Natal João Magnanti
A Rede Ecovida de Agroecologia foi criada em 1998 a partir da necessidade de congregar esforços e dar maior consistência política ao movimento agroecológico do Sul do Brasil. São agricultores(as), técnicos(as), consumidores(as) e comerciantes unidos em associações, cooperativas, ONGs e grupos informais que têm por objetivo organizar, fortalecer e consolidar a agricultura familiar ecológica da região.
A Rede Ecovida é formada por núcleos regionais, também chamados de nós, que buscam, em regiões geográficas determinadas, promover a troca de informações, credibilidade e produtos (Santos, L.C.R; Fonseca, M.F. 2004).
Historicamente, a comercialização tem sido um gargalo para a expansão da Agroecologia. Normalmente existe dificuldade em manter os mercados locais abastecidos com diversidade, quantidade e qualidade durante o ano todo. Assim sendo, um grupo de instituições de agricultores familiares agroecológicos e algumas entidades de assessoria tomaram a iniciativa de se articular para resolver essa limitação. A partir do trabalho coletivo dessas organizações foi criado o Circuito Sul de Circulação de Alimentos da Rede Ecovida de Agroecologia.
OS PRIMEIROS PASSOS DO CIRCUITO
Em meados de 2006, a Cooperativa Ecoserra de Lages (SC), a Associação Regional de Cooperação e Agroecologia (Ecoterra) de Erechim (RS), a Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia (Aopa) de Curitiba (PR) e a Associação Cooperafloresta de Barra do Turvo (SP) se articularam para desenvolver a proposta de um sistema de comercialização baseado nos princípios da economia solidária e da Agroecologia. Essa iniciativa deu seqüência a encontros realizados anteriormente em Chapecó (SC), envolvendo dezenas de organizações vinculadas à Rede Ecovida de Agroecologia e a outras instituições promotoras da Agroecologia no Sul do Brasil, para debater e encaminhar uma proposta conjunta de comercialização. A partir dessa idéia original, o grupo realizou diversas rodadas de reuniões, assumindo o desafio de conduzir a discussão teórica e, ao mesmo, tempo avançar na efetivação de estratégias comerciais para o escoa- mento de alimentos agroecológicos. Dessa forma nasceu o Circuito Sul de Circulação de Alimentos da Rede Ecovida que, atualmente, conta com a participação de entidades dos três estados do Sul e de São Paulo (ver tabela 1).
ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO CIRCUITO
O circuito funciona com base em sete estações-núcleos e dez subestações. Seu sistema de gestão é enxuto e se fundamenta em reuniões mensais que ocorrem em rodízio nas estações ou subestações. Essas reuniões vêm sendo promovidas regularmente desde 2006, por ocasião da instituição do circuito. Esses encontros têm por objetivo o aprimoramento das políticas que regem o circuito, bem como a realização de planejamento e monitoramento das atividades e a negociação dos preços praticados. Para tanto, são reservados momentos específicos para a reflexão e debate dos princípios funcionais do circuito, para a definição dos planos operacionais e para o acerto de contas das transações realizadas no período entre as organizações.
Desde as primeiras vendas, alguns princípios gerais orientaram o sistema e conferiram a ele um caráter diferencial com relação aos mecanismos convencionais de acesso aos mercados. Em primeiro lugar, para integrar o circuito, é necessário que os alimentos ofertados para a comercialização sejam produzidos ecologicamente e que estejam certificados com selo da Rede Ecovida de Agroecologia. Também devem ser necessariamente oriundos da agricultura familiar, sendo produzidos em sistemas diversificados que assegurem alto nível de segurança alimentar para as famílias produtoras. A economia da agricultura familiar é assim concebida como o somatório da produção destinada ao auto- abastecimento das famílias e aos mercados. Nesse sentido, o enfoque comercial que rege o sistema difere das lógicas convencionais, privilegiando a segurança alimentar de produtores e consumidores.
Um segundo princípio norteador do sistema determina que as organizações que vendem devem se com- prometer também a comprar produtos de outras organizações do circuito. Esse procedimento garante o intercâmbio de produtos entre os núcleos regionais, o que permite a ampliação da diversidade de mercadorias ofertadas nos diferentes mercados locais: feiras, famílias agricultoras sócias da Rede Ecovida, mercados institucionais, entre outros. Assim concebido, o sistema favorece ainda a redução dos custos com frete, na medida em que os caminhões sempre viajam carregados entre as estações. O mecanismo de compra e venda entre estações permite também a menor circulação de dinheiro, já que em muitos casos ocorre simplesmente a troca de produtos. Os recursos monetários são empregados nessas situações apenas para cobrir eventuais diferenças de valor na transação.
A política de comercialização solidária segue também o princípio da justiça e da transparência na valoração dos produtos, sendo necessário avaliar periodicamente os critérios para a formação dos preços. Para tanto, consideram-se todas as etapas do processo produtivo, observando essencialmente que o trabalho das famílias agricultoras seja justamente remunerado e que, ao mesmo tempo, os produtos sejam acessíveis aos consumidores.
