Marcio Gomes da Silva e Paulo César Gomes Amorim Junior
As políticas recentes de compras governamentais de produtos da agricultura familiar trouxeram oportunidades significativas para a garantia da viabilidade econômica de empreendimentos coletivos da agricultura familiar. A Lei n. 11.947/09, que instituiu o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), especificamente em seu Artigo 14, incluiu um novo agente beneficiário do programa por meio da determinação de que: do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas. Considerando o total de recursos disponibilizados para a alimentação escolar em 2011 (cerca de R$ 3,1 bilhões), esse percentual representa algo próximo a R$ 1 bilhão.
Já o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), instituído em 2003 no início da primeira gestão do presidente Lula, foi concebido para ser uma das principais ações estruturantes do Programa Fome Zero, com atuação prevista para a formação de estoques estratégicos e a distribuição de produtos da agricultura familiar para pessoas em situação de vulnerabilidade social ou de insegurança alimentar. Conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), entre os anos de 2003 e 2010, foram executados por esse programa cerca de R$ 2,5 bilhões, totalizando mais de 2 milhões de toneladas de alimentos adquiridos.
Apesar das possibilidades que o PNAE e o PAA oferecem para a agricultura familiar e suas organizações, eles também apresentam uma série de desafios, na medida em que envolvem diferentes agentes no processo de aquisição de alimentos, cada qual com particularidades, demandas e expectativas próprias. Para atender ao mercado institucional, os empreendimentos coletivos da agricultura familiar precisam incorporar múltiplas capacidades gerenciais associadas ao mundo dos negócios, tais como o planejamento e a organização da produção; gestão eficiente; visão estratégica; dentre outras. E, ao se adaptar aos ditames desse mercado, a agricultura familiar precisa se mobilizar para colocar em cena um novo conjunto de padrões mais compatíveis com as suas condições técnicas e econômicas.
Este artigo discute como esses desafios vêm sendo enfrentados pela Cooperativa da Agricultura Familiar Solidária de Espera Feliz (Coofeliz), localizada em Minas Gerais. O objetivo é apresentar a trajetória dessa cooperativa na construção do mercado institucional, especificamente ao que se refere à inserção da produção agroecológica no PNAE e no PAA.
COOFELIZ: ORIGEM E OBJETIVOS
O município de Espera Feliz está localizado na Zona da Mata mineira e possui 20.835 habitantes, dos quais 40% residem na zona rural. Situado no entorno do Par- que Nacional do Caparaó, faz divisa com os municípios de Caparaó, Divino e Caiana, em Minas Gerais, e Alto Caparaó e Dores do Rio Preto, no estado do Espírito Santo. A cafeicultura é a principal atividade desenvolvida no município, com 9.735 hectares de área plantada.
A população de Espera Feliz é essencialmente composta pela agricultura familiar, cujo número é de aproximadamente 3,5 mil famílias. A Coofeliz foi constituída em 2006, com o objetivo de promover a comercialização dos agricultores familiares locais que, até então, era realizada pela Associação Intermunicipal da Agricultura Familiar (Asimaf). Seu processo de constituição se deu em meio a uma mudança jurídica no Código Civil, em 2002, a partir da qual as associações passaram de associações sem fins lucrativos para associações sem fins econômicos. Essa mudança legal impôs limitações para que a Asimaf realizasse operações comerciais.
Outra motivação para a criação da cooperativa foi a possibilidade de acessar o PAA. Em Espera Feliz, o primeiro acesso aconteceu em 2006, na modalidade Compra Direta para Doação Simultânea, envolvendo cerca de 30 famílias associa- das à Coofeliz. O valor do primeiro projeto foi de aproximadamente R$ 40 mil. Já o segundo projeto envolveu 110 famílias, atingindo um valor de R$ 373 mil. O acesso ao programa foi fundamental para a organização dos agricultores com vistas a buscar novas estratégias de comercialização de seus produtos. A cesta de produtos da cooperativa possui 42 itens, com destaque para o feijão, a mandioca, o inhame e a banana, além de polpa de frutas e quitandas.
Para fazer parte do quadro de sócios da cooperativa, é necessário ser considerado agricultora ou agricultor agroecológico. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais é o principal parceiro da Coofeliz, mas a cooperativa também estabeleceu parcerias com a Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária (Cresol), o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata Mineira (CTA-ZM) e a Universidade Federal de Viçosa (UFV). Nessas relações, são desenvolvidas ações comunitárias de fortalecimento da Agroecologia, principalmente a consolidação de experiências produtivas e a comercialização da diversidade produzida pela agricultura familiar.
CONSTRUINDO NOVOS PADRÕES DE MERCADO
Novos padrões de mercado, que atribuem qualidade aos produtos em função de sua origem, ou seja, pelas relações técnicas, sociais e culturais que caracterizam o processo produtivo, são construídos pela cooperativa a partir dos ambientes de interação agroecológica, realizados em parceria com o CTA-ZM e a UFV. Trata-se de espaços de trocas de experiências e conhecimentos que abordam questões relacionadas ao manejo agroecológico, à qualidade do produto, à forma de armazenamento, entre outros aspectos que se referem à entrega de um produto de qualidade.
Os ambientes de interação agroecológica, no entanto, trabalham apenas com a parte dos agentes econômicos responsáveis por essa construção social do mercado institucional. Outros agentes são merendeiras, professoras, nutricionistas e gestores públicos que têm relação direta com a formação da demanda de produtos.
