Apenas dez anos depois de sua chegada na China, o movimento Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) ganha cada vez mais adeptos entre os consumidores urbanos chineses. Ao empregar o enfoque agroecológico para produzir e distribuir alimentos de forma alternativa, esse sistema está fornecendo alimentos seguros e saudáveis para as cidades e ajudando a repovoar o campo.
Judith Hitchman
Alimentar as cidades em franco crescimento no mundo tornou-se cada vez mais difícil ao longo dos últimos 50 anos. Migrantes do campo costumavam receber suprimentos enviados por suas famílias ou compravam de agricultores locais em mercados de esquina. Mas muitos desses costumes desapareceram, sendo substituídos pela agricultura industrializada e por supermercados. Se considerarmos também a necessidade premente de lidar com as mudanças climáticas, torna-se imperativo concentrar esforços no desenvolvimento de redes alimentares alternativas que fomentem a produção local e sustentável de alimentos seguros, saudáveis e acessíveis para todos. Esse é o contexto no qual surgiu o movimento global Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA): um modelo econômico alternativo de produção e distribuição de alimentos, de base local, em que os consumidores se comprometem a apoiar uma ou mais propriedades rurais locais e compartilhar os riscos e benefícios da produção de alimentos de qualidade.
Os consumidores chineses, particularmente os da nova classe média, anseiam não só por novos tipos de alimentos, mas também por novos tipos de sistemas alimentares. Diante dos diversos escândalos envolvendo alimentos produzidos em grande escala, a garantia de uma alimentação segura desponta como uma grande preocupação para o governo e os consumidores. A confiança na agricultura industrial também vem sendo abalada por questões ligadas à poluição, aos agrotóxicos e aos fertilizantes químicos. O consumo de alimentos orgânicos certificados vem crescendo, sendo que, nos últimos dez anos, cada vez mais pessoas estão se juntando a grupos de CSA, que empregam o enfoque agroecológico. Embora seja um fenômeno relativamente novo na China, já existem cerca de 800 CSAs, com aproximadamente 100 mil consumidores associados. Somente em Pequim, há cerca de 50 CSAs. Os consumidores e agricultores envolvidos nessas iniciativas criaram uma rede nacional para poderem compartilhar conhecimentos e outros recursos, além de fazerem parte da Urgenci, a rede global de CSAs.
A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA NA CHINA
Em 2008, Shi Yan, uma acadêmica de fala mansa, mas bastante determinada, da Universidade de Renmin, em Pequim, ajudou a criar um dos primeiros estabelecimentos agrícolas de CSA da China chamado Little Donkey (www.littledonkeyfarm.com). Foi uma iniciativa conjunta entre a sua universidade, o governo distrital e o Centro de Reconstrução Rural de Renmin. Shi Yan se tornou a principal administradora do estabelecimento. Ela havia se inspirado em sua própria experiência, em 2008, quando trabalhou com a Earth-Rise Farm (Fazenda Nascer da Terra, em tradução livre), uma pequena CSA situada em Minnesota, EUA. Assim que ela retornou à China, instalou-se na porção mais a noroeste do distrito de Haidian em Pequim para administrar o estabelecimento Little Donkey, contrariando a tendência dos jovens de abandonar as áreas rurais para buscar empregos nas cidades.
Little Donkey contrariou outra tendência na agricultura chinesa. Os agricultores chineses figuram hoje entre os que mais utilizam insumos químicos no mundo, mas o cultivo em Little Donkey é feito sem qualquer produto químico. Para obter solos saudáveis, utilizam conhecimentos e técnicas oriundos de práticas tradicionais e da permacultura, além de princípios agroecológicos da agricultura natural do famoso agricultor sul-coreano Han Kyu.
Apesar de não serem certificados como orgânicos (devido aos elevados custos da certificação por auditoria externa), Shi Yan, assim como muitos estabelecimentos de CSA na China, aderiu a um Sistema Participativo de Garantia (SPG), um sistema de certificação alternativo que se baseia em um mecanismo de controle e de avaliação de conformidade dos produtos realizado entre pares.
Os membros da fazenda Little Donkey participam com cotas de trabalho ou cotas regulares. Aqueles com uma cota de trabalho alugam uma área de 30 metros quadrados e recebem todos os insumos (como sementes e fertilizantes orgânicos), ferramentas e assistência técnica para cultivar seus próprios vegetais. Já os membros com uma cota regular se inscrevem para obter um suprimento semanal de produção sazonal. Eles tanto podem pegar os produtos na fazenda como podem recebê-los em casa. A maioria dos pagamentos é feita on-line. A Little Donkey conta atualmente com cerca de 700 membros, a maioria deles moradores da cidade de Pequim. O estabelecimento também é utilizado para receber cursos de capacitação e pesquisa, além de ser um centro de atividades comunitárias, com a possibilidade de organizar visitas e demonstrações de agricultura ecológica.
