Paulo Brack
Nossa alimentação, na sociedade ocidental dita moderna, reflete a lógica da grande escala, que visa a supremacia da acumulação e do lucro sobre os demais valores. As monoculturas, no campo, representam o ápice de modelos que lucram com a sobre-transformação da natureza e aniquilam a diversidade, hoje reconhecida como sociobio-diversidade. Tornamo-nos, assim, reféns das monoculturas da mente, como diria Vandana Shiva, mas também da produção de alimentos, uma vez que nossa dieta está baseada em pouquíssimas espécies e controladas por gigantescos oligopólios de sementes e de insumos da agricultura industrial. Já na virada do milênio, a própria Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) alertou para o fato de que 75% de nossas variedades de plantas cultivadas e animais domesticados desapareceram.
Entretanto, em cada canto do planeta onde existe vegetação diversa, com exceção das regiões cobertas de gelo na maior parte do ano, temos biomas e seus respectivos ecossistemas com excepcional diversidade de flora e fauna com potencial alimentício. Esse enorme manancial sempre foi destacado por Eduardo Rapoport, ecólogo argentino da Universidade de Bariloche e um dos maiores especialistas e entusiastas da diversidade da flora alimentícia presente em cada continente. Rapoport assinalou que a razão para a nossa monotonia dietética é que vivemos um imperialismo alimentar e gastronômico e fez duras críticas inclusive à manutenção do conceito depreciativo de ervas daninhas (malezas, em espanhol), muitas delas chamadas pelo cientista de buenezas (termo que, em português, poderia ser traduzido como ervas benignas). Ele aponta ainda que, em todo o mundo, pelo menos 1/3 das plantas assim denominadas são comestíveis, algumas com extraordinário valor nutricional, cultural e ecológico, como ressalta o artigo de Miguel Altieri (pág. 30). Antes de Rapoport, o pesquisador alemão Günther Kunkel foi um dos pioneiros catalogadores desse assunto, tendo citado 12,5 mil espécies com potencial alimentício no mundo.
Aqui no Brasil, cumpre destacar o trabalho do professor e pesquisador Valdely Kinupp, que estuda e dissemina o que chama de plantas alimentícias não convencionais (Pancs). Com base em vários autores e em seus próprios levantamentos, Kinupp destaca que entre 10 a 20% da flora mundial tem potencial alimentício, definindo esse tipo de plantas como aquelas que possuem uma ou mais partes ou produtos utilizados ou com potencial para a alimentação humana, tais como: raízes, caules ou tubérculos, bulbos, rizomas, talos, folhas, brotos, flores, frutos e sementes, incluindo o látex, resinas e gomas ou outras partes usadas para a obtenção de óleos e gorduras comestíveis. Esse conceito engloba ainda especiarias, plantas condimentares e/ou aromáticas, assim como as que são utilizadas como substituintes do sal, corantes alimentares, endulcorantes naturais, amaciantes de carnes e também fornecedoras de bebidas, tonificantes e infusões. Isso, no Brasil, representaria, pelo menos, de três a quatro mil espécies de plantas nativas. Somente na região metropolitana de Porto Alegre, Kinupp encontrou 311 espécies de Pancs nativas. Em linhas gerais, podemos dizer que a metade das nossas plantas alimentícias é composta de frutas ou castanhas, enquanto a outra metade, de hortaliças e outros produtos.
Podemos destacar também, por exemplo, a presença no Rio Grande do Sul de 201 plantas nativas com frutos e sementes comestíveis (o que chamamos de frutíferas). Desse total, cerca de 40% ocorrem no bioma Pampa e pelo menos 90% no bioma Mata Atlântica. Em termos biológicos, cerca de 60% das frutíferas no Rio Grande do Sul são árvores ou palmeiras, mas o dado que chama a atenção é que os 40% restantes apresentam uma grande diversidade de formas biológicas, como ervas, arbustos, trepadeiras e epífitas. Ainda no que se refere a frutíferas nativas do Brasil, é importante mencionar que, já na década de 1940, o botânico autodidata e um dos pioneiros da flora de São Paulo, Frederico Hohene, lançou a primeira obra abordando o que ele denominou de frutas indígenas brasileiras.
Mas as Pancs não se restringem às plantas nativas. Poderíamos estender o conceito a todas as plantas que não são convencionais em nossos cardápios ou não são produzidas em sistemas convencionais (agricultura industrial ou convencional), daí a designação de plantas alimentícias da agrobiodiversidade. Portanto, o conceito enfatiza as especificidades das biorregiões e das formas de produção. Assim, incluímos sementes crioulas e outras plantas associadas a diferentes culturas tradicionais e culturas alimentares, resgatando nossa riqueza étnica e fortalecendo a autoestima das comunidades em cada canto do País e também em cada canto do planeta. A diversidade de plantas e também de animais deixa claro o enorme potencial de seu uso em variados sistemas de produção, dentro de um paradigma não produtivista, necessário e urgente. O cultivo e a utilização são crescentes, devendo permanecer associados aos sistemas agroecológicos, em especial aos sistemas agroflorestais (SAFs), sob o resguardo dos agricultores familiares e das populações tradicionais. As plantas nativas alimentares, ou as plantas alimentícias da agrobiodiversidade, podem ser uma forma de autoafirmação de nossa autonomia, não somente em seu uso in natura, como também em processados, desde que não na forma de industrialização dos grandes conglomerados e oligopólios. O conhecimento acumulado das comunidades humanas sobre essas espécies em cada região onde ocorrem promove o resgate da cultura alimentar e da medicina popular regional, além de novas receitas saborosas e saudáveis, o que anima os grupos de agricultores e produtores a reintegrar o ser humano à natureza.
Os artigos desta edição da Revista Agriculturas abordam essa ampla temática, ressaltando a necessidade de uma profunda releitura de nossa relação ecológica perdida com as espécies da biodiversidade. Os artigos trazem reflexões a partir de experiências realizadas na Etiópia, na Alemanha, em diferentes países latino-americanos e em vários estados do Brasil, com destaque para as iniciativas em curso na Bahia, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.
Paulo Brack
professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da UFRGS, membro da coordenação do InGá
[email protected]
Baixe o artigo completo:
Agriculturas V13,N2 – Plantas alimentícias não convencionais