Milena Regina Mussoi e Mônica de Caldas Rosa dos Anjos
As sementes crioulas marcam a identidade de povos tradicionais e originários, configurando um meio de afirmação e legitimação de modos de produzir e reproduzir a vida. No manejo e na conservação das sementes crioulas, revelam-se saberes e práticas constitutivos do ser e da identidade de famílias, socializados entre gerações. No contexto atual, as sementes crioulas também empoderam as famílias agricultoras na defesa da soberania alimentar, em um movimento de resistência frente às práticas impostas pelo sistema agroalimentar hegemônico.
“Até que eu puder eu faço. Quando não puder mais, os outros que façam […] Porque a gente gosta da semente, porque se parar de guardar, termina, não é?”… (Hortência Henrique Mussoi, 2017)
Essa fala retrata a perseverança da agricultora Hortência Henrique Mussoi¹ em conservar suas sementes, cuja importância se traduz na manutenção da tradição alimentar e cultural. Nesse sentido, buscou-se compreender as histórias relacionadas à semente crioula de feijão, variedade conhecida localmente como graúdo, bem como as estratégias de produção e reprodução da semente, ano após ano. Hortência, agricultora no município de Laranjeiras do Sul, no Paraná, é guardiã dessa variedade há 55 anos.
O resgate da história ocorreu inicialmente por meio de acompanhamento informal do trabalho de manutenção da semente por Hortência, avó da autora principal, e, na sequência, por conta das atividades realizadas no projeto de extensão Resgatando saberes e práticas: aproximação necessária entre produção e consumo de alimentos, coordenado pela coautora. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com a guardiã e outras pessoas envolvidas na conservação da semente crioula, como suas filhas e filhos, além de pesquisas em referenciais teóricos sobre a temática.
O PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CONSERVAÇÃO DA AGROBIODIVERSIDADE
No que tange ao agregar de saberes e práticas envolvidos na manutenção da semente crioula, importa considerar o papel fundamental exercido pelas mulheres. Hortência, guardiã, agricultora e mulher, recebeu as sementes pela primeira vez em 1962, das mãos de outra mulher, uma parteira que viajou do norte do Paraná para sua casa, para estar presente no parto de um de seus filhos. Esse relato se justifica ao considerar que na produção mundial de alimentos as mulheres foram (e são) originalmente as protagonistas, devendo-se a elas a maestria no que se refere à conservação e ao manejo da agrobiodiversidade, de forma holística e multidimensional (SILVA; OGLIARI, 2015).
A história veio lá do norte do Paraná… a mulher que trouxe de lá e me deu a… um comecinho… quando eu ganhei o Diogo, veja quantos ano faz! Era a parteira… daí quando eu plantei, plantei na beira da cerca assim… acho que umas dez ou quinze cova… na beira da cerca, terra ruim ainda… e deu, já deu um punhadinho mais… era umas cova só. Mas cada grão dá um punhadinho. Então já deu um quilo mais ou menos daquelas cova. Depois daquelas cova, no outro ano eu plantei tudo, deu um galão… desses de vinte litro quase cheio e já deu pra comer um pouco… daí depois daquele galão, eu sempre fui plantando, cada vez mais… plantava que já dava pro gasto, repartia com um, com outro. Do mesmo feijão. E agora, até agora, eu dei pra uns, mas muitos não cuidam, agora o Arno que tem trazido, de lá, um tanto. (Hortência Henrique Mussoi, 2017)
O interesse de Hortência pela semente² envolveu a facilidade de cultivo, a produção em aproximadamente 60 dias, o cozimento rápido, além do sabor e da textura dos grãos e caldo, o que muito agradou o seu paladar e o de seus familiares.
Dentre as práticas de manutenção e multiplicação da semente, destaca-se o processo de seleção realizado para garantir o plantio no ano posterior. Conforme relatos, guardar para semente significava guardar para o plantio, e não para consumo. A cada colheita, Hortência selecionava as melhores sementes, para que a produção fosse continuamente melhorada.
“[…] ela, mesmo sem conhecimento técnico, mas ela já adotava que as semente melhor tinha que deixar pra plantar, sabe… tem muita gente que pega, não, essas mais ruim eu planto , não é, ela procurava a melhor semente, pra produzir melhor…. então ela já tinha essas técnica aí sabe. Ela aprendeu com os avós dela, e pai dela, selecionar a melhor semente”. (P2, 2017)
Nas entrevistas, é recorrente a fala de que a guardiã não possuía conhecimento técnico e que seus saberes foram adquiridos empiricamente e incorporados intergeracionalmente com seus familiares de origem camponesa e indígena. Essa sabedoria, que possui estreita relação com a natureza, também se evidencia no esquema de plantio conforme as fases da lua e estações do ano.
