Por Kayla Frost, 24/01/2023. Publicado originalmente por Civil Eats. Traduzido e republicado com permissão dos editores.
Em um mundo industrializado, o pastoralismo pode parecer irrelevante ou mesmo atrasado. Mas isso é um compreensão errônea, explica a cientista alemã Ilse Köhler-Rollefson, que tem vivido nas proximidades de Raika, região de pastoralismo de camelos na Índia, por mais de trinta anos e co-fundadora do primeira laticínio de leite de camelos no país. Em seu novo livro Hoofprints on the Land, Köhler-Rollefson se utiliza de convincentes histórias apoiadas em pesquisas rigorosas para argumentar que a criação de animais de forma nômade tem um papel vital em nossa ecologia e na nossa economia.
Por aproximadamente 10.000 anos, pastores têm domesticado e manejado animais, tais como renas, camelos, iaques, alpacas, cabras, ovelhas e gado. Estes animais, explica Köhler-Rollefson, são essenciais para a humanidade se quisermos sobreviver ao clima crescentemente quente, seco e imprevisível. Eles são localmente adaptados e podem produzir alimentos, fibras e fertilizantes sem o uso de combustíveis fósseis, incrementos químicos, rações ou necessidade de lavrar a terra ou desmatar a vegetação nativa.
O livro Hoofprints on the Land é publicado ao mesmo tempo em que operações confinadas de alimentação animal, conhecidas como CAFOs ou fazendas industriais, têm crescido nos Estados Unidos e em outros países do Ocidente. De 2020 para cá, os Estados Unidos têm mais de 21.000 CAFOs. Estes locais abrigam de centenas a milhares de animais que são confinados em lugares fechados por no mínimo 45 dias a cada vez e recebem porções precisas de alimento – frequentemente milho e soja – trazidos diretamente a eles de fazendas de monocultura.
Embora essa forma de criação de animais venha enfrentando críticas crescentes, também houve um aumento no veganismo e investimentos massivos em carnes de alta tecnologia, com o Impossible Foods and Beyond Meat. Várias vozes têm defendido, incluindo, por exemplo, o colunista do The Guardian, George Monbiot, a substituição da pecuária de todos os tipos, incluindo o pastoreio, pela fermentação de precisão, método de produção de proteínas em laboratório.
Köhler-Rollefson, que em 1992 fundou a Liga para Povos Pastorais, uma organização de defesa e uma plataforma internacional para estes povos, vê este tipo de abordagem de alta tecnologia como uma ruptura das relações entre os povos, a terra e os animais. “Pastoreio não é uma tecnologia obsoleta que se descarta porque algo novo e melhor está disponível”, ela escreve.
Nós podemos esperar ouvir bastante sobre pastoralismo nos próximos anos, já que a Assembleia Geral das Nações Unidas recentemente declarou o ano de 2026 como o Ano Internacional das Pastagens e dos Pastores, depois de mais de 300 organizações em todo o mundo formarem uma coalizão e apoiarem a proposta. A Civil Eats conversou com Köhler-Rollefson sobre as diferenças entre pastoralismo e criação industrial de animais, os benefícios e o porquê ela acredita que nem todas as pessoas possam se tornar veganas.
Por meio da vivência com os pastores de camelos em Raika, você tem testemunhado a profunda relação estabelecida entre os pastores e seus animais. Por que você acredita que é importante apoiar e reavivar os laços entre os humanos e a criação animal?
Se queremos chamar a nós mesmos de humanos, nós não devemos tratar os animais como máquinas. Nós precisamos perceber que eles são co-criaturas. Eu estou impressionada com o que tem ocorrido no setor industrial de criação animal. Recentemente eu estava lendo sobre desligamento de ventilação em indústrias avícolas dos Estados Unidos e como alguns veterinários têm dito que esta é a forma mais humana de matar um grande número de animais [durante as epidemias de gripe aviária].
Minha formação é em medicina veterinária, curso que fiz porque eu amo os animais. Então, depois de graduada, eu percebi que não fui feita para este tipo de trabalho porque eu prefiro animais saudáveis. Criar condições para a manutenção da saúde dos animais é mais importante do que lucrar com animais doentes.
