Estudo recente publicado na revista Science Advances mostra características primitivas e uma longa história de diversificação de raças de milho na América do Sul. Foram estudadas amostras arqueológicas que representam os registros mais distantes do centro de origem da espécie e a maior duração da manutenção de tais características. A América do Sul compreende conjuntos genéticos exclusivos adaptados ao longo de milênios. A partir dos resultados encontrados, os autores reforçam o valor das comunidades tradicionais e indígenas do passado, que herdaram, cultivaram, moldaram e transmitiram as variedades locais de milho para as gerações posteriores e atuais, que continuam diversificando e conservando as raças nativas das terras baixas da América do Sul através das mãos dos guardiões e guardiãs. Para saber mais sobre a domesticação do milho no Brasil, conversamos com a pesquisadora da Universidade de São Paulo Flaviane Malaquias Costa e com Rafael Vidal, pesquisador da Universidad de la República, do Uruguai, que fazem parte do grupo que liderou a pesquisa. Confira a seguir.
Vocês têm pesquisado a diversidade do milho no Brasil e no Uruguai nos últimos anos. O que esses resultados estão mostrando?
Flaviane – Primeiramente é importante contextualizar a classificação das raças de milho. Uma primeira referência que nós temos de raças aqui no território é o trabalho realizado por Friedrich Brieger em 1958. Depois, na década de 1970, Ernesto Paterniani e Major Goodman realizaram uma segunda classificação das raças do milho. Então, desde a década de 1970 até os dias atuais não havia atualizações sobre o estado da diversidade e da conservação das raças nativas do território. O projeto que estamos realizando tem como um de seus objetivos fazer essa atualização. Nós identificamos 29 raças de milho no Brasil e no Uruguai e mais três complexos raciais, totalizando 32 raças. O interessante foi que identificamos novas raças. Nós chamamos de novas raças aquelas que não haviam sido catalogadas anteriormente. Foi uma diversidade que ainda não havia sido representada, seja porque não foram catalogadas ou porque surgiram novas raças através do manejo e do cultivo dos agricultores. Esse trabalho fortalece todo o sistema dos agricultores familiares e mostra toda a riqueza, todo o patrimônio que eles seguem conservando e diversificando também. Mas também é importante ressaltar as raças que não foram identificadas agora. Comparando com as classificações anteriores, observamos que a raça Lenha não foi identificada na região do Pampa, onde ela havia sido primeiramente catalogada. Isso chama atenção para raças que podem estar em processo de erosão genética e de extinção. E isso merece uma atenção muito importante.
Rafael – Houve outras pesquisas realizadas nos anos 1970 no Uruguai e no Brasil. Foram mais de 3.000 variedades coletadas no Brasil e cerca de 800 no Uruguai. No Uruguai, isso foi feito em todo território. No Brasil, a pesquisa se concentrou na região Sul, Sudeste e Nordeste. No nosso trabalho, incluímos a Amazônia e a região Oeste do Brasil, tentando abranger todos os biomas. Isso permitiu, além de comprovar que ainda há variedades crioulas – porque essa era uma das perguntas, saber se ainda havia as variedades crioulas encontradas há 40 anos -, identificar as raças atualmente presentes nos diferentes territórios. Os resultados mostram que ainda há diversidade de milho e que todos os biomas têm diversidade de milho. Além disso, também vimos que há diferenças entre os milhos dos diferentes biomas.
As pesquisas estão revelando raças endêmicas próprias de algumas regiões específicas. O que significa a classificação do milho em raças e qual a relevância dessas raças locais?
Rafael – A classificação de raças é uma classificação que permite organizar essa diversidade gigante que o milho tem e que as variedades crioulas têm, porque a classificação de raças não é só organizada para o milho. Tem raças de feijão, e de amendoim, por exemplo. A classificação representa a diversidade de variedades que têm características comuns, que compartilham de uma mesma região e que compartilham usos comuns. Envolve como os agricultores enxergam suas variedades e aquelas que são similares para eles, que são da mesma região. A raça está bem ligada ao uso, à região e às características do grão e da espiga. Este é o conceito de raças. É uma ferramenta que permite orientar as estratégias de conservação da diversidade do milho. Focando não tanto em variedades específicas, mas na raça como um todo, neste conjunto de variáveis de uma rede que se conforma, que ajuda na conservação. Consideramos como raças endêmicas aquelas que foram encontradas somente em uma região, como o caso da raça que batizamos como Dente Paraibano, formada pelas variedades Pontinha e Jabatão, da Paraíba.
Flaviane – As raças locais são muito importantes porque elas atribuem uma identidade ao grupo de variedades crioulas, constituindo uma unidade dessa diversidade. São referências que têm uma associação cultural importante. Nós sabemos que essas variedades crioulas e essas raças são altamente adaptadas a diferentes condições ambientais e são mais resilientes. Elas compõem sistemas agrícolas mais resilientes a pragas, secas e a temperaturas diversas. Elas também trazem mais autonomia aos agricultores que têm suas próprias sementes. Garantem, assim, sistemas agrícolas mais sustentáveis.
