A questão da biodiversidade precisa ser incorporada com a devida centralidade e urgência nos debates do Estado. Mas não como convencionalmente vem sendo abordada, associada à ideia de um novo e promissor campo econômico a ser explorado na forma de produtos, cuja virtude, em tese, seria manter as florestas em pé e, de quebra, ajudar a melhorar a imagem externa do país. Esse aparentemente inovador discurso proposto pela chamada Bioeconomia reproduz na verdade uma lógica bastante convencional e que precisa ser devidamente questionada.
Primeiro, ele transmite a ideia de que as soluções virão de fora, por meio de intervenções do Estado ou de empresas privadas. Segundo, postula que, para ter seu valor reconhecido e ser conservada, a biodiversidade deve ser financeiramente valorada e economicamente explorada. E, terceiro, que essa exploração deve se dar por meio da lógica das cadeias produtivas. Juntos, esses três argumentos revelam o domínio do pensamento neoliberal, baseado na apropriação privada de bens da Natureza. Não considera o papel dos agricultores/as familiares, povos indígenas, das comunidades tradicionais e quilombolas na conservação da biodiversidade e na produção de conhecimentos segundo outra racionalidade. A Bioeconomia procura se impor ecoando o pensamento conservador e autoritário de Margaret Thatcher, prócere do neoliberalismo, quando afirmou que “não há alternativa” (à economia de mercado).
A vitória de Lula, além da derrota eleitoral do fascismo, acena para novas possibilidades, especialmente pela retomada do processo democrático e a abertura política à participação social no âmbito do Estado. Durante todo o processo eleitoral, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) conduziu uma intensa Campanha envolvendo a coleta de assinaturas em adesão a uma Carta Compromisso composta por anúncios, denúncias e reivindicações sistematizadas a partir das diferentes expressões da Agroecologia no Brasil. O documento foi assinado por mais de 600 candidatos e candidatas em defesa da agroecologia, dessas/es mais de 150 foram eleitas.
Em complemento a essa Carta, o Grupo de Trabalho Biodiversidade (GT Bio) da ANA elaborou o documento Biodiversidade em debate: diretrizes para a construção de políticas para a sociobiodiversidade. O documento resultou de um longo processo de identificação e mobilização de experiências de conservação, manejo e livre uso e acesso à biodiversidade, valorização dos conhecimentos e de luta pela garantia dos direitos dos agricultores e agricultoras familiares, povos e comunidades tradicionais.
Assim como a Carta Compromisso, o documento do GT Bio enfatiza a participação social na construção de políticas públicas como princípio que deve ser assumido e praticado por todo e qualquer governo democrático. No caso da sócio-agro-biodiversidade, isso significa dizer que agricultoras e agricultores familiares, camponesas e camponeses, os povos indígenas, as comunidades quilombolas e os povos e comunidades tradicionais devem ser reconhecidos e promovidos como agentes necessários e fundamentais para a proteção, a conservação e o fortalecimento da sociobiodiversidade. De início, essa perspectiva se distancia da lógica da mercantilização da natureza e da integração das comunidades tradicionais em cadeias de valor como meras fornecedoras de matérias-primas.
O documento está dividido em 3 eixos e apresenta 39 propostas, tendo sido divulgado em um encontro virtual com fundações de partidos progressistas..
O primeiro ponto tratado é o da sociobiodiversidade, terra, territórios e conhecimentos tradicionais associados. Sob essa perspectiva, o documento trata do papel dos grupos sociais dos campos, das cidades, das águas e das florestas e sobre como a defesa de seus modos de vida está diretamente relacionada à garantia de seus territórios tradicionais. São nesses territórios, em todos os biomas do Brasil, onde a biodiversidade se encontra mais conservada e, como consequência, são preservados os processos ecológicos que sustentam a vida. Não por acaso, são esses os territórios e os povos mais ameaçados pelo avanço do agronegócio e das monoculturas, pelo desmatamento, pelos incêndios criminosos e pela mineração. Além desses processos mais explicitamente predatórios, como visto, propostas que se anunciam mais modernas e sustentáveis embaladas no pacote da bioeconomia também pressionam essas áreas e os povos que nelas vivem.
