Estevan Felipe Pizarro Muñoz e Paulo André Niederle
A expansão das corporações transnacionais e do capital financeiro no setor agroalimentar tem sido capaz de proporcionar a circulação global de commodities de maneira cada vez mais rápida e em enorme escala. isto se deve, dentre outras coisas, à desregulamentação dos mercados, à privatização dos recursos comuns e à concentração de poder econômico. Dentre as consequências, estão problemas relacionados à segurança alimentar e nutricional, incluindo crises de saúde coletiva decorrentes do uso de agrotóxicos e transgênicos e do ultraprocessamento dos alimentos. Para as populações rurais, além dessas questões, o processo de desterritorialização da agricultura – que desconecta e descontextualiza processos produtivos e culturas regionais – tem impactado a capacidade de resiliência dos agroecossistemas e o tecido sociocultural das comunidades (PETERSEN, 2013; PLOEG, 2008; HOLT-GIMÉNEZ, 2012; CRUZ et. al., 2015).
Diante desse cenário, inúmeras iniciativas de redes alternativas de produção e consumo têm sido constituídas como contramovimentos a esses processos (POLANYI, 2000). Um exemplo disso são as ações coletivas promovidas pelos movimentos sociais agrários que se agrupam sob a bandeira da Agroecologia e da soberania alimentar e que têm ganhado força nos últimos anos. Este artigo analisa as estratégias adotadas pelas organizações dos assentados da reforma agrária vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tendo em vista a construção social de mercados alimentares no município de Porto Alegre (RS). O texto tem como base a pesquisa realizada entre 2016 e 2017, por meio de entrevistas com lideranças das organizações dos assentados da reforma agrária e observações in loco das experiências de comercialização.
ENTRE A CONVENCIONALIZAÇÃO E O ENRAIZAMENTO DOS MERCADOS ALIMENTARES
Considerando os diferentes circuitos de comercialização analisados em nosso estudo, é possível verificar a conformação de, pelo menos, três tipos distintos de mercados. O primeiro abarca as feiras livres, o comércio virtual e as organizações de consumidores, em que predomina uma lógica de mercados cívicos , ou seja, em que há um forte componente ético na ação econômica.
Esse tipo de circuito se encaixa no debate das Redes Alimentares Alternativas e é o que mais escapa ao controle direto do capital, representando uma resistência à dinâmica das corporações transnacionais, ao se apoiar em outras compreensões e práticas econômicas para além da convencional. Mesmo assim, tensionamentos ocorrem na medida em que determinadas feiras livres são funcionais às estratégias dessas corporações, como é o caso das feiras realizadas em shoppings centers de Porto Alegre, onde nota-se uma articulação da lógica cívica dos movimentos sociais com as lógicas mercantis e estéticas. Ou seja, quando o público que frequenta tais mercados alimentares está principalmente motivado pelo que Guivant (2003) denominou de ego-trip , que representa uma busca individual pelo cuidado com a saúde e o bem-estar pessoal, e/ou quando se trata de consumidores de ocasião, dada a facilidade e conveniência do ato de frequentar shoppings centers.
Por outro lado, esse improvável encontro tem o potencial de proporcionar importantes transformações nos mercados. De acordo com os estudos de Darolt (2012) e Rover (2011), nesses mercados de proximidade, a relação consumidor-vendedor pode extrapolar a pura troca mercantil/monetária e promover o compartilhamento de experiências de produção e de vida, expectativas de novos alimentos e formas de preparo. Assim, gera a construção da confiança mútua, questão-chave para a reciprocidade das ações coletivas e dos mercados enraizados, ou seja, mercados imersos e incrustados em relações sociais (SABOURIN, 2009; POLANYI, 2000).
O segundo tipo de mercado analisado refere-se ao ponto varejista de comercialização, onde nota-se uma inevitável hibridização entre as lógicas cívica e estética. Por se tratar de um ponto permanente de venda, localizado no centro de Porto Alegre, um dos pontos comerciais mais tradicionais da cidade, aberto em horário comercial e com a conveniência de diferentes formas de transação comercial, a Loja da Reforma Agrária atrai um perfil heterogêneo de consumidores. Por um lado, há aqueles com um poder aquisitivo relativamente alto, cujos padrões de interação, dispositivos de julgamento, conheci- mentos, significados e identidades são marcados por uma racionalidade individualista e hedonista (GUIVANT, 2003). Por outro lado, há consumidores que se identificam com distintas demandas cívicas – reforma agrária, Agroecologia, soberania alimentar, economia solidária, etc. –, que procuram o estabelecimento por questões ideológicas, destacando valores como confiança, reciprocidade e cooperação. A integração das lógicas cívica e estética também pode ser identificada na comercialização em exposições e eventos. A exceção, neste caso, fica por conta dos eventos temáticos específicos, tal como a Feira da Economia Solidária e a Feira da Reforma Agrária, que atraem um público de consumidores politizados. Por fim, o terceiro grupo identificado é formado pelas vendas dos alimentos da reforma agrária nos supermercados e minimercados. Como esperado, neste grupo predomina uma lógica industrial e uma racionalidade instrumental, ou seja, seus valores estão baseados na economia convencional e em critérios como escala de comercialização e estruturas empresariais profissionalizadas.
