Paulo Petersen, Luciano Silveira, Emanoel Dias, Fernando Curado e Amaury Santos
“Semente é tudo aquilo que nasce” (agricultor do Polo da Borborema)
As sementes das espécies cultivadas são portadoras de mensagens genéticas e de mensagens culturais. Além da pressão de seleção natural a que estão sujeitas todas as formas de vida, as espécies agrícolas foram historicamente submetidas a processos de domesticação, ou seja, à seleção cultural. O resultado dessas dinâmicas coevolutivas entre natureza e cultura foi a ampla diversificação biológica das espécies cultivadas, que hoje constitui um patrimônio genético-cultural reconhecido como bem comum da Humanidade: a agrobiodiversidade.
Esse processo multimilenar de criação, conservação e uso da agrobiodiversidade sofreu brusca alteração a partir de meados do século passado, quando o melhoramento genético passou a ser orientado por uma perspectiva distinta: no lugar do contínuo ajustamento dos genótipos aos ambientes naturais e culturais em que são utilizados, o novo enfoque orientou-se predominantemente para a maximização da produtividade física das lavouras. Essa nova abordagem parte da suposição de que as condições ambientais necessárias para a expressão do potencial genético das variedades melhoradas estarão asseguradas mediante o emprego do moderno arsenal tecnológico da agricultura industrial, desenvolvido exatamente para eliminar eventuais estresses ambientais. Dessa forma, as dinâmicas coevolutivas responsáveis pela ampliação e conservação da base genética na agricultura foram substituídas por um processo linear de melhoramento genético voltado a atender aos interesses da cultura empresarial que se impôs com o projeto de modernização implantado no pós-guerra.
A proeminência do viés produtivista no melhoramento genético das espécies cultivadas tem sido responsável pelo estreitamento da base genética na agricultura, uma vez que os genótipos desenvolvidos a partir desse enfoque são utilizados massiva e indiferenciadamente em variados contextos socioambientais, tomando lugar das variedades locais nos sistemas de produção. A consagração desse novo paradigma contou também com a instituição de marcos regulatórios que definem o que é semente e de políticas públicas que induzem à disseminação das sementes reconhecidas como tal. Ao mesmo tempo em que se afirma, reservando à comunidade de melhoristas profissionais os direitos de propriedade intelectual sobre os materiais genéticos desenvolvidos, o novo paradigma nega os históricos processos de seleção conduzidos de forma anônima e descentralizada por agricultores e agricultoras em interação dinâmica com a natureza e com suas comunidades. Uma das mais expressivas evidências dessa negação é a classificação das sementes da agrobiodiversidade como grãos, e não como sementes.
A superação dessa dicotomia ideologicamente construída mostra-se indispensável para a defesa e a promoção da agrobiodiversidade e, por duas razões principais, constitui uma das grandes bandeiras de luta do campo agroecológico:
1) O emprego das variedades locais (também conhecidas como crioulas) é condição determinante para a aplicação da perspectiva agroecológica no manejo dos agroecossistemas. No lugar da artificialização extremada dos agroecossistemas, por meio do aporte intensivo de insumos industriais, a Agroecologia postula a valorização do capital ecológico local em processos sustentáveis de produção econômica. A viabilidade dessa estratégia está diretamente ligada ao emprego de genótipos localmente adaptados, capazes de converter recursos abióticos disponíveis nos agroecossistemas (água, nutrientes e radiação) em biomassa de interesse econômico.
2) A (falsa) dicotomia semente X grão apresenta-se como uma expressão sintética das contradições entre o paradigma da modernização agrícola e o paradigma agroecológico. No lugar de reproduzir mecanismos de controle sobre as práticas de manejo agrícola legitimados pela teoria da modernização, a Agroecologia convoca as ciências a apoiar a construção de crescentes graus de autonomia da agricultura com relação aos mercados de insumos produtivos. Essa dialética controle/autonomia sobre os fatores de produção corresponde a relações de poder que fundam projetos sociais opostos, cujos protagonistas são, de um lado, os agentes do agronegócio e, de outro, as organizações e os movimentos sociais que atuam em defesa de um mundo rural democrático e sustentável.
