Esse modelo agressor da natureza com uso de agrotóxicos, de transgênicos, de alimentos contaminantes não trará a vida do solo e não trará vida às pessoas
Conversamos com Roselita Vitor, integrante da Coordenação do Polo Borborema, que esteve em Riade, na Arábia Saudita, representando a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) na 16ª Conferência das Partes (COP 16) da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD), realizada em 2024. Ela aponta como é fundamental que os governos se desafiem a aprender com as experiências cotidianas constituídas em diferentes partes do mundo e que têm demonstrado, na prática, caminhos para o enfrentamento da desertificação, das mudanças climáticas e dos cuidados com a natureza integrados à produção de alimentos. Destaca ainda como a participação da sociedade civil organizada na COP 16 abriu debates importantes, como a urgência de políticas públicas construídas desde os territórios, superando uma cultura viciada de políticas públicas verticalizadas, que segue, na grande maioria, fomentando práticas predatórias de corporações, seja no setor da mineração, da agricultura ou das chamadas energias renováveis.
Você esteve recentemente em Riade, na Arábia Saudita, participando da COP 16 da Convenção da ONU sobre desertificação. Qual balanço se pode fazer desse espaço à luz da justiça socioambiental, em especial para os povos do Semiárido?
Roselita Vitor – A COP da Desertificação foi um espaço que envolveu sociedade civil e governos. É impressionante como ainda nos surpreendemos, porque os governos pensam no combate à desertificação e às mudanças climáticas muito a partir de uma visão global, uma visão que não consegue olhar para os territórios, para os povos e para as comunidades, o que eles já estão fazendo para o combate à desertificação e às mudanças climáticas. Nós gostaríamos que esse olhar, que essa visão, pudesse mudar. Foi muito forte ver as várias experiências da sociedade civil. Nós, enquanto ASA, estávamos lá com a nossa experiência, a experiência de agroecologia para convivência com o semiárido, assim como muitas outras organizações do semiárido da América Latina e de outros semiáridos do mundo.
Então, é como algo vicioso: os governos não conseguem aterrissar para pensar políticas de combate à desertificação e para o enfrentamento às mudanças climáticas pisando e olhando para os territórios, nem trazer as experiências que seus povos e comunidades têm feito nesse enfrentamento, ainda que muitas delas estejam provocando mudanças concretas na vida das pessoas. Nós, da ASA, fomos exatamente para construir, junto com outras organizações, esse olhar. Estivemos muito presentes com esse olhar no pavilhão do Brasil, nessa agenda de dialogar para dentro do Brasil, mas também nos outros espaços que compartilhamos com outros semiáridos da América Latina e de outros lugares do mundo, colocando que é possível fazer políticas públicas a partir das experiências dos territórios, dos povos e das comunidades tradicionais do semiárido brasileiro.
Mas há uma questão: a gente sente que as comunidades, os povos do semiárido, vivem uma desigualdade do ponto de vista da falta de recursos, das políticas públicas que poderiam chegar de forma mais direta a seus territórios, de ações que articulem sociedade civil e governo, de formas de gestão das experiências. Há um grande campo para avançarmos, mas acho que a gente vive em um Estado no qual a máquina não avançou para esses olhares ou avançou muito pouco. Estamos diante de debates como o combate à desertificação e às mudanças climáticas em que as organizações estão em um avanço importante. Esse é um desafio que a gente sente.
Outra questão que eu queria trazer é que, em nossos territórios, em vários lugares, a natureza, o bioma, a Caatinga, por exemplo, têm sido alvos de transformação em mercadoria, ocupada por grandes corporações, seja de mineração, seja de um modelo centralizado de energia renovável. Nós também colocamos isso nos espaços onde estivemos durante a COP.
A COP avançou nas formas de participação da sociedade civil. Quais são as principais demandas que os movimentos têm apresentado e até que ponto a agroecologia aparece como solução para combater o avanço da desertificação?
O espaço da COP 16, apesar dos desafios que coloquei, ou seja, como os governos e as políticas aterrissam para um olhar de entendimento sobre o que as comunidades e os territórios têm feito de experiências concretas de combate à desertificação e às mudanças climáticas, tem um avanço, que é a participação da sociedade civil organizada. Eu acho que foi muito importante a representação da sociedade civil. Foram mais de 3.500 representantes na COP, discutindo contextos de experiências práticas, contribuindo ao debate e reivindicando financiamentos para práticas da agroecologia e de combate à desertificação, no debate sobre a degradação da terra e o papel dos povos e comunidades tradicionais, dos camponeses e camponesas na conservação.
