“É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como uma fricção, poder contar uns com os outros”. (Ailton Krenak em Ideias para Adiar o fim do mundo)
Foram meses de preparação para o que agora já parece ter acontecido tanto tempo atrás. O XII Congresso Brasileiro de Agroecologia, com o lema “Agroecologia na Boca do Povo”, realizado na cidade do Rio de Janeiro, mobilizou mais de 6.000 pessoas durante os dias 20 e 23 de novembro de 2023. Da Fundição Progresso, as atividades se irradiavam para mais de 15 lugares diferentes no centro da capital fluminense, articulando agricultura, comida, cultura, saúde, arte e muita ciência. Uma combinação que tem sua vitalidade nos princípios que orientam os fazeres da agroecologia. Reside entre estes, o que foi nomeado como o “chão comum” do XII CBA, uma compreensão singela e profunda de que a diversidade é o que une este campo heterogêneo.
Pensar as transformações dos sistemas agroalimentares é compreender como durante séculos – considerando aí mesmo as dimensões coloniais – se constituíram estreitamentos das formas de fazer e conhecer na agricultura. Trata-se de uma redução da base alimentar, sustentada pelo ultraprocessamento de poucos grãos – milho e soja, grande parte deles transgênicos; do apagamento ativo de memórias afetivas e ancestrais enredadas às culinárias de tantos povos; da constituição de um imaginário estético que atribui beleza ao que é homogêneo e saúde ao que é demarcado pela biomedicina. Delineia-se, assim, que a monocultura não se expressa somente na produção em linhas agrícolas conectadas a maquinários, agrotóxicos e organismos geneticamente modificados, incute também um modo de pensar e viver.
O sistema agroalimentar hegemônico constituído sob a égide da simplificação é uma afronta às relações sutis tecidas entre humanos e todos outros viventes deste planeta, que numa teia de co-evolução produziram e cultivaram a agricultura, as florestas, as matas e tantas outras paisagens. Pensar em agroecologia requer, sob essa perspectiva, conexões temporais alargadas, sendo ela própria fruto das mudanças do tempo. Essas transformações são imanentes à sua definição conceitual, que como nos ensina Silvio Gomes de Almeida, só ganha plena significação a partir das experiências de quem a coloca em prática, no confronto com a realidade.
Para além do caráter polissêmico que a agroecologia assume, é na sua condição de ciência que o XII CBA exercita novas e possíveis bases epistêmicas. A forma de produção de conhecimento moderna e ocidental tem ao longo de séculos separado quem conhece daquilo que deve ser conhecido, natureza e sociedade seriam, portanto, polos opostos. Com base em narrativas épicas e exitosas tão alinhadas ao capitalismo e ao Estado, essa ciência régia intenta levar a crer que os problemas causados por um determinado modelo de desenvolvimento serão também resolvidos por este modelo.
As práticas agrícolas exploratórias têm acarretado transformações no clima do planeta, a perda da diversidade biológica, a proliferação de epidemias, a violência e expulsão dos povos indígenas e comunidades tradicionais de seus territórios, o solapamento das agriculturas camponesas e urbanas, colocando em evidência que as promessas de progresso não se cumpriram. Florestas com árvores modificadas pela engenharia genética para maior absorção de carbono não resolverão a desertificação imposta à agricultura de base familiar. Fundada sob uma suposta neutralidade política e a objetividade do conhecimento, a ciência moderna orientada pelo objetivo do progresso tecnológico anuncia ao que veio.
Nos termos narrados por Ailton Krenak o que se carece são de “histórias para adiar o fim do mundo”. A ciência experienciada durante o XII CBA é uma dessas propostas. Seguindo o lema do Congresso e apoiada no enfrentamento à fome e na crítica às mazelas provocadas pelo modelo agroalimentar hegemônico, a agroecologia desafia-se a posicionar-se junto aos povos para a construção coletiva de respostas. É preciso reinventar as bases do conhecimento e as condições de criação de futuros a partir de aprendizados com os povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores do campo e da cidade.
Não se trata, contudo, de uma mirada ingênua de abandono à herança das luzes. Microscópios, cromatografia, sintetização de proteínas e identificação de enzimas fazem também parte da estratégia plural de construção de conhecimentos na agroecologia. O que não faz parte é a constituição de uma resposta uníssona e que não encontra na prática cotidiana das/os agricultoras/es ressonância. Uma das estratégias nessa direção é combinar o recebimento de trabalhos em diferentes modalidades, além dos resumos técnicos científicos, os CBAs acolhem relatos de experiência técnica e relatos de experiência popular, em texto e em vídeo. Diferentes formas de conhecer, de sistematizar e reportar o que se apreende são compartilhadas nos Tapiris de Saberes, nome dado aos espaços de apresentação de trabalhos.
Mais de 2.500 trabalhos se encontraram nessa edição, organizada por 16 eixos temáticos que trataram temas como agrobiodiversidade, mudanças climáticas, economia, manejos de agroecossistemas, saúde, educação e agricultura urbana. Os 55 Tapiris foram preparados para 15 pessoas, porém todos os dias os mais jovens se sentaram no chão para que as pessoas que não paravam de entrar pudessem ter lugares para compartilhar conhecimentos. Os resumos em texto foram escritos a muitas mãos e os autores também levaram suas muitas vozes, além de ouvidos atentos.
Aos Tapiris tantas outras atividades se enredam. Agricultores trocavam sementes e apresentavam as inovações camponesas desenvolvidas em seus territórios e comunidades; práticas integrativas de saúde e de cura eram conduzidas por mestras e mestres; fogões à lenha constituídos numa universidade conectavam pessoas pela culinária tradicional do território fluminense; em auditórios, mesas redondas, Barracões de Saberes temas diversos eram debatidos, aventando também possíveis caminhos e articulações necessárias; no palco da feira, comida e cultura se encontravam.
Essas múltiplas atividades do XII CBA, no entanto, não podem ser compreendidas como a causa do que a agroecologia se propõe, são, ao contrário, uma consequência de uma prática científica que se abre à possibilidade de construções diversas e contínuas. Reconhecer na experiência e no conhecimento do outro a base do que se constrói é assumir que a ciência é uma prática e que, portanto, a agroecologia está sempre a ser feita, e é somente na diversidade que essa história pode ser contada.