Agricultoras-pesquisadoras apresentam resultados do Projeto Quintal-Semente: mulheres, autonomia e produção
Anotar, ao longo de um ano, tudo que fosse proveniente de sua produção e trabalho, foi o convite feito à 15 agricultoras familiares de três municípios do Sul e Sudeste do Paraná, articuladas ao Grupo de Mulheres do Coletivo Triunfo. O exercício, realizado com as Cadernetas Agroecológicas, teve como principal objetivo visibilizar a contribuição econômica, social e ambiental da produção agroecológica realizada por mulheres, historicamente invisibilizadas. A metodologia político-pedagógica foi desenvolvida a partir da experiência concreta das mulheres agricultoras da Zona da Mata e Leste de Minas Gerais.
“Durante esse ano a gente foi percebendo o nosso trabalho. A autonomia de você ter a própria semente, de ter as medicinais, você não precisa ir ao mercado comprar. Você ter lá na horta, ir lá e pegar um alimento, é uma economia do que você não comprou, não gastou em dinheiro. Mas teve todo um trabalho e tem um valor agregado, né?”, afirma a agricultora-pesquisadora e guardiã de sementes Silvia Luciane Horst, da comunidade de Correias, município de Palmeira.
As 15 mulheres participam do grupo territorial de mulheres e, também, animam grupos comunitários nos municípios de Palmeira, Rio Azul e Teixeira Soares. Elas foram as protagonistas de toda a pesquisa: refletindo e produzindo questionamentos e análises que qualificaram e orientaram o processo. Por essa razão, assumem a identidade de agricultoras-pesquisadoras, promovendo a produção de conhecimento agroecológico a partir do diálogo de saberes.
Ao longo da pesquisa, onde as anotações ocorreram entre novembro de 2023 a outubro de 2024, uma enorme diversidade de alimentos, produtos e serviços preencheram as páginas. Além das diferentes estratégias utilizadas pelas mulheres para manter seus quintais produtivos, como as práticas de manejo ecológico dos solos, produção de biofertilizantes e a lenha para o fogão. Para Marli Sobenk, agricultora-pesquisadora do assentamento São Joaquim, em Teixeira Soares, “ninguém vê o valor de plantar comida, e a gente está dizendo que a comida e o trabalho da mulher, gente, tinha que ter muito mais valor.”
Em um formato simples, a caderneta é composta por quatro grandes colunas, dedicadas à anotação diária de tudo o que foi consumido, doado, trocado e vendido, e quatro colunas para anotação do preço de cada uma das anotações. “A caderneta trouxe a visibilização do nosso trabalho dentro de casa, você tem a noção do que você produz e do seu trabalho”, avalia Silvia. Trata-se de um processo de auto-observação, reconhecimento e valorização do fazer cotidiano, que fortalece a autonomia das mulheres, amplia sua compreensão sobre seu trabalho e potencializa processos coletivos de auto-organização e incidência política.
Conquistas e desafios
A pesquisa revelou a importância dos diferentes processos de auto-organização das agricultoras em espaços de representação e decisão, como cooperativas, sindicatos e grupos comunitários. Mostrou, em números e gráficos, a contribuição das mulheres para assegurar a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) das famílias e das comunidades, o seu trabalho na preservação da agrobiodiversidade, incluindo o trabalho de cuidado e conservação das sementes crioulas.
O movimento territorial de mulheres vem se fortalecendo nos últimos anos e os dados apresentados pela pesquisa comprovam esse crescimento. Acesso a determinadas políticas públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA Sementes) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são importantes formas de organização das mulheres, garantindo produção diversificada e renda digna.
Todas as agricultoras-pesquisadoras se reconhecem enquanto agricultoras familiares e, a maioria, é também guardiã de sementes crioulas. A identidade vem acompanhada de muito orgulho em produzir uma grande variedade de sementes, mantendo suas histórias vivas e circulando.
“Trabalha na propriedade eu, a minha mãe, a minha sogra e a minha cunhada, somos guardiãs de sementes crioulas. A gente não tem essa relação de quantas variedades que a tem lá na propriedade, mas eu acredito que vai em torno de 50 ou até mais variedades que a gente tem. Só neste ano a gente já colheu pra mais de 100 quilos de amendoim, estamos com 5 variedades no amendoim”, relatou Elizabete Ribeiro Bueno durante a manhã do seminário. A família entrega para o PAA Sementes, política pública de compra institucional fundamental para a manutenção das variedades crioulas de grãos e hortaliças.
Porém, a pesquisa também apontou grandes desafios enfrentados pelas mulheres agricultoras no acesso a políticas públicas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e mercados territoriais, por exemplo.
Para Silvana Moreira, professora do Instituto Federal do Paraná Campus Irati, a dimensão da economia e do trabalho apareceram de maneira determinante, provocando reflexões sobre a participação das mulheres e sua contribuição para a manutenção dos tecidos sociais, laços comunitários e, até mesmo, para a fertilidade dos solos nos quintais produtivos. Para a professora, “a lógica camponesa tem essa dimensão da solidariedade, da reciprocidade, da redistribuição, né? E majoritariamente a mulher acaba tendo esse papel de fazer essa economia camponesa fluir e trazer toda a sua resiliência, a sua resistência e a sua capacidade de manter a família lá no campo mesmo com todas adversidades já colocadas aqui”.
Colheitas coletivas
O seminário de apresentação dos dados do projeto Quintal-Semente: mulheres, autonomia e produção aconteceu na última terça-feira, 17/06, na Câmara Municipal de Palmeira. Durante o dia, o auditório se encheu de histórias, emoções e muitas reflexões sobre a visibilização e valorização do trabalho das mulheres.
A pesquisa foi realizada a partir de uma parceria institucional entre a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, o Grupo de Trabalho Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia e o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata de Minas Gerais (CTA-ZM), provocando reflexões sobre economia e produção das mulheres.
A iniciativa teve como objetivo central promover processos de auto-organização e fortalecimento de redes de mulheres, com foco na autonomia, soberania e segurança alimentar e nutricional, geração de renda e conservação da sociobiodiversidade. Nesse caminho, os saberes das mulheres, materializados em seus quintais, suas práticas de produção e reprodução e sua relação com a terra foram nossa bússola.
O encontro coroou o encerramento da pesquisa, reunindo mais de 40 agricultoras familiares de pelo menos sete municípios da região de atuação da AS-PTA no Paraná, além de representantes de cooperativas da agricultura familiar, sindicatos de trabalhadores rurais, de instituições de ensino e pesquisa e extensão.
“A Caderneta Agroecológica foi muito mais do que um instrumento de pesquisa. Foi uma chave para abrir portas de valorização, identidade e pertencimento. A cada anotação, um reconhecimento de seu trabalho como agricultora, que contribui diretamente para a economia e para a soberania e segurança alimentar e nutricional de suas famílias e comunidades. Elas se apropriaram do processo”, afirma Miriane Serrato, assessora técnica do Programa Local Paraná da AS-PTA.
O projeto Quintal-Semente não termina com o seminário. Ele segue florescendo em cada mulher que agora sabe: sua produção importa, sua voz tem valor e seu quintal é território de resistência.
A publicação já está disponível no site da AS-PTA e pode ser acessada aqui: https://aspta.org.br/2025/06/23/quintal-semente-mulheres-autonomia-e-producao/