Para garantir a transparência e a participação efetiva nesse processo, as organizações que realizam a comercialização criaram planilhas em que apresentam todos os custos envolvidos nessa atividade. Dessa forma, a composição de preços praticados em cada núcleo é conhecida por todos, permitindo que haja debates sobre formas de racionalização dos custos. Além desse sistema entre as organizações, cada estação-núcleo deve estabelecer com os agricultores a ela articulada um processo de debate e de definição de política de preços.
O sistema de gestão e organização das estações também prevê que haja uma instituição responsável por cobrir os custos operacionais. Uma pessoa de contato em cada estação se encarrega de levantar os pedidos e as ofertas de produtos e a passar essa informação ao sistema em datas pré-definidas de forma a planejar as rotas dos caminhões. É também atribuição dessa pessoa avaliar a qualidade dos produtos recebidos e ofertados ao circuito.
Até o momento o circuito é constituído por três grandes rotas articuladas por dez núcleos da Rede Ecovida:
a) Erechim–Curitiba: tem uma extensão de 1.130 km e envolve 200 famílias agricultoras;
b) Lages–Curitiba–São Paulo: tem uma extensão de 2.100 km e envolve 280 famílias;
c) Barra do Turvo–Curitiba: tem uma extensão de 300 km e envolve 80 famílias.
As demais sub-rotas envolvem aproximadamente 150 famílias. Uma quarta rota está em fase de constituição e ligará o Planalto Serrano (Lages), o Alto Vale do Itajaí (Presidente Getúlio) e o Litoral de Santa Catarina (Florianópolis), com uma extensão de 450 km e cerca de 100 famílias participantes. Além dessa quarta rota em vias de abertura, outros núcleos da Rede Ecovida manifestaram interesse em se integrar ao circuito.
Desde os primeiros intercâmbios de produtos, em 2006, foram comercializados aproximadamente 831 mil kg de 74 tipos de alimentos, movimentando o montante de R$ 1,5 milhões.
DESAFIOS PARA O FUTURO
Um dos principais desafios colocados para a viabilização do circuito a longo prazo refere-se à necessidade de consolidação de sua capacidade de obtenção e manutenção de resultados econômicos efetivos sem que para isso abra mão dos princípios da economia solidária e da Agroecologia que regem a Rede Ecovida. A superação desse desafio envolve desde questões de políticas públicas até outras de natureza prática e organizativa.
Do ponto de vista político, torna-se necessário lutar pela ampliação e consolidação das políticas públicas voltadas para a comercialização da agricultura familiar agroecológica. Programas de compras institucionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), devem ter seus formatos aprimorados e ser mais abrangentes. Também é necessário construir novos programas de acesso ao mercado institucional, como é o caso do projeto de Lei 2.877 que trata da ampliação e qualificação da alimentação escolar por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar do Ministério da Educação (Pnae/MEC).
Outra estratégia a ser intensificada relaciona-se ao estímulo para que as próprias famílias agricultoras que integram a Rede Ecovida consumam produtos ecológicos, já que elas compõem um mercado potencial de grande envergadura.
Na dimensão organizativa, destaca-se a necessidade de criar uma marca guarda-chuva do circuito que permita identificar os produtos que comercializa, sobretudo para dar visibilidade e favorecer o processo que está sendo engendrado junto aos consumidores dos diferentes mercados locais. Também são necessárias medidas para minimizar perdas de produtos entre as estações e as subestações. Essas perdas ocorrem por dois motivos principais: a utilização de embalagens pouco adequadas e a falta de padronização dos produtos.
No terreno da organização formal, uma possibilidade a ser discutida é a constituição de uma cooperativa base ou central para filiação das estações e subestações de forma a facilitar a emissão de notas fiscais e diminuir a tributação incidente nos produtos comercializados por intermédio do circuito.
Finalmente, o emprego de biocombustível a partir de óleo reciclado nos caminhões do circuito tem sido também uma proposta debatida com o propósito de ecologizar a matriz energética do transporte de alimentos.
Natal João Magnanti
engenheiro agrônomo e pedadogo, Msc. ciências do solo, secretário de administração e finanças do Centro Vianei de Educação Popular e membro do conselho de administração da Cooperativa Ecológica Ecoserra
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Referências Bibliográficas
ARL, V. Caderno de Formação 01. Rede Ecovida de Agroecologia, 2007. 46p.
SANTOS, L.C.R.; FONSECA, M.F. Construindo a certificação participativa em rede no Brasil: cartilha para subsidiar as oficinas locais. Florianópolis: Grupo de Trabalho de Certificação Participativa do GAO, 2004. 44p.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N2 – Circuito Sul de circulação de alimentos da Rede Ecovida de Agroecologia