“O certo é de plantar o feijão é na lua cheia […] de agosto a outubro… sempre na lua cheia”. (Hortência Henrique Mussoi, 2017)
O plantio do feijão realizado no mês de setembro, com a colheita em dezembro, foi denominado de plantio no cedo, enquanto o plantio em janeiro, com a colheita em março, denominado de plantio no tarde. O respeito às épocas possibilitava o ciclo completo da planta, com a formação dos grãos antes do período de multiplicação de insetos coleópteros da família Coccinellidae. Respeitar as épocas da natureza também significava manter o ambiente equilibrado.
Nesse mesmo sentido, de modo a não gerar o empobrecimento do solo e, assim, amiudar a semente, os relatos destacaram a importância da realização da rotação de culturas, com os gêneros alimentícios sendo intercalados nos espaços, a cada nova safra. O plantio ocorria apenas com o auxílio de uma cavadeira manual, típico de uma produção voltada para o consumo familiar, também sendo criteriosamente planejado com relação aos espaços na propriedade. Para evitar possíveis alterações pelo cruzamento entre as sementes, a parcela de produção do feijão era separada dos demais espaços de cultivo.
É um feijão puro, um feijão sem agrotóxico, um feijão sem mistura, não é semente modificada, não, é um feijão natural dela, então eu acho que é uma maneira dela manter uma tradição, manter um gosto, a vida inteira. (P4, 2017)
As sementes selecionadas para o próximo ano eram guardadas em garrafas ou sacos fechados, sendo conservadas, apropriadamente, com o auxílio de folhas de louro e pimenta do reino. Hortência, sempre zelosa, guardava as sementes visando à alimentação da família para o ano seguinte. E, somente depois de todo esse processo, as sementes que sobravam eram destinadas para o gasto, sendo preparadas e consumidas pela família.
Hortência fazia doações das sementes a pessoas da região e a seus familiares de outras regiões, quando vinham visitá-la. A prática da doação das sementes foi constante e possibilitou não só que outras pessoas se beneficiassem da produção e do consumo dessa variedade, mas também a disseminação das se- mentes, evitando sua perda. Não raras vezes, Hortência recebia, em troca da doação de suas sementes, variedades de alimentos trazidas por pessoas que também buscavam manter viva as sementes que guardavam.
“Quando a mãe doava o feijão, a mãe recebia com certeza um milho especial pra milho verde, ou vinha uma melancia de tal lugar, ou vinha uma abóbora diferente, tudo que era novidade, digamos assim, que alguém conseguia, trazia um punhadinho de semente pra não se perder”. (P1, 2017)
O plantio dessa variedade de feijão, ano após ano, durante 55 anos, caracteriza-se como uma tradição, em que se conservam as raízes culturais, os saberes e as práticas envolvidas na sua manutenção. Durante todo esse tempo, a história dessa semente de feijão permanece viva na medida em que garante a alimentação dessa e de outras famílias, que se envolvem e se envolveram no cultivo da semente, movidas por relações de solidariedade. Uma verdadeira rede de guardiãs e guardiões que abrange pessoas que integram a família Mussoi, bem como famílias agricultoras, famílias assentadas da reforma agrária, além de outras pessoas oriundas de várias regiões do Brasil, que receberam, das mãos de Hortência, as sementes para cultivar.
Seria o bem da coletividade você querer que todo mundo tenha, divulgar. E exatamente essa, não o feijão em si, mas essa cultura de você ter várias, distribuir a semente pra que as outras, que você sabe que gostam do cultivo, do artesanal, eu também guardei pra mim e faço isso… entrego as mudas prontas ou entrego a semente. Pra não se perder. Favorecer, beneficiar os outros e […] o retorno é praticamente imediato, é a lei do retorno, quando você dá, a outra pessoa vai lembrar de você e quando ela tiver uma semente diferente, você consegue. (P1, 2017)
Neste momento, em que Hortência não consegue realizar as atividades de produção, em função de seus 87 anos de idade, a rede, constituída por ela, se torna funda- mental na continuidade dessa tradição, em especial, os membros mais próximos de sua família, cultivando anualmente a semente de feijão, em respeito à guardiã, como compromisso de cultivar e zelar por essa variedade.