Um exemplo de luta para a desconstrução dessa dicotomia é apresentado neste artigo a partir das ações da Articulação do Semiárido Paraibano (ASA-PB), voltadas à promoção da agrobiodiversidade. A experiência aqui relatada assume duas frentes complementares: a avaliação do desempenho das variedades locais, conhecidas na Paraíba como sementes da paixão, em comparação às variedades distribuídas por programas públicos; a mobilização social em defesa de políticas públicas que reconheçam e valorizem as estratégias populares de uso e manejo da agrobiodiversidade.
AS SEMENTES NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Ao fundamentarem-se em um enfoque agronômico orientado à extrema artificialização das condições ambientais para que os genótipos manifestem seu potencial produtivo, as políticas públicas têm sido determinantes na substituição das variedades locais por variedades geneticamente desenvolvi- das para responder produtivamente ao emprego intensivo de agroquímicos. Os seguidos programas governamentais voltados à distribuição de sementes no semiárido brasileiro talvez sejam a maior expressão da negligência do Estado com relação ao papel decisivo das variedades crioulas para o desenvolvimento de agroecossistemas produtivos e resilientes, numa região marcada pela instabilidade climática e altamente sensível aos efeitos das mudanças climáticas. A própria denominação de um programa lançado em 1995 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) revela o viés que informa essas iniciativas oficiais: Programa de estímulo à produção e de combate à fome por meio da renovação genética de sementes para mini e pequenos produtores rurais do Nordeste (grifo nosso).
Apesar dos sistemáticos questionamentos feitos pelas organizações da sociedade civil vinculadas à ASA-PB, a concepção técnica adotada no programa de 1995 vem sendo reproduzida ano-a-ano por meio de iniciativas similares do governo da Paraíba e do governo federal. Ao oferecerem unicamente variedades desenvolvidas em meio controlado pelo emprego de agroquímicos e irrigação, muitas vezes em outros biomas brasileiros, os programas induzem as famílias agricultoras a substituírem suas variedades por genótipos pouco adaptados aos sistemas técnicos, às condições ambientais e às preferências e necessidades culturais locais. Além disso, a oferta é limitada a poucas variedades, não sendo rara a distribuição de apenas uma variedade por espécie cultivada.
Em 2006, o Grupo de Trabalho em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) apresentou sua crítica à concepção técnica que orientou o Programa Nacional de Sementes para a Agricultura Familiar, lançado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA):
“Não compreendemos a razão das quantidades de sementes previstas para a distribuição e menos ainda os critérios para a escolha das espécies e das variedades que estão sendo ofertadas. Percebemos clara incompatibilidade entre essa oferta tão limitada de genótipos com o princípio metodológico oficialmente pretendido para o programa, qual seja o de oferecer variedades adaptadas e apropriadas aos agroecossistemas dos estados e regiões. Segundo a própria Embrapa, o Nordeste como um todo tem mais de 200 agroecossistemas. Tal como está sendo implementado, o programa não está considerando essa diversidade agroambiental que, certamente, corresponde a equivalente agrobiodiversidade. Trata-se de um modelo bastante convencional de oferecer sementes de variedades com a pretensão de que as mesmas sejam universalmente adaptadas” (ANA, 2006).
A concepção técnica que informa esses programas também está refletida nos fundamentos de duas legislações nacionais diretamente relacionadas ao tema das sementes agrícolas: a Lei de Sementes e a Lei de Cultivares. De acordo com a primeira, para serem comercializadas, as variedades devem ser reconhecidas por instituições de pesquisa e por comissões setoriais por cultura agrícola, espaços fortemente influenciados pelos interesses econômicos das empresas produtoras de sementes. Já a Lei de Cultivares marginaliza as sementes locais por meio do estabelecimento de exigências de estabilidade, uniformidade e homogeneidade genética dos genótipos para que os mesmos sejam registrados no sistema de proteção das variedades. Sendo as variedades crioulas portadoras de alta variabilidade genética – característica biológica, aliás, vantajosa, já que lhes proporciona maior plasticidade ecológica (isto é, maior resistência horizontal aos estresses ambientais) –, esses marcos normativos colocam-se como poderosos obstáculos para o reconhecimento e a promoção das mesmas em programas governamentais de fomento, crédito e seguro agrícola.
