“Precisamos desesperadamente de outras histórias” é o que propõe a filósofa belga Isabelle Stengers*. Em outras palavras, trata-se de colocar em questão um fluxo histórico que, escrito sob a narrativa do progresso, tem nos conduzido a crises econômicas, políticas, ecológicas e, sem dúvidas, sanitárias. A partir de experiências de políticas públicas municipais, inspiradoras de “outras histórias”, nos propomos a pensar em algumas formas de fazer política que falam tanto dos novos caminhos que a agroecologia vai tecendo na relação com o Estado e seus representantes quanto da criatividade que emerge dos territórios na construção de outras agriculturas possíveis. Para não perder a tradição, colocamos atenção especial nas sementes crioulas, mais especificamente no campo de relações estabelecidas entre elas e as políticas públicas municipais.
Apesar de algumas políticas terem uma trajetória de desenvolvimento bem mais longa, começamos nossa análise a partir da iniciativa promovida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) no último ano – Municípios Agroecológicos e Políticas de Futuro. A ação envolveu mobilizações e debates públicos durante o processo eleitoral nos municípios, evidenciando a importância da participação social na proposição e na execução de políticas públicas efetivas.
No âmbito da iniciativa, organizações vinculadas à ANA produziram um mapeamento de políticas públicas municipais que fortalecem a agroecologia. Uma parada importante. Para além de uma definição categórica e abstrata das “políticas públicas agroecológicas”, tratou-se de pensar e dar visibilidade a experiências de políticas públicas formuladas e executadas com princípios agroecológicos. Essas políticas caracterizam-se por sua capacidade de estabelecer conexões territoriais, combinando recursos sociais e ecológicos e governança local, que se efetivam mediante relações de reciprocidade entre as partes envolvidas, sejam elas pertencentes à sociedade civil ou ao poder público. Esses arranjos sociopolíticos permitem, assim, o surgimento de novas lentes de aproximação e novos enfoques sobre a agroecologia, os territórios, o papel do Estado e sobre processos inovadores de construção das próprias políticas.
Ao todo, foram identificadas 721 políticas públicas municipais orientadas para o fortalecimento da agroecologia. Elas estão espalhadas por todo o país, envolvendo diferentes biomas e dizem ainda sobre a inseparabilidade entre campo e cidade. Os dados coletados foram sistematizados na plataforma Agroecologia em Rede (AeR), um ambiente de software livre que reúne uma coleção de informações sobre experiências do movimento agroecológico.
No acervo mapeado, identificamos 17 políticas públicas que dizem respeito diretamente às sementes crioulas. Grande parte dessas políticas foi criada a partir de 2002. Uma das exceções localiza-se no município de Muqui/ES. Nesse município, a política pública de fomento ao melhoramento genético participativo está em curso desde 1994, garantindo, por meio de dispositivos adequados, como sistemas de irrigação e assistência técnica, o plantio e seleção de variedades em campos comunitários, como é o caso dos milhos Aliança e Fortaleza. Ainda em Muqui, existe também uma política pública destinada à promoção do acesso das famílias agricultoras a variedades de milho e feijão e à criação de galinhas caipiras. Mais de 1.000 famílias foram beneficiadas, dentre agricultores familiares, quilombolas, indígenas e ribeirinhos. Em Itanhém-SP uma política municipal foi também desenhada para apoiar povos e comunidades tradicionais, especialmente com a inserção do milho Guarani no cardápio de escolas indígenas por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Em Minas Gerais, os campos de plantio comunitários são apoiados por políticas públicas nos municípios de Juvenília e Januária, garantindo a multiplicação de sementes, tanto pelo cultivo e seleção, quanto pelo processo coordenado de distribuição do material reprodutivo aos/às agricultores/as familiares nas regiões. Em ambos os municípios, as políticas se realizam em parceria com a EMATER, a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais. Já em Guaraciaba-SC, também foi identificada uma política pública de distribuição de sementes. Com orçamento anual de R$ 15.000,00, entre 2004 e 2010, foi garantindo o acesso de 500 famílias agricultoras a sementes crioulas. Em que pese o êxito da iniciativa, a política se encontra inativa atualmente. No mesmo município de Guaraciaba/SC está ativa uma política pública municipal de fortalecimento de viveiro de mudas que, desde sua instalação em 2017, conta com 113 espécies de árvores nativas e um orçamento de R$ 40.000,00, e garante a distribuição contínua de mudas aos/às agricultores/as familiares.