Eu deixei a medicina veterinária e procurei por uma nova orientação e a encontrei durante uma escavação arqueológica no Jordão. Lá, eu vi um Beduíno e um rebanho de camelos andando na paisagem e eu estava totalmente chocada pela harmonia entre as pessoas e os animais e sua comunicação. Eu comecei a pesquisar sobre camelos e descobri sua importância nas áreas áridas.
Eu trabalhei por muito tempo em sítios arqueológicos, identificando ossos de animais para interpretar economias e ecologias passadas. Depois de dez anos, tive vontade de trabalhar com animais vivos novamente. Eu acessei uma bolsa para trabalhar na Índia com a economia dos camelos e o sistema de manejo destes animais. Quanto eu estava cruzando Raika, eu identifiquei o caminho que isso deveria trilhar, a relação entre pessoas e animais.
No seu livro você escreve, “enquanto a agricultura normal é baseada em uniformidade, estabilidade e controle, o pastoreio capitaliza a variabilidade”. Você poderia falar um pouco sobre o significado de variabilidade?
O pastoreio dos animais nas pastagens pode converter diretamente diferentes plantas em um produto. Nos pastoralismo, você salta a etapa, presente nas monoculturas, de remover a vegetação nativa. Eu tenho ouvido os pastores dizerem que eles gostam de um ambiente diverso, como um território montanhoso ou plano, seguido de campo, de florestas, e então, isso significa que em qualquer momento do ano, há sempre algo para os animais se alimentarem e eles podem mover os animais considerando as melhores circunstâncias de cada lugar. Quando chove em um lugar, eles podem ir até lá. Os camelos podem farejar as nuvens, e eles sabem a distância do lugar onde está chovendo, por exemplo.
Você falou sobre os riscos de depender da criação animal de poucas raças que só podem sobreviver em sistemas alimentares industrializados. Por que a diversidade de raças é tão importante e como o pastoralismo fortalece a diversidade de animais domesticados?
Os humanos estão sempre associados à destruição da biodiversidade. Mas agricultores e pastoralistas têm criado biodiversidade pelo desenvolvimento de variedades de sementes e raças adaptadas a condições ecológicas específicas, bem como a seus próprios meios de uso. Algumas pessoas usam camelos para leite, outras para carne e outras para transporte. Isso se refere a configurações e preferências ecológicas e culturais que vêm juntas no desenvolvimento de raças.
Isso não é somente sobre genética, é também sobre cultura: sobre aprender o comportamento que é passado pelas mães aos filhotes. [Este aprendizado de comportamento] significa que estes animais estão localmente adaptados e podem fazer o uso de uma variedade de vegetação sem depender de insumos externos.
Raças de alto rendimento [tais como as criadas nas CAFOs] também são adaptadas a condições ambientais específicas – ambientes artificiais onde a temperatura muito frequentemente é controlada. Eles recebem uma dieta específica, usualmente uniforme e proveniente dos monocultivos. E eles têm uma base genética completamente estreita, o que significa que eles são vulneráveis a choques e surtos de doença. São doenças que se espalham muito facilmente devido a uma população geneticamente homogênea, enquanto as resistências das raças adaptadas localmente têm sido selecionadas ao longo de séculos.
Os pastores têm também cultivado a diversidade dos seus rebanhos. Por exemplo, eles terão alguns camelos que são bons produtores de leite, mas que são sensíveis à seca, e terão outros que não são bons de leite, porém muito resilientes à seca. As raças que os pastores têm criado ao longo de séculos são um dos nossos mais importantes recursos na adaptação às mudanças climáticas. Novamente, eu tenho conectado a discussão aos camelos porque quando as temperaturas aumentarem mais do que agora, os camelos são os mais preparados para lidar com isso.
Você também mencionou como em alguns lugares que são áridos, quentes ou muito frios, como a Mongólia, as pessoas não sobrevivem sem a criação de animais.
Eles não poderiam. É muito etnocêntrico ou até mesmo colonialista dizer que não deveria existir criação animal em nenhum lugar do mundo. Uma grande parte das pessoas não teria nada para comer nem seus meios de vida. Isso está totalmente fora de questão.
