José Geraldo de Aquino Assis, Rosalia Ferreira Machado Galvão, Ian Requião de Castro e Juliana Fonseca de Melo
A sigla Panc ainda é pouco reconhecida pela maioria das pessoas, causando grande estranheza, sobretudo em função de sua sonoridade um tanto peculiar. Na Bahia, não é diferente. Quando abordamos alguém dizendo: “Estamos tentando promover as Pancs”, invariavelmente, a reação é um sonoro: “Hem?”, o que nos obriga a pronunciar o enorme nome completo Plantas Alimentícias Não Convencionais. Além de longo, o termo é polêmico porque muitas vezes suscita o questionamento: “Não convencionais para quem?” de fato, é preciso reconhecer que, nessa categoria, existe uma clara questão de perspectiva geográfica. O que é não convencional para uns pode ser corriqueiro para outros. O maxixe é um exemplo dos mais didáticos. Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, tem ampla circulação, mas ainda é pouco consumido nas demais regiões do brasil. Perfil parecido tem o umbu, fruto encontrado e obtido por extrativismo em todo o semiárido do brasil.
Ainda assim, é possível encontrar aspectos comuns abrangendo o vasto rol de vegetais denominados Pancs. São espécies vegetais que não estão inseridas em uma cadeia produtiva formal, embora no caso tanto do maxixe quanto do umbu talvez possamos dizer que haja uma cadeia insipiente, mas em expansão.
As Pancs são também associadas à ideia de produtos orgânicos e provenientes de agricultura familiar, o que não necessariamente se aplica a todas. Outra característica é o risco de erosão genética, ou seja, a perda de diversidade nos agroecossistemas pela contínua redução de uso. Isso se aplicaria, sobretudo, às Pancs cultivadas. No entanto, temos na lista de Pancs plantas silvestres ou naturalizadas, plantas ruderais e plantas cujo uso original seria outro que não na alimentação humana, como as medicinais, as ornamentais ou as forrageiras.
Essas distintas categorias têm sido evidenciadas nos diagnósticos realizados no estado da Bahia com base em levantamentos em estabelecimentos comerciais, como supermercados, feiras livres e pequenos mercados em algumas comunidades urbanas, periurbanas e rurais de diferentes regiões do estado.
A REDE PANC-BAHIA
O presente texto narra a experiência da Rede Panc-Bahia, formada por acadêmicos, profissionais, instituições e interessados no tema, que vem conduzindo diversas ações envolvendo desde o resgate de material botânico à ampla divulgação das Pancs.
Capitaneada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), a rede foi inicialmente concebida por profissionais ligados à Escola de Administração (mais especificamente voltados para trabalhos de Economia Solidária) e do Instituto de Biologia (principalmente dedicados à área de Recursos Genéticos Vegetais). Em seguida, aderiram à iniciativa profissionais da Escola de Nutrição (mais especificamente ligados ao curso de Gastronomia) e de outras instituições. Também foram agregadas escolas e comunidades, inicialmente em um número limitado, mas, à medida que as demandas foram sendo geradas, houve a necessidade da inserção de mais parceiros. Embora reúna atores envolvidos em projetos institucionais de pesquisa e extensão, a Rede Panc-Bahia ainda não se configurou como qualquer tipo de associação formal, pelo menos por enquanto.
DIAGNÓSTICOS E PESQUISAS
O diagnóstico sobre as Pancs começou nas feiras de algumas cidades na Bahia, onde foi possível identificar as espécies que estão bem estabelecidas, as emergentes – já encontradas com alguma frequência nesses comércios – e aquelas com circulação limitada. Entre as primeiras, podemos citar a língua-de-vaca (Talinum spp) – também chamada de beldroega grande –, o inhambu (Dioscoria trifida L.), o coentrão, ou coentro-da-índia (Eryngium foetidum L.), a taioba (Xanthosoma taioba E.G. Gonç.), o caxixe (Lagenaria siceraria (Molina) Standl.) e o melão coalhada (Cucumis melo L.).
Além das pesquisas nas feiras, a rede realizou diagnósticos de reconhecimento de Pancs por meio de entrevistas com diversas pessoas, geralmente as de maior idade, em algumas localidades da Bahia. A ideia era confirmar se as espécies já identificadas nas feiras tinham o mesmo grau de penetração no cotidiano das famílias. Obviamente, as espécies que chegam às feiras são aquelas cultivadas para comercialização. Sendo assim, poderiam ser consideradas as mais disseminadas e usadas na comunidade. No entanto, as entrevistas revelaram a presença de outras espécies, como as plantas silvestres e as ruderais que, com poucas exceções, são obtidas pelo próprio consumidor por meio de práticas extrativistas. Assim, os diagnósticos com essas pessoas possibilitam identificar espécies que não necessariamente chegam às feiras ou mercados, como a beldroega, o caruru (ou bredo), a bertalha, a taioba e a vinagreira.