Existe uma relação direta entre a diversidade do milho e o papel histórico dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e tradicionais e das famílias agricultoras. Podem comentar mais sobre essa criação de diversidade?
Flaviane – A domesticação corresponde a um processo coevolutivo, no qual as populações humanas selecionam características que elas gostam, que elas têm preferências. São características que tornam essas espécies e essas variedades, mais úteis em seus usos e adaptadas aos seus cultivos também. E esse processo vai modificando as plantas ao longo do tempo, modificando os alelos nas plantas, provocando essas mudanças importantes e que podem gerar até uma nova espécie, como é o caso do milho ou pode moldar novos tipos. Uma vez que uma espécie está domesticada, este processo de domesticação continua e vão surgindo novos tipos. Os agricultores vão moldando essa diversidade, o que confere características que trazem identidades a determinadas raças. Nós sabemos que os povos indígenas têm muitas culturas diferentes, assim como os grupos quilombolas, as comunidades tradicionais e as famílias de agricultores têm suas identidades. Estes grupos estão em diferentes regiões e associados a culturas diferentes. As variedades se adaptam aos diferentes contextos e esse processo vai moldando a diversidade. Temos origem de algumas raças associadas a lugares específicos, há algumas que são endêmicas, e algumas que compartilham mais de uma região. Hugh Cutler, o pesquisador que propôs o conceito de raças de milhos, considerava que as raças tinham a cara dos agricultores justamente porque expressam as identidades que eles vão atribuindo a essas sementes.
Sabemos que essa diversidade do milho está ameaçada em todo o país pelas monoculturas, pelas queimadas e pelo avanço dos transgênicos. O que as pesquisas de vocês apontam em termos de estratégias para a defesa e conservação desse patrimônio genético?
Rafael – Sabemos que essa diversidade que as populações e as comunidades conservam são um patrimônio genético e cultural muito importante. Grande parte dessa diversidade é também a única alternativa produtiva para essas comunidades. São formas de produção muito mais sustentáveis. A problemática atual da seca e das mudanças climáticas tem também uma raiz na monocultura, no sistema de agricultura intensiva, que faz muito uso de agroquímicos e combustíveis fósseis. Sistemas mais resilientes e que ajudam na conservação do planeta e do ambiente precisam de variedades crioulas e de comunidades que façam essa conservação. As comunidades com seus modos de vida são parte das estratégias de conservação das variedades crioulas. Nossos trabalhos têm feito importantes descobertas sobre essas variedades. Elas têm mais resistência e se adaptam melhor às condições de estiagem. Isso permite maior qualidade adaptativa, além de maior qualidade nutricional. Todas essas características fazem das variedades crioulas um suporte para um mundo mais sustentável e isso faz parte da importância das variedades crioulas e das comunidades. As variedades crioulas nascem das comunidades que as criam e as conservam e são elas que permitem uma agricultura mais sustentável. Além disso, a riqueza de raças endêmicas foi um dos critérios que consideramos para indicar os microcentros de diversidade e as zonas de agrobiodiversidade.
Flaviane – O nosso grupo tem atuado em duas frentes distintas. Uma delas está relacionada aos processos da evolução da espécie e busca conhecer essa história milenar do milho aqui na nossa região. A outra está trabalhando mais com os sistemas agrícolas atuais, conhecendo essa diversidade de raças e o potencial das variedades. No que se refere à parte evolutiva, a gente chama muito a atenção para a importância de se trazer essa história, porque a gente reconstrói esse processo e mostra que essas raças estão aqui há milênios se adaptando e adquirindo características próprias. Quando falamos da extinção de uma raça, da perda de uma variedade crioula, estamos falando de uma extinção de milênios de história, de milênios de adaptação. Quando desconhecemos este passado, quando não sabemos quando isso aconteceu, fica um vazio muito grande. Quando começamos a nos apropriar deste conhecimento científico-histórico com dados bem concretos e concisos de quando vem este patrimônio e quão imensurável é a perda ou extinção de uma raça, a gente tem argumentos muito mais fortes para falar da conservação e do risco de perda devido à erosão genética. Dentro dessa outra frente, de fazer o mapeamento dessas raças, a indicação das regiões onde se concentram essas raças, há um ponto importante: a gente não conserva o que a gente não conhece. Se nós não sabemos o que existe, onde isso está, com que argumentos vamos apontar onde temos que conservar, quais são essas regiões, quais são essas áreas? Este esforço de trazer essa visibilidade para as raças, para as localidades é muito importante para o fortalecimento das estratégias de conservação que existem em todos esses lugares.
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Para saber mais, consulte o livro Milhos das Terras Baixas da América do Sul e Conservação da Agrobiodiversidade no Brasil e no Uruguai e o catálogo Raças de Milho do Brasil e Uruguai: Diversidade e Distribuição nas Terras Baixas da América do Sul.