, animais e seres humanos.
“Não existe política de biossegurança no país e, por isso, há uma inversão do ônus do custo. Nunca foram eles (as empresas transnacionais que desenvolvem as sementes geneticamente modificadas) que tiveram que provar a segurança no uso das sementes transgênicas. Somos nós que temos que provar que os 100 metros de distanciamento entre as lavouras transgênicas e as de milhos crioulos não funciona, nem tem base científica. Somos nós que temos que assumir o custo de implementação de um sistema de monitoramento da contaminação pelo descompromisso dos governos”, sentencia Gabriel Fernandes, do GT de Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), na quinta-feira passada (16), na oficina virtual “Contaminação do milho crioulo por transgênicos: desafios atuais e futuros para análise e monitoramento da contaminação”.
Com mais de 50 participantes de várias partes do país e ligados a diversas áreas – pesquisa, ensino, sociedade civil e governo – a oficina foi promovida pelo projeto Agrobiodiversidade do Semiárido, desenvolvido pela ASA e Embrapa em cinco estados (SE, BA, PE, PB e PI) e sete territórios do Semiárido. O projeto é um dos componentes do Programa Inova Social, realizado pela Embrapa, com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e apoio da Fundação Eliseu Alves (FEA).
“O objetivo da oficina era discutir as falhas apresentadas nos testes de transgenia por fita, que geraram insegurança e dúvida quanto a sua eficácia”, contou Luciano Silveira, agrônomo da organização ASPTA que faz parte da Articulação Semiárido (ASA), e consultor desta rede para as ações relacionadas às sementes crioulas. Segundo Luciano, a conclusão da oficina reverteu este sentimento. “O seminário retoma a legitimidade e relevância com o caminho mais viável de fazer os testes [de fita]. A hipótese mais provável para as falhas são fragilidades no processo de coleta das amostras. Isso foi uma conclusão importante porque as fitas são mais acessíveis, em que pese serem caras, e também por permitirem um processo mais pedagógico porque os testes podem ser feitos com as famílias agricultoras junto, é um teste descentralizado”, acrescenta o agrônomo que também faz parte do Grupo de Trabalho de Agrobiodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia, um importante fórum de debate de estratégias para proteção das sementes crioulas no Brasil.
Até então, os testes de fitas foram usados pelo Programa Sementes do Semiárido, executado pela ASA de 2015 a 2019, para acompanhar o índice de contaminação do milho crioulo das comunidades atendidas pela ação e também estão sendo usados pelo projeto Agrobiodiversidade para averiguar 2,1 mil amostras de milho crioulo que dariam origem aos campos de multiplicação, previstos nesta ação.
Para o professor Rubens Nodari, da Universidade Federal de Santa Catarina, um dos participantes da oficina, o teste de fita é preciso. “O problema é na amostragem. Um teste que avalia a presença de proteína é robusto. Há fitas que detectam se as amostras tem 1% de contaminação. Já detectamos com até 0,5%. Se é realizada um teste para um lote de sementes, essa quantidade vai ter que subir para 10 testes. Vai ter que aumentar o custo das análises de contaminação”, afirma ele.
Os encaminhamentos da oficina apontaram para a necessidade de aperfeiçoar os métodos de coleta e amostragem das sementes que que serão submetidas ao teste.
Outro objetivo da oficina foi estreitar o diálogo e fortalecer a contribuição dos laboratórios de sementes junto ao Projeto Agrobiodoversidade. Para tanto a oficina contou com Regina Sartori técnica do Laboratório Federal de Defesa Agropecuária (LFDA) do Ministério da Agricultura (MAPA). A estratégia do Projeto Agrobiodiversidade é favorecer que os laboratórios da Embrapa possam prestar serviços de identificação da contaminação por transgenia dos milhos crioulos. “É preciso ampliar a rede laboratorial habilitada para que estes testes sejam oferecidos no serviço público, no futuro, de forma mais acessível e com maior precisão nos resultados. Exatamente, pela situação de vulnerabilidade que as sementes crioulas e famílias que conservam ficam expostas pela ausência de uma participação mais efetiva do estado brasileiro atuando para proteger e conservar este material genético limpo e saudável”, acrescenta Silveira.
Esta investida rumo à rede de laboratórios da Empresa Pública de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) responde a uma das intenções do projeto Agrobiodiversidade do Semiárido, que é aproximar a pesquisa das demandas dos agricultores familiares. “Podemos aliar a demanda dos agricultores às respostas possíveis por meio da pesquisa, ampliando escala e reduzindo custos para monitorar a contaminação das sementes crioulas e definir estratégias de proteção e conservação dessas sementes tão valiosas”, assegura Paola Cortez, pesquisadora da Embrapa e coordenadora do projeto Agrobiodiversidade do Semiárido.
É bom ressaltar que a contaminação das sementes de milho é um fenônemo sem volta. Irreversível. “Havendo contaminação, se perde a semente. A planta tem de 30 a 40 mil genes. Como separar o gene comprometido diante desta complexidade?”, acentuou o professor Nodari, explicando que a contaminação do milho se dá tanto pela polinização no ar quanto pela mistura de sementes. “Uma semente que esteja contaminada, sendo plantada, dá origem a um pé de milho que gera milhares de polens”, diz ele.
Luciano Silveira destaca que a contaminação das sementes crioulas não causa prejuízos só para as famílias que plantavam aquela variedade há gerações. Para elas, uma perda forte que, pelo significado que estas sementes têm para suas guardiãs e seus guardiões, tem o impacto da perda de uma pessoa da família. A contaminação das sementes tradicionais representa um prejuízo enorme, que alcança várias dimensões, uma delas junto às políticas de proteção e multiplicação das sementes crioulas, como a modalidade de compra de sementes pelo Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA Sementes, que só adquire variedades crioulas. Esta perda do material genético limpo põe em risco as próprias políticas, elaboradas e construídas a partir de muito esforço e luta da sociedade civil organizada.
Por tudo isto, Luciano ressalta repetidas vezes a importância da implantação no Brasil de um sistema de monitoramento da contaminação por transgênicos que tenha escala e garanta, no mínimo, que as famílias agricultoras, as organizações de apoio à agricultura familiar e os programas públicos possam se servir de um conjunto maior de serviços que possibilitem condições mínimas para o monitoramento da contaminação O sistema de monitoramento é essencial, também, para a construção de uma estratégia mais precisa e eficiente de proteção das sementes de milho em todos os territórios do Brasil. Afinal, o direito à alimentação saudável e segura é um direito básico humano e está garantida no artigo 6 da Constituição Federal. Um direito que segue sendo violado por quem tem o dever constitucional de proporcioná-lo, o Estado brasileiro. Daí, a relevância da luta das organizações da sociedade civil e populares receber apoio de todos os brasileiros e brasileiras.
Por Verônica Pragana – Asacom
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