Ghislaine Duque e Maria da Glória Batista de Araújo
Atualmente, muitos jovens enfrentam desafios para permanecer no meio rural. O grande desejo de ter uma vida melhor e estável incentiva muitos a deixarem suas origens. No entanto, a migração geralmente tem sido uma alternativa frustrada para a sobrevivência de jovens que saem de suas comunidades.
Essa realidade vem mudando a partir da revalorização do potencial da juventude camponesa na área de atuação do Coletivo Regional do Cariri, Seridó e Curimataú paraibano (ou apenas Coletivo), entidade que articula organizações de agricultores e agricultoras familiares camponeses presentes nessas regiões em defesa da agricultura familiar sustentável e segundo o princípio da convivência com o semiárido.
Este artigo se propõe a mostrar como os jovens se inserem na consolidação do território de abrangência do Coletivo, envolvendo-se nas mais variadas atividades com a consciência de que estão colaborando para o futuro da região. Essa, digamos, missão lhes dá estímulo e melhora sua autoestima, uma vez que passam a vislumbrar possibilidades concretas para levar uma vida digna ao praticarem uma agricultura em bases agroecológicas.
O CONTEXTO SOCIOAMBIENTAL
O desenvolvimento rural sustentável no semiárido constitui um enorme desafio pelas características naturais e sociais da região. A primeira questão que apontamos, já bem conhecida, está ligada às secas, que se caracterizam não apenas pela limitada pluviometria, mas sobretudo por sua irregularidade.
Mesmo nessas condições, a agricultura familiar continua sendo a atividade geradora de trabalho e renda para boa par- te da população rural ativa. É no semiárido que se encontra o maior número de estabelecimentos agrícolas familiares do Brasil. Entretanto, a estrutura fundiária é extremamente concentrada: 42% do número total de unidades familiares do país ocupam apenas 4,2% do total da área agrícola (Censo Agro- pecuário 1995/96). Para completar o quadro, as elites agrárias detêm as maiores cotas de poder, gerando dependência econômica e política das famílias pobres em relação ao acesso à terra, à água e à segurança e soberania alimentar.
Essa situação é particularmente desafiante no território do Cariri, Seridó e Curimataú paraibano. As condições edafoclimáticas são as mais extremas, a estrutura agrária está entre as mais concentradas e as organizações de produtores caracterizam-se por sua fragilidade e vulnerabilidade frente às estruturas do poder público municipal. Muitas famílias dependem ainda dos grandes proprietários para terem oportunidades de trabalho e favores diversos.
Em defesa da modernização no campo, o Estado brasileiro incentivou a expansão dos latifúndios de criação de gado na região nos anos 1970 e 1980. Nesse período, os grandes proprietários receberam enormes volumes de crédito subsidiado, intimamente vinculado à adoção de um pacote tecnológico que orientava para a compra de raças exóticas de animais (a raça holandesa, por exemplo), o plantio da algaroba e/ou do capim buffel. Sob o rótulo do reflorestamento, essa política gerou profundos e inúmeros efeitos negativos ao ambiente, uma vez que o acesso a esse tipo de crédito resultou na destruição de boa parte da biodiversidade da Caatinga.
O COLETIVO REGIONAL DO CARIRI, SERIDÓ E CURIMATAÚ PARAIBANO
O protagonismo da juventude se dá com muita força no Coletivo, organização cuja origem remonta aos anos 1980, quando as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) tiveram forte atuação na região. Seu foco era a evangelização, mas além da fé abarcava as dimensões da política e da ação sociotransformadora. Esse dinamismo foi acompanhado por segmentos progressistas da Igreja Católica, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) e de ONGs que organizaram grupos de evangelização, bancos de sementes comunitários, mutirões para construção e melhoria de reservatórios de água, etc. Essas ações foram se expandindo para comunidades rurais de vários municípios. Mesmo com a desarticulação das CEBs, a ação não parou. Segmentos da Igreja Católica local, o STR de Soledade e ONGs, como o Patac e a Pracasa, continuaram desenvolvendo atividades voltadas para melhorar a qualidade de vida dos camponeses, principalmente por meio da construção (ou melhoria) de equipamentos de armazenamento de água de chuva, a exemplo das cisternas de placas, da criação de Fundos Rotativos Solidários (FRSs) e de Bancos de Sementes Comunitários (BSCs).