A cooperativa estabeleceu estratégias de interação com esses agentes de modo que todos participassem na definição dos critérios de qualidade dos produtos tendo por referência a perspectiva agroecológica. Com as merendeiras e nutricionistas, por exemplo, foram realizadas atividades nas propriedades dos agricultores para discussão do conceito de qualidade com base na procedência do produto e foram elaboradas receitas que aproveitavam os produtos da agricultura familiar produzidos no município. Com professoras e gestores públicos responsáveis pela aquisição dos alimentos, a discussão abordou a alimentação escolar sob a ótica da soberania e segurança alimentar, com alimentos livres de agrotóxicos.
A mudança nos sistemas produtivos das famílias envolvidas com a cooperativa é evidente, com a diversificação da produção sendo impulsionada pelos processos organizativos e de mediação com os mercados estabelecidos pela Coofeliz. A mudança na paisagem, a inserção de outras atividades econômicas (criação animal, por exemplo) e a integração destas com determinados cultivos foram alguns dos principais impactos gerados nas unidades produtivas a partir do acesso ao mercado institucional.
O VALE SOLIDÁRIO COMO MOEDA SOCIAL
Todo o trabalho realizado pela cooperativa provocou a expansão do número de sócios, modificou a estrutura produtiva dos agricultores e promoveu adequações técnicas nas embalagens e estruturas de beneficiamento da cooperativa. Esse processo veio acompanhado da ampliação das movimentações econômicas e dos mercados. A partir da Demonstração do Resultado do Exercício da Coofeliz entre 31 de dezembro de 2010 e 31 de dezembro de 2012, é possível observar essa expansão, com a receita de vendas de mercadorias dos associados passando de R$ 118.101,88 em 2010, para R$ 193.670,00 em 2011 e para R$ 335.000,00 em 2012.
Uma dificuldade apontada pelos agricultores referia-se à demora para receber o pagamento pelos produtos entregues. Na venda para programas governamentais, existe uma série de procedimentos (emissão de nota fiscal, prestação de contas e, finalmente, a liberação do recurso) que faz com que os agricultores recebam o pagamento apenas 30 a 60 dias após a entrega dos produtos. A ausência de capital de giro na cooperativa para adiantar o recurso ao agricultor no ato da entrega do produto é um dos maiores problemas apontados pelos diretores da cooperativa.
Para garantir a viabilidade das movimentações econômicas, a Coofeliz criou, em 2011, o vale solidário. Atualmente, essa estratégia tem sido usada pelos agricultores sócios da cooperativa nos comércios conveniados, como supermercados, lojas de roupas, lojas de materiais de construção, postos de combustível, farmácias, lojas de produtos agrícolas, papelarias e padarias.
O vale funciona da seguinte maneira: o agricultor entrega seu produto no dia determinado pela cooperativa. Após a conferência do produto, o agricultor recebe uma nota com a relação e o valor dos produtos entregues. O vale solidário é elaborado nesse valor, que pode ser sacado em determinada data na cooperativa de crédito ou repassado pelo agricultor como moeda em um dos comércios conveniados.
O recurso é sacado na Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária (Cresol), na data do vencimento do vale. Esse vencimento é de 30 a 60 dias, tempo necessário para todos os procedimentos burocráticos de liberação do recurso tanto do PNAE quanto do PAA. Durante esse período, a moeda é movimentada no município. O vale não é um cheque, mas sim um valor movimentado entre as duas cooperativas e que tem como lastro as relações de confiança construídas localmente. Dos R$ 335 mil movimentados pela cooperativa em 2012, R$ 277 mil foram pagos diretamente aos agricultores na forma de moeda social. Dessa forma, o vale solidário aqueceu a economia local, injetando aproximadamente R$ 300 mil na circulação de produtos e serviços ao longo do ano. O convênio feito com as empresas locais e com a cooperativa de crédito baseia-se na crença de que o projeto de desenvolvimento da Coofeliz no município de Espera Feliz traz benefícios para todos, não apenas para agricultores e agricultoras.
A estratégia do vale solidário garantiu a ampliação das relações comerciais da cooperativa, bem como levou ao aumento do número de sócios. Em 2011, a cooperativa apresentava 76 sócios e, em 2012, passou a contar com 105, demonstrando potencial de elevar ainda mais esse número e expandir os mercados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mercado institucional proporcionou a estruturação das cooperativas e associações da agricultura familiar. Essa estruturação é estabelecida na medida em que agricultores e agricultoras tecem inovações organizacionais para garantir a viabilidade do negócio. A interação entre organizações cooperativas de diferentes setores (crédito e produção), como é o caso de Espera Feliz, cumpre um papel importante no acesso aos mercados.
O caso de Espera Feliz é emblemático na comprovação de que o mercado é um processo de construção social. Nesse sentido, os diferentes agentes econômicos passam a ser mobilizados para a definição de novos padrões mercantis, baseados em processos mais justos e solidários. A economia é vista como parte das relações entre esses agentes. E é nessa perspectiva que o enfoque agroecológico vem descortinando novos caminhos para que novos mercados para a agricultura familiar sejam construídos em Espera Feliz.
Marcio Gomes da Silva
bacharel em Gestão de Cooperativas, Mestre em Extensão Rural pela UFV e técnico do CTA-ZM.
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Paulo César Gomes Amorim Junior
estudante de Cooperativismo na UFV
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Baixe o artigo completo:
Revista V10N2 – Inovações organizacionais para a construção de mercados locais e solidários em Espera Feliz (MG)