Cláudio Becker, Fabiana da Silva Andersson e Paulo Mielke de Medeiros
Já houve quem dissesse que o termo mercado jamais deveria ser empregado no singular, ao menos não sob o ponto de vista sociológico. Os mercados são construções sociais e, portanto, possuem uma eminente dimensão sociocultural. A partir dessa afirmação, o artigo se propõe discutir uma experiência em curso no sul gaúcho, desenvolvida por agricultores familiares da microrregião de Pelotas que comercializam sua produção ecológica por meio de mecanismos de autogestão localmente desenvolvidos.
RECONSTRUINDO MERCADOS
O sul gaúcho é marcado por uma agricultura dual, na qual grandes propriedades – dedicadas à produção de cereais (arroz e soja) e à criação extensiva de gado – coexistem com um expressivo e diversificado segmento agrícola familiar. Nesse território, o auge do processo de modernização da agricultura provocou os mesmos efeitos nefastos que nas demais regiões brasileiras. O caráter segregacionista desse modelo de desenvolvimento ocasionou um intenso êxodo rural e gerou um contingente de famílias que, embora se mantivessem na agricultura, viam limitadas suas possibilidades de inserção socioprodutiva. A atuação de instituições ligadas às igrejas luterana e católica trouxe novas perspectivas a partir do trabalho associativo, representando o início das experiências agroecológicas. Todavia, foi o surgimento das primeiras cooperativas de agricultores familiares que alterou a relação das famílias rurais com os mercados.
Até a década de 1990, prevalecia o consenso de que não havia mercado para os produtos cultivados na agricultura tradicional (batata inglesa, cebola, alho, etc.). Entretanto, com a organização cooperativa, a lógica se inverteu: não há produção suficiente para atender o mercado. Ou seja, percebeu- se que havia efetivamente um espaço para a construção de novos canais de comercialização e abastecimento. Não obstante, esses processos precisam de uma sólida organização social da produção. As cadeias curtas e os mercados face a face aparecem como alternativas e instigaram o início das primeiras experiências de feiras livres ecológicas. Todavia, outras estratégias de comercialização da produção seguem coexistindo e sendo promovidas, como, por exemplo, a realização de tratativas para o fornecimento de produtos orgânicos a supermercados regionais.
A ampliação do número de famílias rurais que aderiram à produção orgânica e sua progressiva e dinâmica inclusão nos circuitos de comercialização resultaram na criação, em 2001, de uma organização regional de agricultores familiares ecologistas: a Cooperativa Sul Ecológica de Agricultores Familiares Ltda. De atuação microrregional, a cooperativa surgiu com mais de 100 famílias associadas, sendo seu principal objetivo a organização da produção ecológica visando o acesso aos mercados.
Naquele período, o fornecimento de alimentos ecológicos para as escolas da rede pública de ensino foi a grande novidade, apresentando novas perspectivas, mas também desafios para aqueles que aderiam à agricultura de base ecológica. Se, por um lado, era um mercado que se abria, de outro, exigia novos arranjos organizacionais (logística de abastecimento, adequação dos produtos, etc.), que demandavam um elevado grau de inovação por parte das famílias rurais, bem como dos demais agentes envolvidos (assistência técnica, diretores de escolas, nutricionistas, merendeiras, alunos, etc.). Aquilo que posterior- mente denominou-se mercados institucionais, sobretudo, o atual Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), teve seu início no sul gaúcho sob as seguintes bases: inserção socioprodutiva dos agricultores familiares ecológicos por meio da destinação de seus produtos às crianças da rede pública de ensino.