Conforme as iniciativas de convivência com o semiárido se irradiavam, foi se configurando, no município de Soledade, um espaço de gestão participativa denominado Coletivo Municipal de Educação Solidária de Soledade e Entorno. Formado em 1998 por agricultores experimentadores e lideranças, sua primeira ação coletiva foi a gestão de recursos dos FRS.
Esse espaço de gestão participativa se ampliou à medida que comunidades rurais e famílias agricultoras assessoradas pelo Patac realizavam atividades de intercâmbio de experiências e de conhecimentos. Em 2004, essa rede se fortaleceu com o aumento da experimentação agroecológica orientada para valorizar as riquezas locais. Suas iniciativas foram sendo cada vez mais reconhecidas, tais como a disseminação de práticas de conservação e o uso dos recursos naturais (com ênfase no resgate e na valorização das sementes locais, assim como na produção e estocagem de forragem diversificada); captação da água de chuva e uso sustentável das águas para consumo humano e produção vegetal e animal; uso e conservação da biodiversidade local. São práticas até hoje fundamentais e estratégicas para a permanência das famílias e para o enfrentamento dos períodos de estiagem prolongada, mas, sobretudo, são formas de resistência e luta em defesa da cultura e do modo de vida camponês no semiárido.
É desse movimento de resistência e luta que foi se constituindo a identidade do Coletivo. Em alguns anos se agregaram progressivamente associações comunitárias, STRs, igrejas e entidades de apoio de aproximadamente 300 comunidades rurais de dez municípios do semiárido paraibano. Consolida-se, assim, um grupo para defender um projeto político e técnico que fortaleça redes locais de inovações agroecológica, contrapondo-se ao modelo que separa a agricultura da natureza.
O Coletivo também atua junto à Articulação do Semiárido Paraibano (ASA Paraíba), à Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil) e à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o que permite que as famílias participem de debates e ações num nível muito mais amplo. Esse processo de organização é marcado pela participação e interatividade dos jovens de várias comunidades rurais.
TEMAS MOBILIZADORES
Em 2006, a partir de um processo de formação e reflexão sobre as principais ações estratégicas que estavam mobilizando os agricultores e agricultoras e suas organizações na região, foram identificados três temas mobilizadores: água; criação animal; e sementes, plantas e frutas. Foram criadas então suas respectivas comissões temáticas, visando melhor organizar a gestão participativa do Coletivo e contando com forte participação dos jovens.
Cada comissão se reúne uma vez por mês, promovendo encontros itinerantes nas comunidades para planejar e monitorar as ações, num ambiente de diálogo entre agricultores(as), lideranças e técnicos(as). Nessas oportunidades são aprofundadas questões que ameaçam a agricultura familiar camponesa, tais como: transgênicos, agrotóxicos e transposição das águas do rio São Francisco. Essas reuniões também tratam de assuntos como diversificação agrícola e dos criatórios; produção de alimentos saudáveis para o autoconsumo; resgate, conservação e uso de variedades locais – as sementes da paixão; gestão sustentável das águas; produção e estoque diversificado de forragem; acesso aos mercados locais; etc.
O ENVOLVIMENTO DOS JOVENS
Os jovens começaram a se envolver em compromissos sociais a partir de seu engajamento na pastoral. Hoje, assumem responsabilidades nas comissões temáticas do coletivo, participando de suas reuniões de avaliação e planejamento. Há também representantes dos jovens integrando a coordenação do Coletivo, que tem o papel de articular as ações promovidas, assim como de representá-lo institucionalmente.
Mas os jovens não deixaram de contribuir nas suas comunidades e municípios, nos sindicatos, nas paróquias e, finalmente, na ASA. O papel deles nas diversas instâncias organizativas do Coletivo consiste em mobilizar outros jovens e a comunidade em geral, monitorar atividades e levantar dados (número de bancos de sementes, por exemplo), contribuir na elaboração de estratégias para aperfeiçoar os processos de formação e desenvolver atividades específicas, como experimentação ou beneficiamento de frutas.
