Em tempos de mudanças climáticas, não há outro caminho que não seja cultivar e criar plantas e animais adaptados às áreas secas, como o Semiárido brasileiro
Quem cultiva a terra e quem se alimenta dos frutos dela devem ficar atentos/as ao debate sobre a crise climática. Não para se assustar, mas para conhecer estratégias que melhoram as condições de produção das famílias agricultoras responsáveis por fornecer 70% do que os/as brasileiros/as consomem todos os dias. Uma destas estratégias é a criação de animais adaptados ao ambiente e clima semiárido.
Parece até óbvio, mas esta questão ainda tem passado longe das políticas públicas que apoiam a criação de rebanhos para produção de leite e carne na Paraíba, por exemplo. Em pleno momento de debate sobre as mudanças climáticas e de efetivar ações que ampliam a resistência das famílias às perturbações climáticas, as políticas em vigor valorizam as raças exóticas, que vêm de fora, e desvalorizam as raças já existentes na região e adaptadas às condições locais.
“Há uma inversão na lógica natural das coisas. A política pública quer que você adapte o ambiente para criar o animal. É um gasto grande de energia e de recurso para se criar um bicho numa região que é quente, que é seca, que chove 3, 4, 5 meses no máximo ao ano e no resto é seco. E você criar um animal que não se adapta é muito difícil”, critica Felipe Teodoro, assessor técnico da AS-PTA que acompanha o tema da criação animal junto no Polo da Borborema.
O Polo é um coletivo que atua no território da Borborema paraibano e reúne 13 sindicatos rurais, cerca de 150 associações comunitárias, uma associação regional, a EcoBorborema, e uma cooperativa, a CoopBorborema, e tem assessoria da AS-PTA.
A partir de 2015, o Polo e a AS-PTA começaram a trazer a raça de ovelha Morada Nova para habitar o território da Borborema. Esta variedade de ovino foi identificada pela primeira vez no município de mesmo nome no Semiárido cearense e ainda é pouco conhecida na Paraíba.
Começando pelos jovens – Na Borborema, os primeiros cuidadores dela foram os jovens das famílias agricultoras associadas ao Polo. Por que a juventude? Por vários motivos. Principalmente, para possibilitar aos/às jovens uma fonte de renda e mais autonomia financeira e na tomada de decisão no agroecossistema familiar.
“Antes, os jovens já criavam animais, só que eram dos pais. O pai vendia e ele não tinha acesso ao recurso, não recebia pelo trabalho. E, quando começaram a criar seus próprios animais, eles começam a gerir seus próprios recursos. Quando nasce um macho, por exemplo, vende e compra um sapato, um celular, um remédio, ajuda em casa, se for necessário”, explica Felipe.
“Isso contribui diretamente para o combate ao êxodo rural. Os jovens não veem nenhuma perspectiva na zona rural porque não desenvolvem nenhuma atividade produtiva ou não estão obtendo renda. E, quando têm acesso ao Fundo Rotativo [Solidário] começam a perceber que é possível, sim, permanecer ali e desenvolver suas atividades e ter renda e autonomia”, continua Felipe.
O Fundo Rotativo Solidário (FRS) é um mecanismo que tem permitido que os ovinos Morada Nova se multipliquem na região. Os jovens das comunidades se organizam em grupos e recebem alguns animais que são destinados a algumas pessoas do grupo. Estes assumem o compromisso de doar a mesma quantidade de animais recebida a quem é do grupo e ainda espera os seus.
Em Remígio, um dos municípios cujo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais faz parte do Polo da Borborema, jovens de duas comunidades se interessaram pelo FRS da ovelha da raça adaptada. Atualmente, 32 jovens já receberam suas ovelhas para iniciar os seus rebanhos.