O zoneamento agrícola é um mecanismo empregado pelo Estado para condicionar o uso das variedades melhoradas em suas políticas. Elaborado pela Embrapa, o zoneamento define os riscos climáticos para as lavouras em cada município, indicando as melhores épocas de plantio e as cultivares recomendadas. Para acessar as políticas de custeio e de seguro das lavouras, os agricultores devem, compulsoriamente, seguir as recomendações oficiais. Como as cultivares recomendadas devem ser registradas no sistema de proteção de variedades, essa vinculação do pacote tecnológico ao zoneamento apresenta-se como um dos principais obstáculos ao plantio das variedades crioulas em lavouras financiadas e seguradas pelo Estado.
Além dos questionamentos relacionados à concepção técnica dos programas, duras críticas vêm sendo direcionadas ao fato de as sementes serem distribuídas diretamente às famílias agricultoras, numa lógica de individualização do público de- nominado de beneficiário. Esse mecanismo distributivista compromete as dinâmicas comunitárias de gestão da agrobiodiversidade amplamente capilarizadas no semiárido brasileiro, partindo da suposição, nunca explicitada, de que os agricultores não precisam guardar sementes de um ano para o outro, já que poderão acessá-las continuamente por meio de programas públicos.
A reedição de programas de distribuição de sementes por seguidos governos federais e estaduais revela o acentuado grau de desconhecimento por parte do Estado brasileiro das estratégias de manejo e conservação da agrobiodiversidade articuladas por meio de dinâmicas coletivas de gestão de bens comuns protagonizadas por agricultores e agricultoras e suas organizações locais. Além de contribuir para a erosão genética, para o aumento da vulnerabilidade dos sistemas produtivos às imprevisibilidades climáticas e para a crescente dependência a insumos externos, essas ações oficiais desativam as estratégias comunitárias de autogestão de recursos produtivos, criando as condições propícias para a reprodução de práticas clientelistas que estruturam os vínculos de dependência política das comunidades rurais com relação a setores oligárquicos tradicionais.
LUTANDO CONTRA A INVISIBILIDADE
As práticas sociais de uso e conservação da agrobiodiversidade no semiárido caracterizam-se pelo paradoxo de combinar onipresença com invisibilidade. Permanecem ativas apesar das fortes pressões econômicas, políticas e ideológicas que lhes negam a relevância estratégica que efetivamente possuem para a reprodução da agricultura familiar na região. Identificar e dar visibilidade a essas práticas foram condições necessárias para a ativação de um movimento social em defesa da agrobiodiversidade no estado da Paraíba. Importante marco nesse processo foi a realização, em 1996, de um diagnóstico participativo sobre a diversidade de feijões utilizada tradicionalmente pela agricultura familiar dos municípios de Solânea e Remígio, localizados no agreste paraibano. Esse exercício confirmou a existência de um significativo acervo genético sob o domínio das comunidades, chamando a atenção para a necessidade de ações articuladas voltadas à defesa e à conservação das sementes locais.
A continuidade dos esforços para a compreensão das estratégias locais de conservação e uso da agrobiodiversidade revelou a existência de sofisticados mecanismos que articulam práticas individuais e coletivas em um sistema de seguridade de sementes (ALMEI- DA; CORDEIRO, 2002). O fundamento desse sistema está na iniciativa das famílias de armazenarem sementes de um ano agrícola para o outro. Essa estratégia é assegurada e enriquecida pela rotina de troca de sementes entre famílias, uma prática social típica da reciprocidade camponesa, por meio da qual os materiais genéticos circulam livremente nas comunidades juntamente com os seus conhecimentos associados, isto é, com os saberes relacionados às qualidades intrínsecas a cada variedade local.