Há alguns anos, Shi Yan deixou a Little Donkey para trabalhar em outro estabelecimento agrícola, a Shared Harvest (Colheita Compartilhada, em tradução livre), com o marido e os sogros. A família aluga uma terra da autoridade da aldeia e emprega 25 pessoas, sendo a maioria formada por jovens que estudaram ciências agrárias na universidade. A CSA Shared Harvest reúne 500 famílias, quatro grupos de pais de escolas locais e clubes e restaurantes orgânicos de Pequim. O estabelecimento também criou a Earth School (Escola da Terra, em tradução livre), onde as crianças aprendem sobre agricultura ecológica, meio ambiente e sobre o cultivo e a aparência real dos alimentos. Em novembro de 2015, a rede nacional de CSA, que conta com cerca de 500 grupos, realizou sua conferência anual na região, incluindo visitas à Shared Harvest. Na ocasião, foi fundada e promovida uma rede de conservação de sementes, já que parte das dificuldades enfrentadas pelos grupos de CSA na China é o acesso a sementes orgânicas saudáveis e localmente adaptadas.
DE VOLTA ÀS RAÍZES
Desde 2008, mais CSAs surgiram na China. O que as torna tão populares? Além do fato de os consumidores descobrirem que a CSA representa o sistema de alimentação alternativo que estão buscando, outra grande razão é que esse modelo oferece a jovens formados e qualificados a oportunidade de voltar às suas raízes. Muitos desses jovens deixaram o campo para estudar, mas hoje estão desiludidos com as luzes brilhantes e a vida na cidade e estão optando cada vez mais por regressar às suas comunidades de origem. Cuidar de familiares idosos também tem feito muitos jovens chineses escolherem esse caminho, já que não raro os avós são deixados sozinhos quando seus filhos e netos vão trabalhar nas cidades. Esses novos agricultores lideram muitas CSAs na China, em muitos casos chegando até mesmo a largar empregos estáveis e bons salários nas cidades.
Novos agricultores geralmente podem alugar terras adicionais, seja de outras famílias ou das autoridades locais. Na verdade, com a escassez de trabalho nas comunidades rurais, as CSAs foram recebidas de braços abertos. Em toda a China, é comum encontrar terras periurbanas protegidas destinadas à agricultura, o que contribuiu para a disseminação de CSAs, assim como possibilita o acesso a alimentos orgânicos frescos e constitui um modelo que torna viável a volta dos novos agricultores ao campo. Além disso, muitas novas CSAs na China estão diversificando suas atividades, algumas abrindo um restaurante dentro do estabelecimento rural, enquanto outras fornecem alimentos para creches.
Além de alimentar a população local, muitas CSAs próximas a Pequim vendem seu excedente no Mercado dos Agricultores de Pequim, um dentre uma dúzia que existem em toda a China operando em conjunto com as CSAs. A situação legal dos mercados dos agricultores, porém, é incerta. Teoricamente, os mercados precisam de uma autorização, mas, ao mesmo tempo, os agricultores têm a permissão para vender os seus produtos livremente. Outra questão, pelo menos em Pequim, é que o transporte de todos os alimentos para a cidade tem que ser feito em caminhões refrigerados. Os agricultores próximos a Pequim passaram então a trabalhar em conjunto para transportar sua produção para o mercado.
O QUE O FUTURO RESERVA?
É impossível saber como o movimento de CSAs irá evoluir na China, mas o governo está observando o modelo atentamente, considerando-o como um potencial fornecedor de alimentos seguros e saudáveis para as cidades. O número de grupos de CSA cresce a cada ano, provando que esse sistema alimentar, envolvendo agricultores, consumidores e autoridades locais, é popular. Pessoas como Shi Yan têm contribuído bastante para comprovar os benefícios e o poder do modelo Comunidade que Sustenta a Agricultura.
Judith Hitchman
([email protected]) é presidente da Urgenci e anteriormente foi representante dos consumidores no Mecanismo de Participação da Sociedade Civil do Comitê Mundial de Segurança Alimentar e Nutricional da FAO.
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Agriculturas V14,N1 – Agricultura sustentada pela comunidade: uma proposta que prospera na China