Na Comissão Água, por exemplo, os jovens assumem responsabilidades na coordenação e também como instrutores nas oficinas de gerenciamento de recursos hídricos. Na Comissão Criação Animal, acompanham as atividades de formação e monitoram a produção, o beneficiamento e os estoques de forragens armazenados em silos e fenos, bem como o número de comunidades e de famílias envolvidas nessas atividades. Já na Comissão Sementes, Plantas e Frutas, dedicada ao manejo sustentável da biodiversidade, contribuem para o resgate de variedades de sementes locais que foram selecionadas e cultivadas por várias gerações de agricultores.
Nos últimos três anos, aliás, os jovens têm desempenhado papel expressivo no processo de formação sobre a recuperação e a valorização das sementes da paixão e, ao mesmo tempo, têm atuado para construir uma consciência coletiva crítica e ativa frente às iniciativas que põem em risco as variedades locais e a biodiversidade nativa. Na prática, dedicam-se ao levantamento e inventário das sementes e das plantas da caatinga, sistematizando conhecimentos sobre seus diversos usos. Nessa área de atuação, o uso e a conservação das plantas medicinais é um campo particularmente importante; os jovens participaram da identificação de mais de 200 espécies usadas na prevenção e no tratamento de doenças das famílias e dos rebanhos.
Além disso, estão identificando e mapeando os guardiões do patrimônio genético que conservam raças de animais ou plantas raras. Nesse processo, foram identificadas 117 guardiãs e guardiões de mais de 90 espécies de plantas cultivadas, sendo 51 de plantas medicinais e frutíferas. Identificaram também três guardiões e guardiãs de raças animais que atualmente estão sob risco de extinção na região.
Outra frente de atuação dos jovens é o beneficiamento e a comercialização da produção. Sete grupos, constituídos principalmente por jovens e mulheres, estão valorizando frutas nativas e naturalizadas, tais como umbu, caju e acerola, para a produção de polpas, doces, geleias, sucos e compotas. Essa produção beneficiada destina-se tanto ao consumo das famílias como à venda para o mercado local e para o mercado institucional por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
IGUALDADE DE GÊNERO E PERMANÊNCIA NO CAMPO: TEMAS PARA A JUVENTUDE
Em meio aos esforços do Coletivo para promover a igualdade de gênero, a participação dos jovens tem sido fundamental, um vez que mais da metade deles é composta por mulheres. Seu papel vem sendo reconhecido por todos, pois estão comprovando sua capacidade de atuar na organização, articulação, construção e condução de um processo de desenvolvimento sustentável na região. Dessa forma, no interior de suas famílias, embora ainda predomine a dominação masculina dos adultos, as intervenções dos jovens articulados à dinâmica do Coletivo já ganham destaque.
Entretanto, resta ainda o desafio de fortalecer o protagonismo juvenil nas escolas, que sequer valorizam a cultura da agricultura familiar. Nesse espaço, questionam-se as perspectivas para a permanência dos jovens no campo em razão das limitadas dimensões das propriedades (consequência da partilha por herança) e da falta de investimentos públicos que possibilitem alternativas de trabalho e renda.
Mas muitos já perceberam que as inovações técnicas orientadas pela perspectiva agroecológica permitem valorizar ao máximo os espaços reduzidos das parcelas e, diante disso, vários jovens declararam querer permanecer no campo.
Por fim, é importante frisar que, ao participarem ativa- mente da construção de um território agroecológico, os jovens expressam e reafirmam a existência e a continuidade histórica da agricultura familiar camponesa, assim como as capacidades locais de conduzir projetos de desenvolvimento local e de promoção da Agroecologia no semiárido paraibano.
Ghislaine Duque
professora de sociologia, pesquisadora do CNPq e membro da diretoria do Patac
[email protected]
Maria da Glória Batista de Araújo
coordenadora do Patac
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Baixe o artigo completo:
Revista V8N1 – O protagonismo da juventude no semiárido: a experiência do Coletivo Regional do Cariri, Seridó e Curimataú (PB)