Essa experiência pioneira forneceu os alicerces para a construção de canais de comercialização para os alimentos orgânicos produzidos pela agricultura familiar na região. O êxito foi tanto que nessa época o volume de produção sofreu um incremento exponencial. Com o surgimento do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), em 2003, estabeleceu-se um novo patamar de relações entre produtores e consumidores. Foram criados comitês gestores locais, nos quais os distintos segmentos discutem acerca da constituição e operacionalização das aquisições de alimentos e sua destinação às pessoas em situação de insegurança alimentar nas áreas urbanas – alimento ecológico para quem não tem condições de oferecer a si e a sua família uma dieta alimentar adequada. Reforma ou revolução? Difícil dizer, mas a questão é que esse novo mercado, naquele momento, representou uma quebra de paradigma.
Entretanto, com o passar do tempo, apareceram algumas imperfeições nessa inédita forma de provisão agroalimentar e, novos desafios foram postos quanto à normatização da produção orgânica no país. Paradoxalmente, o mesmo Estado que, por meio de suas políticas públicas, promove o desenvolvimento rural cria dispositivos legais que o bloqueiam. Trataremos dessas questões a seguir, especialmente tomando como referência a obrigatoriedade de certificação dos alimentos orgânicos e os dispositivos adotados pelas organizações da agricultura familiar ecologista frente a esse desafio legal para a manutenção e a ampliação de seus mercados.
INOVAÇÕES SOCIAIS PARA ATENDER ÀS NOVAS EXIGÊNCIAS LEGAIS
Um representativo número de famílias agricultoras no Brasil, por razões diversas, vêm adotando os princípios agroecológicos em suas unidades produtivas. A inserção diferenciada dessas famílias nos mercados é uma necessidade, e não apenas uma opção, haja vista que os circuitos convencionais de comercialização subordinam os agricultores aos complexos agroindustriais e aos grandes conglomerados do varejo alimentar. Nesse sentido, o arcabouço jurídico e os instrumentos operacionais estabelecidos pelo Estado brasileiro voltados à promoção da segurança alimentar e nutricional representaram grandes avanços institucionais para a ampliação e a consolidação da produção de base agroecológica. Isso se verifica não somente no plano da produção de alimentos, mas na própria filosofia que orienta os programas de compra institucional (PAA e PNAE), cuja premissa básica é propiciar concertações inéditas visando à construção social dos mercados, baseando-se em valores como a proximidade, a confiança e a autorregulação.
Entretanto, os mercados vêm sendo cada vez mais conformados por normas restritivas, estabelecidas pelo próprio Estado. A certificação da produção orgânica é um desses mecanismos compulsórios colocados para agricultores ecológicos. Nesse campo, a maior inovação em nosso país foi o reconhecimento oficial dos sistemas participativos de garantia – SPGs – (MEIRELLES, 2007), por meio dos quais os agricultores organizados podem constituir um mecanismo de controle social que ateste a origem e a adequação dos alimentos por eles produzidos às normas da produção orgânica.
No caso dos agricultores familiares ecologistas, especial- mente aqueles vinculados à Cooperativa Sul Ecológica, a opção de regularização frente à obrigatoriedade da certificação foi a formalização de uma Organização de Controle Social (OCS). Esse dispositivo foi constituído a partir da própria conformação da Cooperativa, que se organiza em núcleos produtivos de no mínimo cinco famílias, nos quais os agricultores familiares efetivam o controle social da sua produção mediante a realização de reuniões e visitas itinerantes nas unidades produtivas, das quais podem participar técnicos e consumidores. A organização social da produção e a transparência no processo, bem como o devido registro documental, legitimam as suas práticas e certificam os produtos para serem comercializados como orgânicos nos mercados em que ocorre a venda direta. Nesse caso, a inovação social representada pela criação da OCS evidencia que os agricultores familiares organizados não apenas têm capacidade para fazer frente a um dispositivo de lei, mas também demonstram habilidade para responder às exigências dos mercados.
Julgamos que esse processo, em última análise, marcou a institucionalização da confiança. Todavia, apesar dos avanços e inovações observados na construção dos mercados para os agricultores familiares ecologistas, persistem diversos desafios para a consolidação das experiências em curso.