Ainda na década de 1990, os bancos de sementes comunitários (BSCs) presentes de forma dispersa em algumas comunidades do agreste paraibano foram identificados como elementos estruturais importantes na dinamização e na robustez dos sistemas de seguridade de sementes. Resultantes da ação do movimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na década de 1970, os BSCs exercem papel crucial na estabilização dos estoques locais de sementes frente aos riscos agrícolas associados à irregularidade climática na região. Funcionando também a partir de regras ancoradas no princípio da reciprocidade, os BSCs emprestam a seus asso- ciados volumes de sementes que deverão ser restituídos após a colheita com o acréscimo de pequena porcentagem, a fim de que o capital coletivo seja conservado. Além disso, os BSCs asseguram o acesso às sementes de forma autônoma (livre de relações clientelistas) e na hora certa para o plantio, ser- vindo como repositórios estratégicos para a conservação de variedades locais.
Compreender a complexidade inerente às práticas sociais de manejo da agrobiodiversidade foi essencial para que a AS-PTA em associação com outras organizações vinculadas à ASA-PB elaborasse uma estratégia de assessoria técnica, metodológica e política que permitisse aumentar a visibilidade e a escala social das mesmas. Por meio das dinâmicas de interação inter-regional promovidas pela ASA-PB, os grupos comunitários e microrregionais gestores dos BSCs criaram uma rede de 230 BSCs que marca presença atualmente em 61 municípios do estado, envolvendo aproximadamente 6.500 famílias agricultoras.
Foi no contexto de um encontro estadual da Rede de Sementes promovido pela ASA-PB que uma liderança sindical cunhou o termo sementes da paixão, exatamente para destacar os valores culturais associados ao patrimônio genético que extrapolam em muito a dimensão mercantil. A eloquência de outra liderança não deixa dúvidas sobre os múltiplos valores atribuídos a essas sementes:
A semente da paixão é aquela que realmente é da paixão: ela é boa, se adapta à nossa realidade e a gente gosta dela. A gente só se apaixona por aquilo que presta. (Joaquim de Santana – STR de Montadas-PB)
E, se as sementes são da paixão, é porque existem atores apaixonados responsáveis pela contínua regeneração desses valores culturais de forma integrada à renovação da genética incorporada nas sementes: são os guardiões das sementes da paixão.
A realização de Festas das Sementes da Paixão foi assumida pela ASA-PB como outra importante estratégia para dar visibilidade pública ao papel da agrobiodiversidade para que a agricultura familiar se desenvolva em convivência com o semiárido. Até o momento foram realizadas cinco festas mobilizando milhares de famílias de todas as regiões do estado.
INCIDÊNCIA SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS
Além de proporcionar ambientes fecundos para a troca de conhecimentos sobre práticas de manejo e conservação da agrobiodiversidade, a rede estadual de sementes exerce papel importante como espaço de análise crítica e de elaboração de propostas de políticas públicas relacionadas ao tema. Ao acumular capacidades de proposição e de incidência política, a ASA-PB tem contribuído para a geração de um conjunto de inovações nas políticas de sementes das esferas estadual e federal. Essas inovações institucionais caminham progressivamente no sentido do reconhecimento oficial não só das sementes da paixão, mas também do protagonismo das organizações de base da agricultura familiar e dos guardiões de sementes locais como gestores da agrobiodiversidade.
Cumpre destacar que os momentos críticos de seca foram decisivos nessa trajetória de avanço político-institucional. Mesmo o surgimento da ASA-PB, em 1993, coincide com um desses episódios marcantes de seca. Naquela ocasião, os movimentos sociais ocuparam a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) para protestar contra a tradição do Estado de atuar nas conjunturas de crise climática a partir de uma perspectiva exclusivamente emergencial, focada no conceito de combate aos efeitos das secas. A mobilização apresentou então propostas de medidas estruturantes concebidas segundo a noção de convivência com o semiárido. Foi nesse contexto que o governo Itamar Franco lançou uma Política de Bancos de Sementes, a primeira no Brasil a abrir espaço para essas estruturas locais na mediação das políticas de sementes implantadas pelo Estado. Embora as variedades locais não tenham sido distribuídas por meio daquele programa, essa iniciativa pioneira do governo federal foi essencial para a articulação da rede de BSCs na Paraíba e para a recomposição dos estoques dos bancos até então existentes.