Nos debates da sociedade civil, estava muito claro que a agroecologia é o caminho para o enfrentamento às mudanças climáticas e o combate à desertificação, assim como o papel das mulheres na recuperação dos solos. Acho que esse espaço foi importante para construirmos luzes, enquanto organizações da sociedade civil, sobre como a gente se encontra nas várias lutas. A gente, então, começa a compreender que não somos somente nós, ASA, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), nossas organizações e redes que estão pensando a agroecologia; outras organizações do mundo, da sociedade civil, povos indígenas, quilombolas, já sabem que a agroecologia é o caminho para a crise climática que estamos vivendo. Como foi bom a gente estar nesse espaço.
Eu queria dizer que uma das questões em que avançamos é que, a partir da próxima COP, estaremos com um espaço reconhecido dentro da conferência: espaços de auto-organização dos indígenas, dos povos e comunidades tradicionais e de camponeses e camponesas. Acho que este é um avanço importante, de estarmos vigilantes, de estarmos ali colocando as grandes questões que temos e sobre como queremos este mundo rural, como pensamos este mundo rural e o que estamos fazendo. Acho que a ASA se juntou a esses outros movimentos e organizações no sentido de fortalecer o que já estamos fazendo, nossa incidência na construção de políticas públicas a partir do olhar da sociedade civil, em uma relação entre sociedade civil e governo. Acho que essa é uma grande questão, e acho que avançamos na COP quando temos aprovado, em seu documento final, espaços de auto-organização da sociedade civil.
Uma das questões que trouxemos é que precisamos avançar em espaços de auto-organização das mulheres na COP. As mulheres têm um papel fundamental na restauração da terra, na restauração do solo e na construção de sistemas agroalimentares sustentáveis a partir das práticas ancestrais de produção de alimentos. Queria dizer que esse tema foi muito forte e colocado na declaração dos espaços de governo pela sociedade civil. E foi muito importante porque tivemos jovens – camponeses, indígenas – nesse espaço, que é um espaço de governo, trazendo a mensagem de que esse modelo agressor da natureza, com uso de agrotóxicos, transgênicos e alimentos contaminantes, não trará vida ao solo e nem trará vida às pessoas. Eu queria dizer que essa é uma das questões importantes do ponto de vista dos avanços, e acho que conseguimos sair da COP com esse espaço de auto-organização dos povos e comunidades tradicionais e da sociedade civil organizada.
Compreendendo que a COP é muitas vezes um espaço “mais” de governo do que da sociedade civil, como você avalia o papel da sociedade civil na tradução dos acordos firmados neste espaço, considerando, por exemplo, a construção e execução de políticas públicas?
Nós teremos secas mais intensas, e essa população mais pobre, a população camponesa dos semiáridos, já tem sofrido com essas grandes questões. Eu queria dizer claramente que é preciso organização social. Eu acredito que a gente deve fortalecer nossas redes de agricultores e agricultoras, nossas redes de articulação da sociedade civil. Nós não podemos perder de vista que, sem a nossa organização – sem uma organização forte, sem uma organização que sistematize e organize o que estamos fazendo –, essas questões não vão chegar de fato a partir de um olhar da sociedade. Para fazer pressão política sobre esses governos, é fundamental estarmos organizados. Eu acho que, se não houver pressão política, se a gente, enquanto sociedade civil, não tiver clareza sobre para onde queremos ir, os governos, por si só, farão de forma distorcida e, muitas vezes, longe das realidades, de maneira burocrática, sem conseguir chegar até as populações que realmente precisam de políticas claras de enfrentamento às mudanças climáticas e à desertificação.
Nós temos um papel fundamental, que é o de nos mantermos organizados a partir das nossas redes, das nossas articulações, do nosso exercício cotidiano de sistematizar nossas experiências e trazer suas grandes lições para fazer pressão política e incidir nos nossos territórios. Portanto, este é o caminho que eu acredito que devemos seguir para que essas políticas de mitigação aos efeitos da seca, das mudanças climáticas e do combate à desertificação cheguem da forma mais coerente possível, sendo geridas com a participação da sociedade civil, em diálogo com o governo.
No caso do Brasil, temos experiências de políticas públicas muito bem-sucedidas nesse campo. O olhar sobre os territórios e sobre as experiências que acontecem tem inspirado políticas públicas importantes, fortalecendo a relação entre sociedade civil e governo. O papel da sociedade de se manter organizada e ter clareza sobre o que queremos – enquanto construção da agroecologia e da convivência com o semiárido – é fundamental para isso.