Ross M. Borja, Pedro Oyarzún, Sonia Zambrano, Francisco Lema
A noção de Desenvolvimento 3.0 foi concebida para ressaltar a diferença com relação aos enfoques até hoje predominantes centrados na transferência de tecnologia (1.0) ou em regimes participativos (2.0). O Desenvolvimento 3.0 funda-se nas iniciativas comunitárias como fonte de inspiração para a mudança social. O movimento Canastas Comunitarias (Cestas Comunitárias, tradução livre), criado por famílias para lidar com a volatilidade dos preços dos alimentos, ilustra bem essa nova abordagem. Hoje, o movimento se expandiu para seis cidades no Equador e se diversificou para enfrentar novas questões, mas continua a ser um excelente exemplo dos benefícios obtidos por meio de sistemas alimentares locais, em iniciativas de auto-organização local.
Ao longo das últimas décadas, empresas do ramo alimentar têm adquirido crescente po- der para influenciar a forma com que as famílias urbanas no Equador se alimentam. Como parte desse processo, a população urbana vem progressivamente perdendo a noção dos diferentes significados e relações envolvidos na aquisição de alimentos. Ao mesmo tempo, a produção agrícola reflete cada vez menos o contexto e a cultura locais. Esse cenário expressa distância crescente entre produtores e consumidores. De um lado, os consumidores perderam o contato com as unidades de produção agrícola ou a região de onde vem a comida, e, do outro, os produtores não sabem quem vai comer seus produtos. O fato é que ambos os grupos estão a cada dia mais vulneráveis aos interesses de grandes empresas. O desenvolvimento de cadeias mais longas é uma das principais características do sistema agroalimentar moderno. Consumidores e produtores não se conhecem mais, os rendimentos dos agricultores estão decaindo, as opções para os consumidores são limitadas e as dietas são menos variadas e menos saudáveis.
O conceito de redes alimentares locais se baseia em uma renovada forma de relacionamento entre produtores e consumidores e está se tornando cada vez mais relevante. Vários exemplos de acesso direto aos mercados, ou de atalhos para comercialização, surgiram como uma reação ao crescente poder exercido pelos intermediários e pelo setor de supermercados, mostrando que as famílias, quando se organizam, têm o potencial de mudar uma situação adversa. Um dos melhores exemplos é o das Canastas Comunitarias, que tiveram início na década de 1980 como grupos de consumidores urbanos. Seus membros arrecadam fundos para fazer compras em grandes quantidades (no atacado) que são depois divididas entre as famílias do grupo, resultando em uma economia substancial. Hoje, as Canastas Comunitarias formam uma rede nacional de famílias urbanas de baixa renda que buscaram um modelo alternativo para economizar dinheiro e, ao mesmo tempo, possibilitar o acesso a alimentos de qualidade.
Assim, o que começou como um mecanismo de compra coletiva para economizar dinheiro acabou lentamente levando os participantes a questionar as origens e as formas de produção dos alimentos que consomem. Muitos consumidores começaram a reavaliar a vantagem de poupar dinheiro comprando alimentos produzidos sem o emprego de insumos químicos. Isso os encorajou a procurar os agricultores para obter respostas e estabelecer laços mais estreitos, o que fez com que as Canastas Comunitarias se tornassem uma ferramenta de fortalecimento da relação entre consumidores e produtores.
O CASO DA COMUNIDADE RURAL DE TZIMBUTO
Com cerca de 250 habitantes, Tzimbuto é uma pequena comunidade rural localizada na província de Chimborazo, no planalto central do Equador. É uma das áreas onde a organização de desenvolvimento local EkoRural vinha apoiando uma iniciativa conduzida por agricultores. Os agricultores possuem seus lotes dispersos por toda a área, onde cultivam grande variedade de culturas. A uma altitude média de 3 mil metros acima do nível do mar, esses lotes produzem vários tipos de culturas, plantas medicinais e árvores frutíferas, formando um mosaico de biodiversidade.
No início de 2010, a Associação da Nova Geração, formada sobretudo por mulheres de Tzimbuto, reuniu-se com as lideranças da Canasta Comunitaria Utopía, uma das mais antigas do Equador, que tem sede na vizinha cidade de Riobamba. A EkoRural, que havia trabalhado anteriormente com ambos os grupos, facilitou as primeiras reuniões, ao vislumbrar a oportunidade de conciliar os objetivos em torno do consumo e da produção de alimentos. Nosso empenho em construir vínculos mais fortes entre consumidores e produtores teve como principal motivação dar uma resposta à recorrente demanda dos produtores em relação ao seu limitado poder de barganha, aos baixos preços recebidos por seus produtos e aos injustos benefícios econômicos que as famílias – urbanas e rurais – acabavam concedendo aos intermediários.
Três anos mais tarde, cerca de 50 agricultores entregam regularmente os seus produtos para o grupo da canasta, que os leva para os consumidores em Riobamba. Hoje, esses produtores fornecem aproximadamente 25% das compras feitas pela Canasta Utopía (e cerca de 50% dos legumes). Os agricultores de Tzimbuto obtêm um lucro médio de 80% – cerca do dobro do que eles conseguem quando vendem os mesmos produtos para o revendedor atacadista. Sua associação também é mais forte do que antes, e eles incluíram novos mecanismos para incentivar outros vizinhos a participar.