A ASA-PB voltou a se mobilizar na seca dos anos 1998/1999, ocupando a sede da Secretaria de Agricultura do estado da Paraíba para cobrar a distribuição de 80 toneladas de sementes para a recomposição dos estoques dos bancos. Embora a manifestação tenha sido bem sucedida, mais uma vez as sementes distribuídas não foram de variedades locais. No entanto, já no ano seguinte, a partir da continuidade da pressão da ASA-PB, o governo do estado adquiriu sementes locais produzidas por agricultores com o intuito de devolvê-las à rede de BSCs. Mas havia um obstáculo normativo à plena efetivação da política: até aquele momento, a legislação nacional não reconhecia as sementes das variedades locais. Para contornar esse bloqueio normativo, o governo estadual empregou o artifício de adquirir as sementes locais como grãos e, a esse título, redistribuí-las às organizações da ASA-PB mediadoras da rede estadual de BSCs.
Logo em 2002, a Assembleia Legislativa da Paraíba aprovou uma lei que institui um programa de apoio a bancos de sementes comunitários por intermédio do qual a rede estadual mobilizou novos recursos materiais e conquistou legitimidade institucional. No entanto, a implementação de inovações mais progressistas nos programas de sementes governamentais teve que esperar pelo reconhecimento oficial das variedades locais, o que ocorreu com a promulgação da nova Lei de Sementes e Mudas (Lei n. 10.711/03). Resultante da incidência política de organizações vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), esse reconhecimento abriu caminho para o avanço qualitativo nas ações governamentais nessa área, já que, a partir desse momento, o obstáculo legal à inclusão das variedades crioulas nos programas oficiais de sementes deixou de existir.
Na mesma época, cultivava-se grande expectativa por inovações institucionais nesse campo em razão da instituição do Programa Fome Zero, anunciado como uma das prioridades políticas do recém-empossado governo Lula. Posteriormente, também no âmbito do Fome Zero, foi criado o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e, particularmente mais interessante, a modalidade denominada Compra da Agricultura Familiar com Doação Simultânea. Operada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), essa ação específica representou a primeira iniciativa governamental de aquisição de sementes de variedades locais. Além da compra direta dos agricultores, o programa tem por objetivo apoiar a multiplicação e a distribuição de sementes crioulas livres da contaminação por transgênicos.
A primeira compra de sementes crioulas pelo PAA ocorreu ainda em 2003, a partir de projetos celebrados entre a Conab e organizações vinculadas à ASA-PB. Desde então, a experiência de implementação do programa no estado ensinou que o objetivo de uma política dessa natureza não deve ser distribuir anualmente grandes volumes de sementes diretamente para as famílias agricultoras, como tem sido a praxe dos programas governamentais nesse campo. O regime de distribuição de sementes deve se adequar às necessidades do público a que se destina. No caso aqui apresentado, a maior demanda pela compra e distribuição simultânea das sementes ocorre nos anos climáticos ruins, quando os estoques dos BSCs se debilitam. Já nos anos considerados normais, a de- manda pela intervenção reguladora do PAA tem sido significativamente menor.
O breve histórico do funcionamento do programana Paraíba também confirma que o protagonismo na gestão do patrimônio genético-cultural incorporado nas sementes crioulas pode e deve ser assumido por organizações locais da agricultura familiar. O Estado, por sua vez, desempenha um papel essencial no sentido de apoiar o fortalecimento das capacidades de ação coletiva, funcionando simultaneamente como instrumento de redistribuição e regularização da oferta dos bens comuns empregados na agricultura. Apesar da demonstração de sucesso do programa na Paraíba e em alguns outros estados do Brasil (inclusive fora da região semiárida), essa iniciativa permanece operando como um nicho de inovação institucional ainda pouco internalizada por outros órgãos de governo. De forma geral, os programas de sementes governamentais continuam sendo orientandos pelo paradigma convencional de uso e manejo dos recursos genéticos agrícolas, embora declarem ter como objetivo gerar autonomia local, promover a segurança alimentar e nutricional e combater a miséria.
