Carlos Magno Morais, Paulo Pedro de Carvalho e Joseilton Evangelista de Sousa
O Centro Agroecológico Sabiá, o Caatinga e a Diaconia, ONGs que atuam no semiárido dos estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte, tomaram a iniciativa de sistematizar a percepção de agricultores e agricultoras familiares com quem trabalham sobre os efeitos das mudanças climáticas em suas vidas e sobre como eles vêm fazendo para se adaptar a elas.
Essa iniciativa, realizada em 2007, foi denominada Jornada de Sistematização e envolveu as equipes técnicas das entidades num processo participativo, durante o qual foram visitadas e entrevistadas 18 famílias. Os resultados da pesquisa foram posteriormente apresentados em duas publicações: a Agenda da Parceria 2008 e o II Caderno de Experiências Agroecológicas: agroecologia e mudanças climáticas.
As duas publicações tornaram-se instrumentos pedagógicos utilizados por essas instituições nos processos de construção de conhecimentos junto às famílias agricultoras e suas organizações. Atualmente, já fazem parte dos materiais que subsidiam as atividades de planejamento e implementação do Plano de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN Brasil) e do atual processo de elaboração dos Planos de Ação Estaduais de Combate à Desertificação (PAEs).
Este artigo sintetiza as principais conclusões desse esforço interinstitucional. Com base nas experiências concretas das famílias, destacamos algumas propostas que podem contribuir para a construção de sistemas produtivos familiares mais resilientes no semiárido brasileiro.
A VIVÊNCIA CONCRETA DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
“Se não houver uma mobilização por parte dos governantes para melhorar a região com tecnologias de armazenamento de água, dando condições de trabalho para muitas famílias, ela pode- rá virar um deserto, com as pessoas indo morar nas cidades.”
O depoimento do sr. Oliveiros Costa da Silva, agricultor residente na comunidade de São Pedro, município de São José do Egito (PE), explicita a gravidade atribuída pelos agricultores locais às alterações nos padrões climáticos observadas em suas lidas cotidianas com a natureza.
De fato, as mudanças climáticas estão sendo sentidas com cada vez maior intensidade, em particular quando interferem nos meios de vida da agricultura familiar. Constata-se, por exemplo, uma acentuação das dificuldades para a produção devido ao aumento na escassez e na irregularidade das chuvas, à elevação das temperaturas e à perda da fertilidade dos solos.
João Batista e sua esposa Iracema, da comunidade de Saco Verde, em Trindade (PE), são categóricos ao afirmar que: “A quentura do sol está muito maior e chega a queimar as folhas de fruteiras. As chuvas estão cada vez mais descontroladas, estragam o solo e não mantêm a terra molhada durante todo o período de cultivos temporários. A gente percebe um grande descontrole no clima, especialmente de 2000 para cá.”
Apesar dos avanços dos sistemas de previsão meteorológica, muitos agricultores já não depositam tanta confiança nos mesmos, já que, nos últimos anos, têm sido surpreendidos pelas mudanças bruscas do clima e pela irregularidade nas chuvas.
“Tem alguns meses que chove mais que outros. A má distribuição de chuvas vem aumentando. Por exemplo, em janeiro de 2006, choveu pelo inverno todinho, enquanto que fevereiro, abril e maio foram secos, só vindo a chover em junho e julho”, relata o agricultor Antonio Sabino, do município de Santa Cruz da Baixa Verde (PE).
Mesmo os indicadores biológicos (floração de plantas nativas, comportamento de insetos e animais silvestres e domésticos) e astrológicos (posição de constelações, surgimento da lua nova, observação da lua cheia, etc.), que são tradicionalmente empregados para prever as chuvas, já não vêm sendo efetivos. “Antes, se a formiga trabalhasse de dia, era sinal de chuva. Hoje, ela trabalha de dia e de noite e o ano é seco”, relata o agricultor Luiz Morato, do município de Flores (PE).
EFEITOS DIFERENCIADOS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Atualmente, existe um conjunto expressivo de famílias agricultoras na região que vêm inovando nas formas de gestão técnica de suas propriedades a partir da incorporação de práticas coerentes com o princípio da “convivência com o semiárido”. A revitalização da chamada cultura de estocagem, por exemplo, realimenta uma estratégia tradicional dos agricultores na região. Por meio da estocagem de determinados recursos essenciais para a reprodução das famílias que são produzidos nos períodos chuvosos, tais como alimentos para o consumo familiar, forragens para os animais, sementes e água, os mesmos tornam-se disponíveis para o uso nos períodos secos, estabilizando a oferta durante o ano e entre os anos.
Também associado ao espírito da convivência com o semiárido está o fato de que muitas famílias vêm se conscientizando da importância da conservação e recuperação da caatinga. O agricultor Oséias Ramalho, do município de Caraúbas (RN), por exemplo, alega que: “Hoje eu tenho consciência de que a terra é um organismo vivo. Enxergo que as plantas existentes em meus cajueiros e a mata nativa são minhas aliadas. Se não mudarmos o jeito de pensar e agir, o sertão vai virar deserto, pois só temos extraído do meio ambiente e não se repõe nada.”
Na mesma linha de raciocínio, Geraldo Neto, agricultor da comunidade de Caiçara, Umarizal (RN), diz que: “Nossas plantas continuam a sofrer com a seca, mas agora que sabemos que a mudança no clima é uma realidade devemos colocar em prática o que aprendemos sobre o manejo de plantas e animais no semiárido como uma coisa necessária para melhorar nossas condições de vida.”
Adão de Jesus Oliveira, agricultor residente na Agrovila Nova Esperança, em Ouricuri (PE), tendo aprendido com a natureza semiárida, optou por adotar a agrofloresta como forma de produção sustentável de alimentos e forragem. Além disso, implantou mecanismos de estocagem de alimentos, forragem, água e sementes em sua propriedade. Atualmente, sua experiência tem sido referência para intercâmbios com outras famílias do Sertão do Araripe e de outras regiões.
