Natal João Magnanti
A agricultura familiar de Santa Catarina tem sido considerada um modelo que deu certo em função dos resultados econômicos, da estrutura fundiária e social, bem como pela organização dos agricultores em forma de cooperação agrícola. Contrariando essa percepção consagrada, tem-se verificado nas últimas décadas o avanço das unidades de produção vegetal e animal especializadas em detrimento dos sistemas compostos por policultivos associados a criações mantidos pela agricultura familiar. A produção industrial de suínos, aves e fumo vem trazendo consequências nada salutares para o meio ambiente e, comprovadamente, vem excluindo milhares de famílias agricultoras da atividade produtiva. Além disso, a crescente litoralização da população de Santa Catarina, assim como a masculinização e o envelhecimento da população rural, chamam a atenção para a necessidade de revisão de conceitos e ações por parte do poder público e das entidades da sociedade civil que interagem com o meio rural catarinense.
Nesse mesmo contexto de acirramento da crise socioambiental no meio rural catarinense, a temática das mudanças climáticas vem adquirindo evidência crescente. Fenômenos como o ciclone Catarina que abalou o sul do estado, as cíclicas e cada vez mais frequentes secas no oeste, bem como a dimensão sem precedentes das enchentes no Vale do Itajaí são a prova cabal de que o clima está sofrendo transformações. Já existe um amplo consenso científico de que essas alterações vêm sendo provocadas pela ação humana sobre a biosfera e que a mitigação do aquecimento global exige profundas mudanças nos padrões de produção e de consumo das sociedades modernas.
Além das mudanças nos padrões climáticos globais, o desmatamento e a subsequente ocupação das áreas pela agricultura convencional que ocorreram no oeste e no sul de Santa Catarina contribuíram para que fenômenos como os vendavais se convertessem em ciclones e que os períodos de estiagem se prolongassem e passassem a ser caracterizados como secas. Embora as cheias no Vale do Itajaí sejam registradas desde o período colonial, o que chama atenção nos dias de hoje é a intensidade e a frequência com que vêm ocorrendo.
No quadro de crise generalizada do modelo de desenvolvimento vigente, a emergência dos debates sobre mudanças climáticas pode servir como oportunidade para a explicitação da inviabilidade econômica, ecológica e social dos padrões tecnológicos da Revolução Verde, bem como para a disseminação de propostas alternativas que vêm sendo construídas no estado há algumas décadas a partir de iniciativas locais.
A AGROECOLOGIA COMO PARADIGMA DE UMA NOVA MATRIZ DA AGRICULTURA FAMILIAR NO ESTADO DE SANTA CATARINA
Partindo do pressuposto de que “o novo nunca vive sem o velho” e de que a Agroecologia fundamenta-se no conhecimento local, podemos afirmar que uma interessante opção para a revitalização da agricultura familiar é a manutenção de tradições já consolidadas, tais como policultivos, associativismo e cooperativismo, agroindustrialização artesanal, entre outros aspectos da nossa cultura rural. Dessa forma, é possível e desejável preservar os aspectos positivos encontrados no modus vivendi da agricultura familiar catarinense e aliar um novo paradigma, que é justamente a Agroecologia, para superar a falsa contradição entre produção de alimentos e preservação ambiental, contribuindo para a adaptação às mudanças climáticas globais.
É bem verdade que o desequilíbrio que ocorre em escala global não pode ser freado pelo que se pode fazer em um estado pequeno como Santa Catarina, que possui tão-somente 1,13% da superfície do Brasil. Porém, uma atitude propositiva pode ser instigadora para o desencadeamento de ações similares em outros contextos do Brasil e do mundo. É nesse cenário que a Rede de Agroecologia do Território Serra Catarinense se insere.
Na última década, as entidades que compõem a Rede de Agroecologia do Território têm sido proponentes de projetos e protagonistas de ações conjuntas ou individuais que visam promover e consolidar a Agroecologia como meio e modo de vida para a agricultura familiar. Esse trabalho se traduz em sistemas manejados segundo os princípios agroecológicos, que emitem menos gases de efeito estufa, sequestram esses mesmos gases da atmosfera e ainda mitigam os impactos causados por eventos climáticos extremos. Esses efeitos positivos são obtidos por meio da diminuição drástica do uso de combustíveis fósseis, da eliminação de adubos nitrogenados sintéticos, assim como pelo manejo cuidadoso do solo que, com isso, aumenta seu estoque de carbono. Além desses fatores, a convivência de várias espécies por unidade de área, em múltiplos estratos, aumenta a biomassa dos sistemas.