Em defesa da lógica distributivista dos programas de se- mentes convencionais, alguns gestores públicos alegam, em primeiro lugar, que as sementes distribuídas são de variedades validadas cientificamente para as condições da agricultura familiar no semiárido. Em segundo lugar, argumentam que, embora reconhecidamente efetiva, a dinâmica de redes sociais como a articulada pela ASA-PB não é capaz de operar em escala e alcançar o universo de famílias que necessita acessar sementes de qualidade para o plantio. Ambas as justificativas são coerentes com o paradigma da modernização e com o desenho institucional a ele correspondente: para universalizar os benefícios de suas políticas, o Estado busca soluções únicas e padronizáveis por meio de seus programas operacionais, cuja execução é atribuição exclusiva dos aparelhos governamentais em associação com a iniciativa privada, no caso, as empresas produtoras de sementes. A insistência nessa concepção se traduz em desperdício da experiência acumulada pelo próprio Estado quando, por meio do PAA, colocou-se como parceiro das organizações civis na construção de soluções diversificadas e ajustadas à enorme diversidade geoambiental e cultural presente no semiárido. Dois ensinamentos interdependentes dessa experiência permanecem sendo negligenciados: 1) a melhor opção técnica para a gestão dos recursos genéticos na agricultura é o uso social de ampla diversidade intraespecífica em cada região, e não o emprego generalizado de uma ou poucas variedades supostamente superiores às demais; 2) a partir de suas políticas, o Estado pode fortalecer a capacidade das organizações locais para manter o caráter dinâmico da agro- biodiversidade e gerir sistemas de seguridade que proporcionam o livre acesso a sementes de qualidade e no tempo certo de plantio para as famílias agricultoras.
Foi no contexto dos embates com gestores públicos responsáveis por programas oficiais de sementes, que a ASA- PB idealizou e propôs a realização de pesquisas voltadas à avaliação comparativa entre as variedades distribuídas pelo governo e as variedades das sementes da paixão. Alguns esforços iniciais nessa direção foram feitos em parceria com universidades locais, até que, em 2009, com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do projeto nacional de pesquisa em transição agroecológica da Embrapa (MP1), a ASA-PB estabeleceu parceria com a Embrapa Tabuleiros Costeiros, o que permitiu dar um caráter mais sistemático a essas pesquisas.
DIALOGANDO COM A MESMA LINGUAGEM
O estabelecimento de parcerias com instituições científico-acadêmicas apresentou-se como uma necessidade estratégica na luta da ASA-PB para demonstrar a consistência técnica e a viabilidade sócio-organizativa das práticas sociais de uso, manejo e conservação da agrobiodiversidade. A parceria com a Embrapa, principal organização do governo federal dedicada à pesquisa agrícola, surgiu na trajetória da ASA-PB como uma oportunidade ímpar para obter dados academicamente aceitos e ganhar legitimidade perante os gestores públicos responsáveis pela concepção e execução dos programas oficiais de sementes.
A questão central colocada pela ASA-PB à Embrapa era basicamente a seguinte: considerando as condições de produção da agricultura familiar no semiárido, são as sementes da paixão de fato inferiores às variedades melhoradas distribuídas pelo governo? Uma questão subsidiária referia-se às estratégias de conservação das sementes armazenadas: é de fato necessário empregar agrotóxicos no armazenamento das sementes ou os produtos naturais aplicados pelos(as) agricultores(as) são igualmente eficientes para proteger as sementes armazenadas? Um terceiro ponto atentava para a qualidade das sementes produzidas pelas comunidades e famílias agricultoras.
Para responder a essas questões, foram realizados oito ensaios de competição de variedades de milho durante três anos em diferentes regiões do estado. Também foram encaminhadas avaliações sobre técnicas de conservação de sementes armazenadas com produtos naturais e foram estabelecidos dez campos de produção de sementes nos quais foram realizadas práticas de seleção massal.
A ativa participação das comunidades e dos representantes das organizações envolvidas foi o grande diferencial metodológico entre os ensaios conduzidos pela pesquisa da ASA-PB e aqueles regularmente empregados para o desenvolvimento de variedades e híbridos comerciais. A pesquisa se iniciou com a realização de reuniões com representantes de todas as instituições parceiras, momentos em que foram definidas as variedades que seriam avaliadas, os locais de realização dos ensaios, bem como as formas de interação entre os pesquisadores profissionais e os(as) agricultores(as).