Nesse sentido, o documento destaca ser fundamental assegurar a implementação efetiva de uma política de reconhecimento, valorização e respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, estabelecendo como fundamentais os direitos territoriais e de garantia da soberania alimentar e nutricional.
Para isso, é necessário reconhecer e respeitar os protocolos autônomos de consulta livre, prévia e informada que as comunidades organizam, assim como seus protocolos bioculturais ou acordos de gestão e uso de bens comuns, que têm sua legitimidade assegurada pelo fato de terem origem em direitos consuetudinários, que são os direitos de costume desses povos e comunidades.
Ainda nesse tema, o documento do GT Bio da ANA ressalta a necessidade de se revogar a chamada lei da grilagem e o programa “Adote um Parque” e demais propostas de privatização de unidades de conservação. É também necessário reconhecer institucionalmente o direito à prática da medicina tradicional pelos povos e comunidades tradicionais.
O segundo ponto prioritário aborda a questão dos impactos dos transgênicos e das novas biotecnologias. Para discutir esses impactos à luz da biodiversidade, é preciso ter em mente que os territórios tradicionais e da agricultura familiar camponesa são territórios biodiversos e devem ser protegidos por leis que garantam que eles permaneçam livres de transgênicos e agrotóxicos. Nesse sentido, é urgente barrar no Senado o pacote do veneno e fazer avançar a aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara).
Nesse contexto, o documento destaca que o milho crioulo é um patrimônio genético, cultural e alimentar nacional cuja diversidade está ameaçada devido à contaminação pelos transgênicos. Nesse ponto são ainda feitas propostas para frear o acelerado processo de desregulamentação e aprovação automática de novas biotecnologias, como edição genética, e da introdução desses produtos geneticamente modificados no meio ambiente e nos alimentos.
O terceiro ponto traz propostas relativas à agrobiodiversidade, à Agroecologia, e aos direitos das agricultoras e agricultores e por povos e comunidades tradicionais. Nesse ponto as organizações que compõem o GT Biodiversidade defendem ações e políticas que assegurem o direito de livre uso e conservação das sementes crioulas e raças nativas de animais. Ressaltam ainda que as feiras e festas de sementes e mudas, assim como as casas e bancos de sementes comunitários e os viveiros comunitários, são métodos comprovadamente eficazes de conservação da diversidade e devem ser fomentados pela ação pública, dispensando a exigência de registros, listas ou cadastros.
Outro ponto importante ressaltado pelo documento é a reivindicação de que o Brasil assine e ratifique a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (2018) e que a implementação das orientações da Declaração conte com orçamento para a execução de políticas e programas, como pesquisa participativa, assessoria técnica, incluindo editais específicos para as mulheres, e que os bancos públicos de germoplasma sejam abertos ao acesso das comunidades guardiãs da agrobiodiversidade.
Com relação à água, a demanda é que seja efetivada a política de recomposição de nascentes e matas ciliares com sistemas agroflorestais, e retomados e ampliados os exitosos programas de construção de infraestruturas para captação e armazenamento de água da chuva.
Essas e outras propostas passaram a figurar atualmente como possíveis agendas do novo governo para o fortalecimento e construção de políticas públicas em apoio à agroecologia e à biodiversidade. A reciprocidade entre sociedade civil e Estado reaberta com a vitória de Lula permite levar ao governo novas mensagens sobre a biodiversidade. Diferentemente do tratamento como uma mercadoria, para os povos das águas, dos campos, das florestas e das cidades, a relação com a natureza não visa à apropriação privada, nem se traduz em processos degradativos dos recursos naturais. Ao contrário, seus modos de vida apontam enfoques orientadores de políticas públicas que garantam a conservação, a soberania alimentar e a sócio-agro-biodiversidade.