Ao longo das duas últimas décadas, os supermercados se tornaram atores dominantes dos sistemas alimentares, apropriando-se da maior parcela do valor agregado e representando o principal modo de abastecimento das sociedades urbanizadas. Paradoxalmente, o fornecimento de alimentos da reforma agrária para as diferentes modalidades varejistas (supermercados e minimercados) é, segundo entrevistas realizadas com lideranças do MST, a única maneira de, no contexto atual, democratizar e massificar o acesso da maioria da população a alimentos saudáveis, especialmente diante da incidência de desertos alimentares nas periferias dos municípios.
Cada um desses mercados mobiliza distintas lógicas que estão em permanente conflito. O desafio que tem se apresentado de maneira cada vez mais relevante está em articular as estratégias de comercialização, de modo que coexistam e se complementem tendo em vista a contraposição ao crescente controle exercido pelas corporações, possibilitando a expansão de um contramovimento (POLANYI, 2000) aos processos de desenraizamento dos mercados. Tal cenário se torna mais complexo diante do risco de convencionalização e apropriação das lógicas cívicas e estéticas pelos atores dominantes no setor agroalimentar, tais como os shoppings centers ou os supermercados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estudamos as atuais estratégias mobilizadas pelas organizações dos assentados da reforma agrária, em consonância com o MST, para a construção social dos mercados alimentares no município de Porto Alegre. Esse processo se expressa de forma clara nas redes alternativas de produção e consumo, tais como os circuitos curtos de comercialização, as feiras livres, os grupos de consumo, as associações e cooperativas descentralizadas, bem como as experiências de agricultura urbana, de consumo local e de valorização de alimentos tradicionais. Cumpre destacar que os circuitos convencionais de comercialização, tais como supermercados e minimercados, também são construções sociais, onde a lógica industrial predomina, mas que hoje convivem com críticas éticas e estéticas que abrem espaço para alimentos com qualidades diferenciadas.
As estratégias utilizadas pelas organizações dos assentados da reforma agrária em Porto Alegre se caracterizam pela diversificação de canais de comercialização, o que implica um conflito permanente entre diferentes lógicas. Cada um desses mercados exige uma postura diferenciada dessas organizações no que se refere ao relacionamento com os consumidores e fornecedores e à mobilização de estruturas físicas, conhecimentos e dispositivos institucionais. As entrevistas realizadas com as lideranças indicam que não se trata apenas de uma disputa de um mercado empresarial capitalista. Trata-se da construção social de mercados que garantam a viabilidade multidimensional (social, econômica, ambiental e cultural) dos empreendimentos da reforma agrária, amparados pelos princípios da cooperação e da Agroecologia, ao mesmo tempo em que se articula com as bandeiras políticas que organizam os movimentos sociais.
Como destacam Grisa e Schneider (2015), ao longo das duas últimas décadas, as políticas públicas tiveram papel fundamental na estruturação de alternativas econômicas para a agricultura familiar. Uma nova geração de políticas poderia potencializar ainda mais a construção de novas redes alimentares para os produtos da agricultura familiar, da reforma agrária e das comunidades tradicionais.
No entanto, as mudanças levadas a cabo após o golpe que destituiu o governo Dilma Rousseff demonstram que, ao invés de uma nova geração de políticas, o que está em curso é um processo de desconstrução das políticas existentes, com destaque para aquelas mais inovadoras, como é o Programa de Aquisição de Alimentos. Apesar disso, está claro que uma transformação mais expressiva dos sistemas agroalimentares passa pela capacidade dos movimentos sociais em construírem novos mercados. Sem o apoio de políticas públicas será muito mais difícil fazê-lo, mas isso não altera o fato de que a construção de novos circuitos de produção e consumo precisa fazer parte do repertório de ação dos movimentos sociais que possuem a soberania alimentar como bandeira, o que também implica uma aproximação com os mundos dos consumidores e, portanto, um diálogo com seus valores éticos e estéticos.
Estevan Felipe Pizarro Muñoz
professor do Centro de Ciências Rurais da Universidade Federal de Santa Catarina, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[email protected]
Paulo André Niederle
professor dos Programas de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural e Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[email protected]
Referências bibliográficas:
CRUZ, F.T.; MATTE, A.; SCHNEIDER, S. (Orgs.) Produção, consumo e abastecimento de alimentos: desafios e novas estratégias. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2016.
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GUIVANT, J.S. Os supermercados na oferta de alimentos orgânicos: apelando ao estilo de vida ego-trip. Ambiente & Sociedade, Campinas, SP, 6 n. 2, p. 63-81, 2003.
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