Da porteira para fora, essas experiências têm sido construídas no sentido de promover o desenvolvimento de mercados locais que, além de possibilitar relações solidárias e de confiança mútua entre produtores e consumidores, evitam o transporte dos alimentos a grandes distâncias, diminuindo o consumo de combustíveis e a emissão de carbono.
VALORIZAÇÃO SOCIOCULTURAL DOS PRODUTOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE E A MITIGAÇÃO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
A experiência de diversos projetos e ações tem demonstrado que é possível promover processos de desenvolvimento e ao mesmo tempo melhorar as condições ambientais das propriedades familiares, fazendo com que, inclusive, possam se adequar à legislação ambiental vigente. Para tanto, é necessário um trabalho continuado de assessoria técnica e a criação de políticas públicas apropriadas para a reconversão agroecológica.
A Agência de Cooperação Internacional da Igreja Católica Alemã (Misereor), por exemplo, com apoio igualmente decisivo da Diocese de Lages, há 26 anos vem apoiando projetos de desenvolvimento agroecológico no Território da Serra Catarinense. Mais recentemente, o Ministério do Meio Ambiente, por intermédio do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e do Programa de Projetos Demonstrativos (PDA), vem contribuindo para a implantação de ações de promoção de sistemas agroflorestais. Outro importante agente dos últimos anos tem sido o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) que, através da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) e da Secretaria de Agricultura Familiar (SAF), vem aportando recursos para implementar ações de desenvolvimento sustentável. Já o Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vêm auxiliando nos processos de comercialização da produção agroecológica dentro e fora do território. O conjunto de projetos implantados tem contribuído para a reconversão agroecológica de centenas de propriedades da agricultura familiar.
A partir disso, é possível contabilizar um conjunto bastante expressivo de exemplos de boas práticas ambientais, mitigadoras das mudanças climáticas, realizadas pelos agricultores familiares agroecologistas do território. Entre elas, destacamos:
1) De 2008 até o fim de 2009, serão plantadas cerca de 50 mil mudas de espécies nativas para aumentar a diversidade dos quintais agroflorestais, implantar quebraventos e ampliar a mata ciliar e a proteção de fontes.
2) Estão sendo conduzidas ações de agregação de valor sociocultural e econômico dos produtos da Floresta Ombrófila Mista. Um dos exemplos nesse sentido é o processo em andamento voltado para a Indicação Geográfica do Pinhão. Desde a safra 2005/06, a Cooperativa Ecológica Ecoserra realiza a comercialização de pinhão e outros produtos agroflorestais, embora ainda de forma tímida, considerando o potencial existente (ver Quadro).
4) Em busca de uma melhor inserção comercial, a Cooperativa Ecoserra já vende aproximadamente R$ 1,5 milhão em produtos agroecológicos para vários tipos de mercados. O desafio é ampliar e qualificar a atuação nesses mercados já conquistados e ingressar em novos nichos, inclusive podendo contribuir para a criação de uma nova matriz de abastecimento alimentar para a população rural e urbana nas próximas décadas, que seja fundada em circuitos curtos de comercialização de produtos da agrobiodiversidade.
5) Na área da agroindustrialização, está em andamento um projeto de beneficiamento do pinhão e de outros produtos agroflorestais no município de Urubici. A agroindústria será construída em um terreno público na comunidade de São Pedro e contará com recursos públicos para as obras e para a aquisição dos equipamentos de processamento. Além disso, o Movimento Slow Food, por meio da Região do Vêneto, fará uma doação que será investida na criação e impressão de rótulos e embalagens da linha de produtos oriundos da agroindústria do pinhão.
BUSCANDO INSPIRAÇÕES E SOLUÇÕES
Sabemos que casos isolados não têm o poder de afetar positivamente o clima, diminuindo os impactos do aquecimento global sobre a sociedade em geral e a agricultura em particular. Porém, sabemos também que exemplos como os aqui descritos não são uma particularidade da Serra Catarinense. Portanto, como dito anteriormente, o desenho de agroecossistemas com base nos princípios agroecológicos, ainda que em escala reduzida, pode ser uma estratégia decisiva para a geração de referências inovadoras que permitam que a agricultura possa dar sua parcela de contribuição para mitigar o problema. Dessa forma, ao adaptarem os agroecossistemas a esta nova dinâmica do clima, os agricultores poderão reduzir o impacto sobre o conjunto da sociedade.
Natal João Magnanti
engenheiro agrônomo, mestre em Ciências do Solo
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Revista V6N1 – Oportunidades e desafios para a agricultura familiar da Serra Catarinense no contexto das mudanças climáticas