Em Tauá-CE, o viveiro florestal é também apoiado por política específica no âmbito municipal. O objetivo é fomentar a produção de mudas e espécies nativas da Caatinga, visando à recuperação de áreas degradadas com vegetação adaptada ao bioma. Em Picuí/PB a recuperação da Caatinga é, da mesma forma, o objetivo da parceria do município com o Instituto Nacional do Semiárido (INSA), que além das nativas, tem se dedicado junto aos/às agricultores/as na identificação de espécies forrageiras. No município de Caxias/MA existe também política pública associada à recuperação da cobertura vegetal do Cerrado, por meio da distribuição de nativas e espécies frutíferas.
Em Anchieta-SC, a política pública de fortalecimento à agroecologia e às sementes crioulas se transformou na Lei nº 2.457/2019. O instrumento combina, por exemplo, apoio à pesquisa e a realização das Festas das Sementes Crioulas, para o intercâmbio e troca de sementes e conhecimentos. Também é de apoio à Festa de Sementes a política pública identificada do município Treze de Maio-SC. Além do intercâmbio de sementes, a dimensão cultural dos alimentos é parte das festas, durante as quais são estimuladas a partilha de receitas típicas e de suas histórias. Em Juti-MT, o apoio à realização de eventos de trocas de sementes é também objeto de políticas públicas. A festa de sementes acontece há 15 anos e tem dentre seus principais objetivos a valorização dos guardiões e guardiãs da agrobiodiversidade e a disseminação de práticas e saberes agroecológicos.
O apoio aos Bancos de Sementes é também parte das políticas públicas municipais. Em Jucati-PE, o Banco reúne agricultores e o Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA). Inaugurado em 2018, foi o primeiro Banco de sementes municipal da região. Em Soledade/PB, o Banco foi criado por meio de lei municipal. O apoio ao armazenamento e distribuição de sementes crioulas adaptadas ao Semiárido tem sido fundamental no enfrentamento aos longos períodos de estiagens.
Indo do Nordeste para o Sul, em Mandirituba-PR, a política pública municipal que apoia a Casa de Sementes também é prevista por lei e dispõe de orçamento anual de R$ 25.000,00, visando especialmente a produção de sementes de hortaliças e adubação verde.
Ainda que num rápido sobrevoo, o conjunto das políticas públicas que identificamos guardam singularidades associadas aos territórios de pertença, ao mesmo tempo que compartilham de fazeres comuns. Assim, embora inscritas em realidades diferentes, inspiram umas às outras ao suscitarem criatividades locais e combinações profícuas entre o poder público e a sociedade civil. As políticas públicas municipais apontam a inviabilidade de pensar em soluções únicas difundidas e replicadas indiscriminadamente. As espécies nativas da Caatinga e do Cerrado são distintas, assim como as variedades de milho e feijão que florescem nos Bancos, nos campos comunitários e nos intercâmbios de sementes. Essas diferenças evidenciam diversidades que carecem de cuidados localizados, ao mesmo tempo que testemunham a contínua luta pela defesa das sementes crioulas. Sigamos fertilizando essas “outras histórias” de que tanto precisamos e aprendendo com as experiências dos territórios que proliferam a diversidade na defesa do bem comum.
A iniciativa Políticas de Futuro segue em curso em 2021, agora como o nome de Agroecologia nos municípios, acompanhe!
Veja algumas postagens que foram feitas no Agroecologia em Rede sobre sementes crioulas e políticas públicas!
*STENGERS, Isabelle. No tempo das Catástrofes – resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 160 p
Fotos: Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e Giorgia Prates
Arte: Beatriz Cancian