Por meio dessa participação, foram elencados os parâmetros valorativos de interesse coletivo, exercício que possibilita a superação do viés produtivista que orienta o melhoramento e as avaliações convencionais. Com base nessa concepção amplia- da de qualidade genética, as variedades foram avaliadas segundo as seguintes características: qualidade das espigas; qualidade dos grãos; sanidade e altura das plantas; quantidade de palha das plantas; período de florescimento; período de colheita; porcentagem de acamamento e quebra das plantas; desempenho quando em consórcio com outras culturas; espaçamento entre plantas e análise sensorial das variedades.
Os ensaios foram realizados em três regiões da Paraíba durante três anos consecutivos, sendo 2009 considerado um ano climático normal, 2010 um ano de poucas chuvas, e 2011 um ano com pluviometria muito acima da média. O desempenho produtivo das variedades locais foi sistematicamente superior ou equivalente ao das variedades melhoradas em todas as regiões e anos, confirmando que as sementes distribuídas pelos programas governamentais não oferecem as vantagens alegadas pelos gestores públicos (Gráfico 1). Os ensaios confirmaram também que as variedades distribuídas pelo governo apresentam melhor desempenho apenas em anos pluviométricos favoráveis (no caso, em 2011) e em solos de melhor fertilidade natural, duas condições que só excepcionalmente ocorrem combinadas nos agroecossistemas geridos pela agricultura familiar no semiárido.
Outra importante constatação da pesquisa refere-se ao fato de que as variedades das sementes da paixão são bem adaptadas às suas regiões de origem: as que apresentaram melhor desempenho na região da Borborema foram exatamente aquelas resgatadas na Borborema. A mesma tendência foi verificada nos ensaios conduzidos no Cariri, ou seja, os melhores desempenhos produtivos foram obtidos justamente pelas variedades caririzeiras.
Os ensaios também permitiram constatar que além do melhor desempenho na produção de grãos, as variedades locais produzem maior volume de biomassa forrageira quando contrastadas com as variedades distribuídas pelos programas públicos. Como os riscos de perda de safra no semiárido são elevados em razão da alta imprevisibilidade pluviométrica, uma boa produção de palhada nos roçados é uma característica altamente valorizada pelas famílias agricultoras na região. Ao desconsiderar essa peculiaridade de agroecossistemas que integram produção vegetal e animal em um todo orgânico, os programas convencionais de melhoramento genético de milho para a região buscam reduzir os riscos climáticos para a produção de grãos por meio do desenvolvimento de genótipos superprecoces, capazes de completar o ciclo biológico em períodos curtos, escapando assim de eventuais estiagens na fase de enchimento dos grãos. Essa foi a lógica que presidiu, por exemplo, o desenvolvimento da variedade Catingueiro, um dos materiais mais largamente distribuídos por programas públicos no semiárido. Em que pese ser um material apreciado por muitas famílias agricultoras, inclusive no Sul do Brasil, apresenta como contrapartida negativa a baixa produção de biomassa forrageira, o que explica o questionamento de agricultores das várias regiões do semiárido paraibano ao fato de os governos distribuírem poucas variedades e não valorizarem as variedades locais (Gráfico 2).
As pesquisas relacionadas à qualidade da armazenagem das sementes demonstraram a efetividade dos sistemas adotados pelos agricultores, com o uso de silos feitos de folha de flandres e garrafas Pet e o emprego de variados produtos naturais no controle de insetos-praga. Esses resultados com- provam que em sistemas descentralizados de abastecimento de sementes, como os dinamizados pela ASA-PB, dispensa-se por completo o uso de agrotóxicos, que são substituídos por métodos baratos e acessíveis às famílias e comunidades. Os campos de produção de sementes, por sua vez, funcionaram como bases pedagógicas para capacitar os grupos e comunidades articuladas à rede de sementes da ASA-PB no manejo de práticas de multiplicação e seleção das variedades.