Muitas pessoas, ao menos na cultura ocidental, acreditam que os ecossistemas estariam melhores se fossem deixados completamente “selvagens” – sem a interferência humana. Mas você escreve, “o pastejo por animais domesticados não tem somente enriquecido a biodiversidade, mas também criado algumas de nossas paisagens favoritas”, como as Savanas no Leste da África. Como muitos ecossistemas não são, na verdade, selvagens?
Muitas dessas grandes áreas de pastagens que temos na África, no Tibete e em outros lugares foram criadas pelo impacto do pastoreio pelas criações animais. A pastagem só permanece como pastagem se estiver sendo pastejada. Só então as gramíneas desenvolvem raízes profundas, e só então se evita a ocupação pela vegetação arbustiva. Arqueólogos dizem que foram os povos e seus rebanhos que criaram estes ecossistemas e que eles coevoluíram.
A ideia de expulsar os pastores para se ter um ambiente natural selvagem não funciona. Você provavelmente está ciente do [esforço global de conservação] chamado 30×30? Muitas das chamadas áreas silvestres são administradas por pastores. Se for para deixá-los cuidando dessas áreas, então eu seria muito a favor do 30×30. Mas o que é mais provável acontecer é que os governos queiram regulá-los. É isso que vemos na Índia, onde os pastores foram expulsos.
Além disso, estamos testemunhando uma enorme extinção da megafauna. Muitos grandes herbívoros silvestres já desapareceram, mas precisamos desesperadamente de animais na paisagem. Como muitas paisagens já não têm esses animais em número suficiente, os rebanhos domesticados podem desempenhar esse papel.
Há hoje um debate global bastante acalorado sobre o impacto das criações animais sobre a mudança climática, particularmente em torno do metano que o gado e outros ruminantes produzem. Novos estudos, como a análise do ciclo de vida sobre práticas regenerativas de pastagem em White Oak, Geórgia, mostram que os animais criados a pasto emitem menos emissões, mas requerem mais terra. Qual sua opinião a respeito?
Frank Mitloehner da Universidade da Califórnia em Davis diz que todo o metano que é emitido pelos ruminantes é metano biogênico. É um gás que está no sistema e, quer passe ou não pelo gado, é um produto da decomposição da biomassa vegetal. Além disso, as pastagens são os principais sumidouros de carbono e sequestram mais carbono do que as florestas por causa de seus sistemas radiculares volumosos e porque as gramíneas continuam crescendo e absorvendo carbono.
[Nota: Mitloehner tem sido criticado nos últimos meses após ter sido relatado que o Centro Clear que ele dirige é financiado predominantemente pela indústria de carne e ligado a ações de campanhas de mensagens promovidas por um grupo da indústria de ração animal].
A outra questão que surgiu mais recentemente é que o metano não fica na atmosfera por muito tempo – algo como 10 ou 12 anos – pois o CO2 que vem dos combustíveis fósseis é cumulativo. Cada vez que usamos combustíveis fósseis, temos mais e mais CO2 na atmosfera, enquanto o metano se decompõe e circula. O gado gera sim maiores emissões de metano, mas eu acho que se exagera sobre o quão perigoso isso é.
[Nota: O metano tem uma vida útil mais curta do que o dióxido de carbono, mas um potencial de aquecimento 27 a 30 vezes maior em 100 anos].
Além disso, pouquíssimos estudos sobre emissões foram feitos em países não ocidentais [ou com pastores]. Há um viés completo. Mas os sistemas de pastoreio são movidos a energia solar! Não há combustíveis fósseis envolvidos, não há fertilizantes químicos, não há agrotóxicos e não há herbicidas. São sistemas perfeitos. Eles imitam a Natureza. A única diferença é que os animais são mansos e têm uma relação com os humanos. Fora isso, eles se assemelham perfeitamente à Natureza.
No seu capítulo “Alimentar o mundo”, você discute como o pastoreio é “de longe a maneira mais eficiente de produzir proteína”, e argumenta que é enganoso usar a métrica da produção calórica e do uso da terra para indicar que a pecuária é uma maneira ineficiente de produzir alimentos. Pode falar mais a respeito?
