Enquanto milhares de maçãs de algodão explodem nos roçados agroecológicos no território da Borborema, na Paraíba, uma comitiva de cerca de 30 pessoas da empresa francesa Veja/Vert percorreu municípios da região para conhecer o processo de cultivo da fibra nos dias 28 e 29 de setembro. A Veja/Vert produz tênis sustentáveis a partir do algodão da agricultura familiar agroecológica e do látex extraído das seringueiras na Amazônia.
Esse ano, é a essa empresa que vai comprar toda a produção de algodão das famílias vinculadas ao Polo da Borborema, por meio de contrato com a CoopBorborema, cooperativa criada pelo Polo, um coletivo que reúne 13 sindicatos rurais e cerca de 150 associações comunitárias.
A expectativa é de uma safra de 20 toneladas de algodão em rama e seis toneladas de pluma utilizada para a fabricação dos sapatos. O restante do peso vem das sementes que retornam para as famílias agricultoras separarem uma quantidade para plantar no próximo ano em seus roçados. Outra parte se torna alimento dos animais. E ainda tem a possibilidade de venda de sementes para as famílias interessadas.
“Na visita que fizemos (em 29 de setembro), ficou muito evidente a paixão que todos têm pelo algodão, pela agricultura familiar e pela agroecologia”, comentou Olívia Lyster, da equipe da Veja/Vert no Brasil. Os visitantes vieram de Paris, Nova York, Rio Grande do Sul e Ceará, onde há escritórios da empresa, e passaram a manhã na comunidade Maracajá, na zona rural de Queimadas, um dos 13 municípios que fazem parte do Polo da Borborema e considerado de clima semiárido.
“A Veja quer que sua equipe conheça as cadeias produtivas que trabalhamos, que é o couro, a borracha e o algodão agroecológico. A maior parte do algodão vem de sete estados do Nordeste brasileiro. E também é importante que quem se relaciona diretamente com os clientes possa contar com paixão as histórias de quem produz a matéria-prima utilizada nos tênis. Além disso, nessas visitas, queremos mostrar [à própria equipe] o poder transformador da agricultura familiar para reforçar a opção da empresa de comprar dessas famílias”, acrescenta Olívia.
Em Maracajá, a quatro quilômetros de distância do centro do município, os visitantes ouviram vários guardiões de sementes falar do complexo trabalho que desenvolvem na proteção das sementes crioulas que, na Paraíba, são conhecidas como Sementes da Paixão. E foi dito da importância da cultura do algodão no município e também das vantagens de cultivá-la como manda a cartilha agroecológica, ou seja, em consórcio com outras culturas como o milho, o feijão e a fava.
Nessa região da Paraíba, o algodão foi uma cultura bastante forte, dizimada nos anos 1980 pela praga do bicudo. Muitas famílias chegaram até a perder as sementes. De 2019 para cá, é que a rede de agricultores-experimentadores e guardiões e guardiãs de sementes decidiram voltar a cultivá-la de forma agroecológica, sem uso de venenos e promovendo o cuidado aos recursos naturais, como o solo.
Em 2020, o plantio do algodão agroecológico no território envolveu 76 famílias. Em 2021, foram 65. E em 2022, 83. “Topamos o desafio de integrar o algodão aos bancos comunitários de sementes da Paixão”, revela Emanoel Dias, da equipe técnica da AS-PTA, uma organização não-governamental que assessora o Polo da Borborema.
Para que os visitantes pudessem entender o que significa “integrar o algodão aos bancos comunitários de sementes”, a visita à comunidade Maracajá teve como foco apresentar esses espaços coletivos que fortalecem a organização da comunidade e asseguram a autonomia das famílias agricultoras com relação às sementes.
Mas não só apresentar a lógica de funcionamento de um banco de sementes, mas contar das redes municipal e regional às quais esse espaço está vinculado. Em Queimadas, por exemplo, há 13 bancos desses e, no território da Borborema, são 62. Todos esses bancos se relacionam e entre eles há uma intensa troca de conhecimentos e de sementes.
Mas o que isso tem a ver com o plantio do algodão? Tudo! A existência das redes de agricultores e agricultoras experimentadoras/es vinculadas às redes de bancos comunitários de sementes só garante que, no território, existe um alto nível de organização das famílias agricultoras.
E essa mobilização favorece um acúmulo de forças das famílias agricultoras, que vivem e produzem nesse território, que o defendem com unhas e dentes contra projetos que ameaçam seu modo de vida. A exemplo das indústrias de geração de energia renovável a partir dos ventos e do calor do sol.
E a produção de algodão agroecológico, com venda certa para uma empresa que se preocupa com o meio ambiente e com a justiça social, por meio do comércio justo beneficiando 60 famílias, é mais um elemento que reforça a recusa dos moradores locais a esses parques industriais.
“O algodão agroecológico como uma série de outras atividades agrícolas que os agricultores e as agricultoras têm desenvolvido nessa região, inclusive a criação de animais, se juntam dentro de um grande plano de fortalecimento da renda das famílias inclusive num momento em que as culturas do roçado não são tão fortes [por conta dos efeitos das mudanças climáticas que produzem acentuadas secas ou chuvas]. Uma das coisas que as empresas de energia renovável têm feito é dizer que, nesses territórios, não existe nenhuma forma de produção. Isso é marginalizar a agricultura familiar. Marginalizar as lutas dos territórios na construção da agroecologia, da sua força social.”, sustenta Roselita Vitor, da coordenação executiva do Polo da Borborema.
E continua: “Então, lutar contra os parques eólicos e as usinas solares é garantir que a gente possa continuar vivendo, produzindo e fortalecendo a nossa renda. Como a gente já sabe e já viu em outros lugares, não tem como as famílias viverem de um modo saudável, de um modo feliz, se tem uma torre eólica atrás da sua casa ou no meio do seu roçado. São ameaças graves.”