Hortência destaca, com tristeza, que são poucas as pessoas interessadas na guarda e na manutenção das sementes crioulas. Esse desinteresse traz como consequência a perda da soberania alimentar, uma vez que favorece a expansão de um sistema agroalimentar que distancia as pessoas da produção de alimentos, expondo-as ao consumo de alimentos cuja procedência desconhecem. Apesar dessa situação, a agricultora reforça a importância de preservar a sua produção familiar, mantendo seu foco naquilo que possibilita sua autonomia em relação às escolhas alimentares.
Além da produção para garantir a alimentação da família, a relevância das sementes crioulas está no resgate das histórias de pessoas e na conservação das raízes, preservando saberes e práticas tradicionais envolvidos em sistemas que consideram a terra como fundamental para a produção e a reprodução da vida.
Existe provavelmente ainda muita planta que pode ser resgatada, num sistema mais antigo de produção, que essas pessoas que iniciaram esse cultivo e que guardaram essa semente, elas têm um carinho tão grande por isso que a qualidade provavelmente é muito superior às geneticamente modificadas ou às plantas… variedades novas surgidas por pesquisas recentes. Essa aí já vem com tradição de clima, adaptada pra região, cada região deve ter suas culturas específicas, uma questão de gerações. (P1, 2017)
O importante aí é o seguinte, que os próprios órgãos governamentais olhassem pra esse lado, sabe… que os produtos assim, incentivo maior à produção orgânica, e se tiver que tratar desse lado transgênico, que seja dispensado uma atenção maior, sabe, da área técnica, em cima, isso aí, e que eles se empenhassem mais em fazer com que esses pro- dutos viessem ao encontro dos interesses dos pequenos produtores, porque o grande produtor, nós já sabemos, que vão sempre pro lado do transgênico. E os pequenos produtores são nossa segurança, nossa esperança. (P2, 2017)
A sistematização de saberes e práticas ligadas à manutenção de uma semente crioula configura uma importante referência na luta pela soberania alimentar, permitindo a documentação das ações envolvidas na produção e na multiplicação da semente, as trocas de conhecimentos, a divulgação a um número maior de pessoas e a manutenção de histórias de vida. Fruto disso é a compreensão de que o resgate de saberes e práticas se posiciona como resistência frente a um sistema que tende a sufocar as sabedorias tradicionais, para dominar e aprisionar com suas práticas, munidas de capital. Em uma abordagem da defesa da soberania alimentar, revela-se a necessidade de devolver a voz às populações que representam a luta pela manutenção da biodiversidade, do equilíbrio dos ambientes, da construção e da socialização de sabedorias originárias, do respeito e da interação com as diferentes formas de existência da vida.
Hortência, por meio do cultivo e da guarda da semente crioula de feijão graúdo, contribui para a soberania alimentar, permitindo compreender a relevância dessa variedade para a subsistência de uma família. A semente como base da alimentação e da tradição, alicerçando histórias e memórias afetivas, por meio da produção e do consumo desse alimento.
¹Dedicatória: Dedico este artigo à memória de Hortência Henrique Mussoi, pelo pesar de seu falecimento no período em que o presente artigo se encontrava em processo de avaliação para publicação. O texto original mantém-se preservado, como se ela ainda estivesse presente, para que as lembranças de sua história de luta pela soberania alimentar permaneçam vivas e indeléveis. Querida avó, o seu legado e exemplo de mais puro amor pela terra e pelo trabalho de nela plantar, cultivar e colher manterão a sua vitalidade, sua presença e sua luz em mim.
²As características da semente podem ser encontradas na referência: Sementes da Paixão. Catálogo das sementes crioulas da Borborema (DIAS; PORFÍLIO; FREIRE, 2016).
Milena Regina Mussoi
Nutricionista
[email protected]
Mônica Caldas Rosa dos Anjos
professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Paraná
[email protected]
Referências bibliográficas:
DIAS, E.; PORFÍLIO, A.; FREIRE, A. G. Sementes da Paixão. Catálogo das sementes crioulas da Borborema.
Esperança: AS-PTA, 2016.
SILVA, N.C.A.; OGLIARI, J.B. Milho pipoca: mulheres agricultoras conectando o passado e o presente no Extremo Oeste de Santa Catarina. Revista Agriculturas, v.12, n.4, p. 31-36, Dez. 2015.
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Agriculturas V14,N2 – Entre Produzir e reproduzir