AVANÇOS POLÍTICOS, RETROCESSOS FORMAIS
Parece ser indiscutível que os mercados institucionais foram os grandes impulsionadores da ampliação da escala de produção dos alimentos orgânicos pela agricultura familiar do sul gaúcho, bem como da constituição de novos canais de comercialização e abastecimento. Entretanto, ocorre que, após um período de crescimento vertiginoso, algumas modalidades acessadas pelos agricultores familiares começaram a apresentar indícios de esgotamento. No caso do PAA, a defasagem dos valores recebidos pelos produtores é apontada como a causa do declínio no fornecimento para esse mercado por parte dos cooperados. Igualmente, o engessamento burocrático pelo qual o programa sistematicamente vem passando praticamente inviabiliza o seu acesso por parte das cooperativas da agricultura familiar. Além disso, algumas famílias rurais especializaram-se no fornecimento ao PAA, o que de certa maneira criou uma de- pendência em relação a esse mercado. Sendo assim, apesar dos ganhos, a questão é que, em virtude das dificuldades operacionais e da baixa remuneração, é crescente o descrédito por par- te de agricultores ecologistas em relação ao programa. Cremos que novamente será preciso lançar mão da habilidade social na busca de soluções criativas para os novos impasses criados.
Oferecer produtos saudáveis para as crianças não é uma questão somente de mercado para os agricultores familiares de base ecológica, mas também de princípios. E, com o advento da lei que estipula a obrigatoriedade de aquisição de produtos da agricultura familiar local para a alimentação escolar, dando prioridade aos produtos orgânicos, parecia que os mercados para esses gêneros novamente teriam uma ampliação substancial. Contudo, o que se observa regionalmente é um quadro bastante heterogêneo, mesmo incipiente, nas aquisições de alimentos ecológicos. Esse contexto desafia a capacidade organizativa e de articulação dos produtores com os demais segmentos envolvidos na consolidação desse mercado singular de abastecimento e consumo.
É POSSÍVEL SEGUIR EM FRENTE?
Pode-se dizer que o fortalecimento de dinâmicas locais de cooperação e associativismo representa um elemento de- terminante para a inserção da agricultura familiar ecologista nos mercados. O reconhecimento oficial dos sistemas participativos de garantia para a produção orgânica e a valorização dos mercados institucionais como canais para escoamento dessa produção sem dúvida são avanços importantes. Contudo, esse processo que denominamos de institucionalização da confiança nem sempre é regido pela horizontalidade nas relações. A assimetria de poder nas tomadas de decisão coloca o Estado como um ente imperioso. Os constrangimentos impostos às associações da agricultura familiar ecologista se expressam em uma infinidade de protocolos, formulários, manuais, atestados, ofícios e tantas outras exigências de ordem burocrática. No caso em questão, tais constrangimentos deslocaram o foco da atuação da cooperativa, que originalmente estava empenhada na organização social da produção e no trabalho de base e depois passou a concentrar seus esforços para atender às exigências legais dos mercados institucionais e da produção orgânica, conformando um quadro que pode- ríamos chamar de confinamento normativo.
Apesar das adversidades, acreditamos ser possível seguir em frente, sendo que é preciso entender que a qualificação e a consolidação dos mercados para a produção ecológica dos agricultores familiares, a partir de princípios e normas social- mente construídas, passam necessariamente pela superação dessas e de outras barreiras.
Cláudio Becker e Fabiana da Silva Andersson
agrônomos, Mestres em Ciência e bolsistas de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar, Universidade Federal de Pelotas
[email protected] e [email protected]
Paulo Mielke de Medeiros
agricultor ecologista e atual presidente da Cooperativa Sul Ecológica
[email protected]
Referências Bibliográficas:
MEIRELLES, L. Sistemas Participativos de Garantia: origem, definição e princípios. Revista Agricultura Ecológica de AGRECOL, Cochabamba, n. 7, p. 1-5, 2007.
Baixe o artigo completo:
Revista V10N2 – Inovação e controle social na produção e comercialização de alimentos ecológicos: institucionalizando a confiança?