De posse dos resultados, conseguimos verificar não só as plantas com maior inserção nos mercados e residências, mas também aquelas em risco de desaparecer. Diante disso, a intenção é realizar pesquisas para avaliar a aceitação de consumidores a partir da distribuição de kits de Pancs. Parte dos produtos a serem distribuídos estão sendo cultivados por uma das comunidades com que o projeto estabeleceu relação e onde a receptividade e as condições permitiram maior adesão. Assim, pretende-se, além da produção para a pesquisa, trazer maior experiência no cultivo dessas Pancs pela comunidade e possibilitar sua reincorporação à cultura local.
Também demos início a uma coleção de Pancs depositada no Herbário Alexandre Leal Costa, do Instituto de Biologia da UFBA. Outra ação de pesquisa valorizando a conservação de material genético será o estudo do armazenamento de sementes.
USOS E DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DAS PANCS NA BAHIA
Importante salientar que, além de algumas vezes haver dificuldade na identificação botânica correta das Pancs, elas não estão uniformemente distribuídas em todas as regiões. O melão coalhada, por exemplo, foi encontrado apenas em cidades mais ao norte do estado. Outras espécies ganham maior destaque em determinados locais. É o caso da araruta (Maranta arundinaceae L.), que é produzida comercialmente e chegou a ser incluída na merenda escolar nos municípios do Recôncavo Baiano.
Na Chapada Diamantina, por sua vez, encontramos grande riqueza em diversidade e no uso de Pancs, embora em alguns municípios a erosão genética já seja percebida. A palma forrageira (Opuntia fícus indica Mill) é um exemplo de planta que teve sua finalidade original alterada, uma vez que passou a figurar como prato típico da culinária regional. Ali, há também uma grande variedade de Pancs silvestres, como a batata-da-serra (Ipomoea serrana Sim.-Bianch. & L.V. Vasconcelos e I. pintoi O´Donell), usada na alta gastronomia local. No entanto, a sua conservação é um tema que preocupa já que é considerada uma espécie endêmica e com populações limitadas. A sua exploração também é algumas vezes inadequada, pois, apesar de produzir muitos tubérculos, o seu caule é fino e suscetível a lesões durante a coleta.
Ainda na Chapada Diamantina, há diversos frutos nativos, como o mucugê (Couma rigida Müll. Arg.) e o cambuí (Myrcia multiflora (Lam.) DC.). Ambos são destinados à fabricação de licores, mas, por diversas limitações de ordem legal e cultural, a atividade se mantém precariamente. Enquanto a coleta do mucugé é restrita por ser realizada no interior de um parque, criado com o objetivo de proteger uma espécie de sempre-viva (que chegou a estar ameaçada, mas cujas populações naturais já estão recuperadas), segundo a população local, os frutos do Cambuí só são produzidos de sete em sete anos. Essas dificuldades de obtenção de tais produtos da Chapada certamente exigem investimento em pesquisas para avaliar os possíveis limites da sustentabilidade de seu extrativismo na região.
Um cenário completamente diferente nos é apresentado pelas plantas ruderais. Estas, de hábito invasor, têm ampla distribuição, às vezes pantropical, sendo muitas não nativas. Espécies como a beldroega, o caruru (ou bredo) e a taioba vegetam de forma espontânea, muitas vezes em ambientes pouco adequados para hortaliças mais delicadas. Nesses casos, a principal limitação para o consumo é a falta de conhecimento sobre seu uso culinário ou mesmo certo preconceito por serem reconhecidas pelo senso comum como mato. Há, entretanto, na Bahia, um apelo especial para o seu resgate e/ou valoração dessas Pancs, uma vez que elas figuram entre os ingredientes de pratos típicos locais. O caruru, por exemplo, prato tradicional feito com quiabo, recebe esse nome justamente por ser preparado original- mente com o caruru (ou bredo). O efó segue sendo feito com língua-de-vaca ou taioba, embora o espinafre possa ser utilizado como substituto. Outra horta- liça do grupo das Pancs é o quioiô (Oci-mum gratissimun L. ), hoje mais conhecido por seu uso medicinal, mas ainda utilizado como tempero de feijão.
