Foto: Flávio Costa/AS-PTA
O cientista político Malcom Ferdinand em seu livro “Uma ecologia decolonial” define a terra como a matriz do mundo. Em um jogo de palavras o autor combina Terra e terra buscando estabelecer a inseparabilidade entre mundos, aquele da escala global e aquele no qual habitamos cotidianamente e que tem na vitalidade da terra a possibilidade da vida. Numa análise que busca estabelecer conexões entre os debates ambientais e coloniais, o estudioso segue a história dos povos escravizados e suas lutas pela liberdade, tendo como referência principal a Martinica. Trajetória marcada pela violência, na qual a terra/Terra foi algo retirado destes povos e que é motivo, ainda tão hoje, de muita luta.
No Brasil, a história de tantos povos – indígenas, quilombolas, camponeses, quebradeiras de coco babaçu, caiçaras – também partilha deste caminhar. Para estes povos, a terra é referência de vida, onde se cultiva alimentos pelo encontro entre sementes e solo, onde as crianças crescem, onde a mata verdeja, onde tambores e maracás acertam seus ritmos com quem ali habita. Neste mesmo país, todavia, terra é também sinônimo de exploração. Na concepção do sistema agroalimentar hegemônico, terra é um substrato inerte à espera de monocultivos, agrotóxicos, adubos químicos e transgenias.
A exploração da terra é também a exploração dos povos, a prática da violência, da expulsão e da criminalização é imanente a este modelo. Na perspectiva de Ferdinand esse é um modo de fazer secular, baseado na escravização e na colonização. Tomar a terra como algo subserviente é um projeto de mundo que tem produzido e reproduzido desigualdades profundas. A crise climática é uma expressão disso. De acordo com o relatório produzido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) de 2023, 22% dos Gases de Efeito Estufa (GEE) são provenientes da agricultura, floresta e uso do solo. Isso implica que a forma de produção de alimentos, a relação com as florestas e com o solo está diretamente associada às mudanças climáticas.
No caso do Brasil os números são ainda mais elevados. Em 2022, segundo o Sistema de Estimativa de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), mais de 70% no país dos GEE foram provenientes da agropecuária, floresta e do uso da terra. Assim, é impossível falar de mudanças climáticas sem considerar o papel do sistema agroalimentar dominante. Um primeiro elemento refere-se ao desmatamento. No último ano, o Cerrado – principal fronteira de expansão do agronegócio – perdeu mais de 1 milhão de hectares, conforme dados produzidos pelo MapBiomas. Toneladas de gases de efeito estufa são liberadas, ao invés de absorvidas. Um segundo, refere-se à erosão da biodiversidade. Os monocultivos, os agrotóxicos e as sementes transgênicas têm contribuído em conexão com o desmatamento para a perda de espécies, seja de animais, vegetais ou microrganismos.
Ao mesmo tempo em que se pauta no uso exaustivo da terra e de tudo que vive sobre ela, este tipo de agricultura controla grande parte do território nacional. Segundo dados da Oxfam de 2016, menos do que 1% das propriedades no Brasil cobrem mais de 45% da terra. A combinação destes números indica que enfrentar as mudanças climáticas requer enfrentar o sistema agroalimentar hegemônico. Isso é verdade no Brasil, mas em tantos outros países do sul global e mesmo do norte. O “uso da terra” que figura nos relatórios do IPCC carece de conteúdo político. Refere-se, na realidade, a um processo de destruição das possibilidades de vida dirigido por um modelo muito específico de agricultura e de produção de alimentos, commodities, em grande parte.
As mudanças climáticas acionam a urgência de compreender e fomentar novas relações com a terra e a constituição de outros sistemas agroalimentares. No início de 2024, o Grupo de Trabalho Justiça Climática e Agroecologia da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) realizou um debate envolvendo movimentos sociais, organizações e instituições que têm atuado neste tema. As experiências partilhadas trouxeram dimensões de como em diferentes regiões do Brasil, povos indígenas, agricultores familiares, quilombolas, camponeses têm buscado constituir práticas agroecológicas como estratégias de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Além disso, evidenciou-se como essas são fundamentais na promoção da justiça climática, seja pela identificação da diversidade de respostas necessárias ou pela compreensão de como as mudanças climáticas afetam os grupos de formas bastante singulares.
Na partilha das quebradeiras de coco babaçu, as cercas dos latifundiários avançam sobre a floresta e impedem a coleta do coco e a manutenção da floresta em pé; no semiárido as corporações de energia eólica avançam, a chamada energia limpa ganha espaço fomentada pelo Estado sem que se questione as causas das mudanças climáticas; no Rio Grande do Sul, após as enchentes, créditos aviltantes são oferecidos aos latifundiários e pouco se destina às práticas da biodiversidade que os camponeses têm desenvolvido e que garantem a qualidade do solo e a segurança alimentar das famílias. Histórias que demonstram como olhar para a terra é fundamental para reconhecer a profunda crise que nos assola e como é ali também que reside nossa possibilidade de futuro, junto com quem cotidianamente faz brotar vida.