Ao mesmo tempo, as vantagens para os membros da canasta em Riobamba são evidentes: eles pagam metade do que teriam que pagar a supermercados ou varejistas da cidade; e pagam aos agricultores de Tzimbuto o mesmo que pagavam aos atacadistas no passado, mas recebem produtos de melhor qualidade (produtos ambientalmente corretos, livres de agrotóxicos e outros produtos químicos) pelo mesmo preço.
ESTABELECENDO VÍNCULOS
Ainda que o fortalecimento dos vínculos entre consumidores e produtores traga muitas vantagens, a construção dessas novas relações nem sempre é um processo simples. Verificamos algumas dificuldades iniciais em função das diferenças culturais entre as famílias rurais e urbanas. Também houve o fato de alguns produtores acharem difícil deixar de usar agrotóxicos e outras práticas de produção nocivas a que estavam acostumados. Isso criou alguns obstáculos às tentativas de coordenar os esforços de ambas as partes, garantir a qualidade de todos os produtos e construir um relacionamento baseado na confiança.
Apesar desses problemas, todos os participantes descobriram que o trabalhar em conjunto para gerar mudanças abriu novas e empolgantes possibilidades, a começar pelas relações de reciprocidade que haviam sido perdidas, e as quais todos queriam reconstruir. Ambos os grupos buscavam um negócio vantajoso: os consumidores queriam ter acesso a alimentos saudáveis, enquanto os agricultores estavam interessados em saber mais sobre quem adquiria seus produtos, seus gostos e preferências. Os membros da associação começaram a planejar em detalhe o que iriam cultivar e quando, elaborando uma maneira mais eficiente de fornecer os produtos requisitados.
Um processo de diversificação da produção foi desencadeado, o que levou à introdução de novas espécies e variedades, incluindo variedades nativas de batata e de outras culturas, como mashua (Tropaeolum tuberosum), oca (Oxalis tuberosa ), arracha (Arracacia xantorrhiza) e melloco (Ullucus tuberosus) – aos poucos todas se tornaram disponíveis para venda e consumo. Além disso, os agricultores começaram a prestar mais atenção às suas próprias práticas agrícolas, às vantagens evidentes da rotação de culturas, dos consórcios e da utilização de adubo. Olhando para trás, essas práticas têm tido um grande impacto sobre a introdução de novos alimentos na dieta das famílias, tanto em Tzimbuto como em Riobamba.
Definir como alcançar tudo isso era essencial para gerar mudanças duradouras. Os agricultores concordaram que era necessário fortalecer sua própria organização, por meio da definição clara de papéis e responsabilidades. Eles também concordaram em capitalizar sua organização, dando ao grupo o dobro do que recebem em função dele (na forma de insumos, sementes e outros materiais). Para garantir a origem e a qualidade da produção, a associação criou um comitê que supervisiona todas as operações e nomeou uma liderança comunitária que assegura que os produtos cumpram com os critérios estabelecidos. Existe agora também um sistema coordenado de produção e distribuição que permite que todos os membros tenham a mesma chance de participar e se beneficiar. Sem dúvida, o sucesso visto foi resultado dos esforços de lideranças agricultoras como Elena Tenelema e da inspiração e motivação de Roberto Gortaire, Lupe Ruiz e todos aqueles por trás das canastas.
A FORÇA DA MUDANÇA
A ligação entre a Canasta Comunitária Utopía e os agricultores de Tzimbuto demonstra que a criação de novos e mais saudáveis relacionamentos entre famílias urbanas e rurais traz benefícios claros e diretos, que não se limitam à criação de um mercado mais estável, ao pagamento de preços mais justos para os agricultores e à possibilidade de consumo de produtos de melhor qualidade. Ambos os grupos também aprenderam sobre a importância de ter uma organização forte e promover uma abordagem sustentável para a agricultura. Passaram a valorizar ainda o papel e a contribuição de voluntários, a necessidade de planejar e coordenar as atividades em detalhe e também a qualidade dos alimentos – algo que os consumidores sem rosto nunca demandam. Esses esforços estão mostrando como a comercialização de produtos agrícolas pode se tornar uma grande força para ter uma vida mais saudável, com consequências imediatas (e altamente positivas) de natureza econômica, social e ambiental. Tudo isso fica ainda mais claro quando levamos em conta os custos reais dos sistemas alimentares modernos.
Há um enorme potencial para o fortalecimento dessas práticas que são baseadas na interdependência e na ilimitada criatividade do povo. A riqueza existente que já é investida na produção e no consumo de alimentos pode ser usada para fortalecer as organizações rurais e urbanas, bem como pode ajudar a mudar o cenário de exclusão de certos setores de nossas comunidades e sociedades. Deve-se também atentar para a importância de abrir es- paço para mais pluralismo e democracia, ao envolver, por exemplo, escolas, hospitais e organizações comunitárias.
Comer talvez seja a nossa atividade mais básica, mas seu potencial como ferramenta para a mudança tem sido negligenciado e esquecido. Os recursos já estão disponíveis. Eles só precisam ser reinvestidos e realocados para novos fins sociais.
Ross Borja, Pedro Oyarzún, Sonia Zambrano e Francisco Lema
Equipe da Fundação EkoRural, Quito, Equador
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Revista V10N2 – Sistemas alimentares locais: um caso de sucesso entre consumidores urbanos do Equador