Todas essas diferenças fitogeográficas e culturais nos fizeram reconhecer que o alcance das ações da Rede ainda é limitado. Afinal, as grandes dimensões do estado da Bahia encerram cenários bem distintos a serem desbravados, como já percebemos durante os trabalhos conduzidos na Chapada Diamantina, no Recôncavo Baiano e em áreas tipicamente de caatinga do norte do estado. A intenção da rede, portanto, é continuar se expandindo e descobrindo novos contextos e usos das Pancs.
A COMUNICAÇÃO COMO FERRAMENTA ESTRATÉGICA
A rede ainda não conta com protocolos bem definidos para todos os tipos de investida, mas pretende criá-los após as experiências de pesquisas e ações de extensão em curso. A ideia é observar e respeitar as peculiaridades de cada público, promovendo atividades em diálogo com quem as demandam.
Nessa trajetória, entretanto, já foi possível identificar que o vínculo das Pancs com a memória afetiva das pessoas facilita a abordagem do tema, ainda que, em geral, atinja pouco os corações dos mais jovens, uma vez que essas espécies têm estado por muito tempo longe dos seus olhos.
Buscando reverter esse quadro de desinteresse e desinformação, a rede tem desenvolvido mecanismos diversos de divulgação das Pancs. Em geral, no meio acadêmico, utilizamos como recursos as palestras e participações em eventos científicos. Nas escolas, oferecemos palestras, oficinas e montagem de hortas, assim como participamos em projetos específicos de cada unidade de ensino. Nas comunidades, realizamos oficinas de gastronomia e identificação de Pancs no campo, além de eventos de troca de sementes, os quais se mostraram uma estratégia importante, já que favorece o intercâmbio não só de material genético, mas também de informações. Para o público mais geral, e tendo em mente a necessidade de recursos de alcance duradouro, desenvolvemos o blog da Rede Panc-Bahia (http://pancbahia.wix.com/redepancbahia) e estamos elaborando uma cartilha, um livro e vídeos de divulgação.
Por fim, cabe destacar que a adesão de profissionais e estudantes de Gastronomia à rede representou um aporte decisivo para atingimos um público maior e mais interessado. A culinária é, evidentemente, a forma mais promissora de agregação de valor a um produto alimentício. Não é à toa que muitos municípios promovem suas plantas tradicionais com festas, como o Festival do Ora-pro-nobis, em Sabará, Minas Gerais, já em sua 18ª edição, e a Festa da Gila, em Bom Jesus, Rio Grande do Sul, em sua 11ª edição. Seguindo esses passos, na Bahia já temos a Festa Municipal do Licuri, que em 2016 realizou sua 4ª edição, e a Festa do Umbu e da Vida, em Uauá, que já chegou a sua 7ª edição. E que surjam as festas da taioba, do andu, do dendê, do inhame, etc…
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), pelo apoio financeiro ao nosso projeto de pesquisa (PAM0016/201).
A todos os parceiros da Rede Panc-Bahia e participantes de comunidades que sempre nos recebem ou nos convidam.
A todos que comem e plantam Pancs na Bahia.
José Geraldo De Aquino Assis
Instituto de Biologia/Museu de História Natural da Bahia –UFBA
[email protected]
Rosalia Ferreira Machado Galvão
Escola de Nutrição –UFBA
Ian Requião De Castro
Incubadora Tecnológica de Economia Solidária e Gestão do Desenvolvimento
Territorial (Ites) /Escola de Administração –UFBA
Juliana Fonseca De Melo
Ites/Escola de Administração –UFBA
Referências Bibliográficas:
ASSIS, J.G. de A.; ANDRADE, D.C.L.; PRATES JUNIOR, P.; BORGES, R.M.E; DIAS, R. de C.S. Recursos Genéticos de cucurbitáceas convencionais e subutilizadas no estado da Bahia, Brasil. Magistra , v. 24, n. 4, p. 323-331, out./dez. 2012.
CARVALHO, P.C.L.; BORGES, A.J.; TEIxEIRA, C.A. Diversidade genética em Dios- corea spp. no Recôncavo da Bahia.. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 4, n. 2, p. 4104-4106, nov. 2009.
KINUPP, V.F.; LORENZI, H. Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. Nova Odessa: Instituto Plantarum de Estudos de Flora, 2014. 768p.
VASCONCELOS, L.V.; SIMãO-BIANCHINI, R.; FRANçA, F. Two new species of Ipomoea (Convolvulaceae) from the Chapada Diamantina of Bahia, Brazil. Brit- tonia, v. 68, n. 2, p. 142-147, jun. 2016.
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Agriculturas V13N2 – Plantas Alimentícias Não Convencionais na Bahia: uma rede em consolidação