O agricultor João Ribeiro, do município de Bom Jardim (PE), também vem desenvolvendo a prática agroflorestal e ressalta os benefícios dela para a sua família e para a natureza. “É preciso ter consciência de melhorar cada vez mais para mudar a situação, combatendo de todas as formas o aquecimento global, plantando mais árvores. Já percebo essa mudança no meu dia-a-dia, pois quando estou trabalhando numa área sem planta o sol é mais forte. E, quando estou numa área de agrofloresta, é mais agradável.”
A família de dona Teresa de Oliveira, também do município de Bom Jardim (PE), juntou a criação animal e a agrofloresta. Com uma grande diversidade de frutas e plantas nativas, beneficia a produção fazendo a ciclagem de todos os nutrientes produzidos dentro da propriedade. Além disso, está articulada a um processo de comercialização em uma feira agroecológica em Recife. Para dona Teresa: “A gente vai no roçado e traz uma macaxeira, já tem o ovo e a galinha, tem o leite e o queijo e muita fruta, tudo do nosso sítio. Por isso a gente não precisa comprar nada.”
Já a família de João Batista e Iracema, de Trindade (PE), tem como principal atividade a criação de abelhas. Segundo eles, a apicultura tem ajudado na renda e na alimentação da família, além de têlos ensinado a melhor se organizar para manejar bem os recursos da propriedade. Com isso, preservam a mata de caatinga, empregam práticas de conservação de solo e água e diversificam os cultivos. A conjugação dessas práticas tem garantido boas colheitas e um ambiente mais saudável, mesmo nos anos de maior escassez de chuvas.
Essas famílias estão descobrindo, na prática, que seus sistemas de produção estão mais resistentes às mudanças climáticas, como observa seu Antônio Alves, do município de Triunfo (PE): “Com as práticas agroecológicas percebe-se a melhoria da fertilidade do solo, o aumento da diversificação de plantas e o surgimento de animais que estavam quase extintos.”
Pela dimensão e expressão das estratégias atualmente existentes, que apontam para uma convivência digna com as condições de semiaridez, podemos afirmar que o desenvolvimento sustentável, com base na agricultura familiar, é possível. Entretanto, a mobilização e a organização social são elementos indispensáveis para que experiências como as aqui relatadas se disseminem a partir do apoio decisivo de políticas públicas.
QUE CAMINHO SEGUIR?
A agricultura familiar agroecológica tem prestado grande serviço ambiental no que se refere à conservação de solos, à preservação de espécies vegetais e ao manejo equilibrado dos agroecossistemas. Tais serviços sempre foram considerados de extrema importância para a natureza, mas nunca são valorados economicamente. Infelizmente a agricultura familiar não recebe os incentivos necessários para que se afirme, perante a sociedade, como a base social de um modelo de desenvolvimento sustentável capaz de assegurar a produção de alimentos e a oportunidade de trabalho e renda para milhões de pessoas. Nesse contexto, e inspirados no que pudemos colher da percepção dos agricultores e agricultoras entrevistados, elencamos os seguintes desafios:
- Recompor paisagens agrícolas a partir da prática da agricultura familiar agroecológica por meio de uma política de reforma agrária, assessoria técnica e crédito para famílias agricultoras.
- Tornar os sistemas de produção mais estáveis e resilientes por meio do uso de práticas agroecológicas de produção: diversificação de cultivos; conservação de cobertura morta e viva do solo; eliminação do uso de agrotóxicos das queimadas e dos desmatamentos; preservação das plantas nativas; conservação de fontes de água.
- Desenvolver um mecanismo de pagamento dos serviços ambientais prestados pela agricultura familiar agroecológica, que vem desempenhando funções na conservação da biodiversidade e da agrobiodiversidade, das matas ciliares, das nascentes, bem como na manutenção de sistemas pouco emissores de gases de efeito estufa que têm a capacidade de, ao mesmo tempo, sequestrar e concentrar o carbono na biomassa.
- Alcançar o mais rápido possível um nível de complexidade da agrobiodiversidade dos sistemas familiares que garanta uma alta capacidade de resistência e resiliência às perturbações climáticas, gerando referenciais para a construção de políticas públicas e distribuindo benefícios sociais, econômicos, culturais e ambientais a toda sociedade.
Carlos Magno Morais
médico veterinário, técnico do Programa Social do Centro Agroecológico Sabiá
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Paulo Pedro de Carvalho
engenheiro agrônomo, coordenador do Programa de Políticas Públicas do Caatinga
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Joseilton Evangelista de Sousa
técnico em agropecuária e coordenadorgeral do Programa de Apoio à Agricultura Familiar de Diaconia
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Referências Bibliográficas
SABIÁ; DIACONIA; CAATINGA. II Caderno de Experiências Agroecológicas: agroecologia e mudanças climáticas. Recife, 2008.
______. III Caderno de Experiências Agroecológicas: agroecologia transforma paisagens desertificadas. Recife; 2009.
ALMEIDA, S. G; FERNANDES, G. B. Sustentabilidade econômica na transição agroecológica: estudo de caso em um sistema familiar no semiárido brasileiro. Rio de Janeiro: ASPTA, 2003.
TEARFUND/DIACONIA (2008). Pesquisa incorporando dentro do cotidiano a adaptação à mudança climática em planejamento de gestão de recursos hídricos: uma política de informação com ação prática. Recife: Tearfund/Diaconia, 2008 (mimeo).
Baixe o artigo completo:
Revista V6N1 – Percepções e reações frente às mudanças climáticas no semiárido brasileiro