Há muitas falhas nesse argumento. Para começar com as calorias: temos calorias em abundância no mundo e temos escassez de proteínas, especialmente proteínas de alto valor. A FAO indica que países como os EUA alimentam seus animais com muito mais proteína do que a que se obtêm deles. Os sistemas do tipo CAFO são muito, muito esbanjadores, porque neles a ração fornecida é de alta qualidade, enquanto os sistemas pastoris utilizam resíduos – fibras muito ricas em celulose, plantas espinhosas, todo tipo de biomassa e a convertem diretamente em proteínas. Países como Etiópia e Quênia, que têm os sistemas pastoris supostamente ultrapassados, produzem, na verdade, 20 vezes mais proteína do que se utiliza na alimentação de animais.
Com relação ao uso da terra, é preciso lembrar que apenas um terço das terras agrícolas do mundo podem ser cultivadas. Os outros dois terços só podem ser utilizados por meio de pastagens. São áreas muito secas, muito íngremes, muito pedregosas, ou muito frias. Mas ainda assim é possível produzir alimentos lá com animais.
Você diz que os animais, ao contrário das plantas, precisam se deslocar para serem quem devem ser e cumprir suas funções ecológicas.
Exatamente. É esse o princípio fundamental que eu acho que devemos tentar implementar o máximo possível: deixar os animais se moverem para obter sua alimentação. Mas nós invertemos esse sistema. Imobilizamos os animais e levamos a ração até eles. É totalmente insensato. Mas vejo que os poderes são grandes demais para serem controlados. Os interesses comerciais são muito poderosos.
Nos Estados Unidos, o pastejo regenerativo – uma prática que você diz que “adotado muitos princípios pastoris” – está ganhando popularidade. Como exemplo, você menciona os “carbon cowboys” usando o sistema de pastagem adaptativa multi-piquetes. Qual é a diferença entre o pastejo regenerativo e o pastoreio?
São dois lados da mesma moeda, mas aplicados em contextos diferentes. Os pastores seguem algo que é feito há milhares de anos, enquanto o pastejo regenerativo vem do entendimento de que algo está errado e que é, portanto, necessário olhar para trás para poder melhorar a atividade. Além disso, os pastores não são donos das terras que usam, ao passo que o pastejo regenerativo é feito em áreas particulares sobre as quais há controle e acesso seguro.
Penso que ambos têm a mesma importância e precisam dar as mãos. Isto também é o que espero conseguir com o livro, ou seja, conscientizar os produtores do sistema regenerativo de que existe um extenso patrimônio humano em torno desta forma de criar os rebanhos. E para que os pastores – a quem foi dito que são atrasados e devem parar de fazer o que fazem – saibam que no Norte Global isso é considerado algo muito positivo.
Como você acredita que as pessoas podem apoiar o pastoreio nos EUA considerando que não temos uma tradição indígena de pastoreio?
Há os Navajos, mas mesmo suas tradições pastoris têm apenas algumas centenas de anos. Existiu a caça de bisões na qual os bisões não eram domesticados, mas eram de alguma forma manejados. Então pode ser que o manejo dos bisões não era tão diferente assim do pastoreio.
Já ouvi relatos de pessoas que estão usando cabras para prevenir incêndios. Isso é algo aparentemente muito grande e está crescendo porque há muitos incêndios florestais nos EUA. Há também pessoas no Meio Oeste criando ovelhas para manter gramados aparados.
Temos um mapa dos pastores no nosso site e alguns dos registros ali são dos EUA. Hoje são cerca de 700 grupos registrados pelo mundo.
Algo mais que gostaria de acrescentar?
Gostaria de falar algo sobre veganismo e vegetarianismo. Acho que do ponto de vista ético e ecológico faz mais sentido comer alguns produtos animais tendo certeza de que eles vêm [de boas fontes]. Acho que isso é melhor do que se tornar totalmente vegano ou optar por alternativas artificiais. Precisamos de rebanhos na paisagem, e atualmente não temos espécies silvestres suficientes. As criações animais podem cumprir muito do papel dos animais silvestres. Se aceitarmos que é preciso ter animais na paisagem, isso também significa que em algum momento eles precisarão ser comidos. Minha sugestão é comer menos carne em geral, mas quando for comer, optar por animais que foram devidamente tratados, que tiveram uma boa vida.
[comentários entre colchetes e links de hipertexto são dos editores de Civil Eats]