Em Esperança, as comunidades Meia Pataca de Cima e de Baixo também já foram contempladas com os Fundos Rotativos de ovelhas. “A raça Morada Nova não era tão conhecida na comunidade. Os outros agricultores se interessaram pela criação e isso trouxe a oportunidade de conversarmos sobre os diferentes cuidados com os animais adaptados e os que vêm de fora”, contou Dayane Monteiro, uma das jovens representantes do FRS da comunidade.
Dayane trouxe à tona um fato interessante. Quando o animal está presente no dia a dia das comunidades, se vê na prática as diferenças de cuidados e a resistência física dos animais às intempéries do tempo no Semiárido. E logo o estranhamento dos/as agricultores/as com relação ao porte das novas ovelhas, por serem menores do que as raças mais conhecidas, é superada com mais facilidade.
Manter um animal não adaptado na região além de trabalhoso, é custoso. “A gente depende do comércio para alimentar, para medicar. Os animais adaptados são menores, mas é rústico, passa de inverno a verão sem perder peso, com pelo bonito, não sofre tanto quanto outras raças. Ele está adaptado ao clima e à forragem disponível na região”, comenta Adailma Ezequiel, uma jovem liderança que mora no Sítio Lutador, em Queimadas, e faz parte da Comissão Executiva da Juventude e da Coordenação Política do Polo da Borborema.
Referência na conservação de raças nativas – Tendo em vista que a raça adaptada ainda é pouco conhecida na região, ainda há muito o que fazer para espalhar a raça pelo território. Segundo Felipe, não é fácil comprar a raça Morada Nova na Paraíba. Elas não estão à venda nas feiras municipais e o preço praticado no estado não é acessível.
Mas, no que depender do Polo e da AS-PTA, o território se tornará uma referência na conservação da raça Morada Nova, como o é a região de Taperoá, onde está a fazenda Carnaúba, que tem um trabalho com diversas raças de animais adaptados, como a Morada Nova.
Para Felipe, o trabalho de substituição dos rebanhos não adaptados pelos adaptados precisa ser contínuo. “Só assim a gente consegue rebater a força que as políticas públicas têm de introduzir os animais exóticos nos territórios”, afirma. No projeto INNOVA, executado na Borborema pelo Polo e AS-PTA, a criação das ovelhas Morada Nova serão estimuladas por meio da organização de Fundos Rotativos em 7 municípios, beneficiando em um primeiro momento 65 criadores, entre mulheres e jovens.
INNOVA AF é um projeto financiado pelo FIDA e executado pelo IICA e busca fortalecer as capacidades das famílias camponesas, por meio da gestão participativa do conhecimento e disseminação de boas práticas para a adaptação às mudanças climáticas em oito países da América Latina e do Caribe, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e inclusivo do meio rural.
Do território para o estado – No âmbito estadual, o debate sobre as raças nativas também acontece no Grupo de Trabalho de Criação Animal da Articulação Semiárido na Paraíba (ASA-PB). E assim, a valorização das raças nativas ganha corpo entre os agricultores e gera massa crítica às políticas que vão na contracorrente.
“Alguns projetos aqui no estado incentivam a criação de caprinos leiteiros e quando foram fazer o debate com as famílias agricultoras, eles propuseram a criação de raças não adaptadas. Mas ali dentro do grupo de agricultores tinha alguns que fazem parte do nosso grupo de valorização da raça nativa e um deles falou: ‘Não tenho interesse por essas raças, adoecem muito, eu preciso gastar muito dinheiro para cuidar desse bicho, tenho que adaptar o ambiente para ele poder se sentir um pouco melhor e poder produzir. Não quero não. Quero uma raça adaptada. Quero uma cabra canindé’. Isso é muito importante. Isso é consciência”, contou Felipe.
“Quando as famílias e os jovens vão adquirindo essa consciência, a partir do conhecimento das raças adaptadas que, na maioria das vezes, nem conhecidas são, eles conseguem exigir políticas públicas que valorizem os animais adaptados à região”, complementa ele.
Não perca o vídeo sobre a experiência dos jovens de Queimadas-PB com raça Morada Nova