Como afirmou um agricultor durante o seminário organizado para apresentar os resultados aos gestores públicos das esferas estadual e federal: A pesquisa comprovou aquilo que já sabíamos. De fato, o maior valor agregado da pesquisa foi utilizar os mesmos códigos de linguagem reconhecidos pelos gestores públicos para demonstrar a viabilidade técnica e social das estratégias de manejo e conservação da agro- biodiversidade adotadas pelas famílias agricultoras da região. A sabedoria camponesa estava ali sendo academicamente reconhecida. Junto com essa legitimação, novos conhecimentos foram produzidos, inclusive sobre formatos metodológicos inovadores para o estabelecimento de diálogos de saberes entre cientistas e agricultores. Essa troca de conhecimentos só foi possível por meio da interação horizontal entre a pesquisa institucionalizada e as organizações e redes da agricultura familiar mobilizadas pela defesa da agrobiodiversidade. A construção compartilhada de conhecimentos jogou luzes sobre as práticas sociais ocultadas por um paradigma científico que insiste em dar as costas à realidade empírica da existência da agricultura familiar. Exerceu, portanto, importante papel no apoio à luta da ASA-PB contra a invisibilidade das sementes da paixão e de seus guardiões. Foi com base nesse sentimento de empoderamento que as lideranças da rede de sementes da ASA-PB afirmaram em uníssono que não mais admitirão que as sementes da paixão sejam rebaixadas à qualidade de grãos pelos órgãos de governo.
NOVOS DESAFIOS
Ao reafirmar o papel estratégico das sementes da paixão e de seus guardiões locais para a promoção de estilos de desenvolvimento rural baseados no princípio da convivência com o semiárido, a ASA-PB permanece ativa no sentido de aprimorar o desenho institucional dos programas públicos de sementes. Um dos maiores desafios colocados para essa empreitada está relacionado ao fortalecimento de redes territorializadas capazes de assumir o protagonismo na gestão de sistemas de seguridade de sementes estruturados a partir de parcerias estabelecidas entre organizações da sociedade civil e órgãos governamentais. As capacidades para a gestão de recursos públicos já foi demonstrada pela ASA-PB por meio da execução de programas públicos voltados à implantação de infraestruturas hídricas em propriedades e comunidades rurais do semiárido paraibano. Um dos principais ensinamentos advindos dessa experiência é a importância do processo de mobilização social no aprimoramento das capacidades de ação coletiva em dinâmicas de desenvolvimento na esfera das comunidades rurais. Talvez seja esse o aspecto mais desafia- dor colocado pela experiência da rede de sementes da ASA-PB ao Estado.
Assegurar o acesso a sementes em quantidade, diversidade e qualidade para o universo da agricultura familiar do semiárido exige a superação do viés distributivista dos programas de sementes. Como comprovou a pesquisa realizada em parceria com a Embrapa, além de serem tecnicamente inadequados, tais programas não contribuem para o fortalecimento do capital social. A experiência acumulada na Paraíba demonstra que o Estado brasileiro pode exercer um papel decisivo para, em curto prazo, apoiar as organizações e redes da sociedade civil a construírem sistemas de seguridade de sementes que permitirão à agricultura familiar do semiárido aumentar sua resistência frente aos efeitos das mudanças climáticas, assim como fortalecer suas estratégias de segurança alimentar e nutricional e de geração de renda.
Paulo Petersen
coordenador-executivo da AS-PTA
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Luciano Silveira
assessor técnico da AS-PTA
[email protected]
Emanoel Dias
assessor técnico da AS-PTA
[email protected]
Amaury Santos
pesquisador da Embrapa Tabuleiros Costeiros
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Fernando Curado
pesquisador da Embrapa Tabuleiros Costeiros
[email protected]
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, P; CORDEIRO, A. Sementes da paixão: estratégias comunitárias de conservação de variedades locais no semiárido. 2. ed. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2002. 72 p.
ANA. Críticas e Propostas ao Programa Nacional de Sementes para a Agricultura Familiar do MDA/ SAF. Rio de Janeiro, 2006.
SOARES, A. C.; MACHADO, A. T.; SILVA, B. DE M.; WEID, J.M. von der. Milho Crioulo: conservação e uso da biodiversidade. Rio de Janeiro: Rede PTA, 1998.
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Revista V10N1 – Sementes ou grãos? Lutas para desconstrução de uma falsa dicotomia