As sementes de que tratam os artigos desta revista são recursos essenciais para a construção da agroecologia. São sementes de variedades rústicas que possuem uma capacidade significativa de adaptação aos diferentes ambientes, pois detêm alta variabilidade genética.
A criação dessas variedades foi realizada com um alto grau de interferência das comunidades agricultoras. Pode-se mesmo dizer que as culturas humanas que influenciaram a conformação dessas variedades ao longo de gerações encontram-se inscritas na constituição genética dessas sementes.
No Brasil, elas receberam várias denominações, dependendo da região: sementes crioulas, tradicionais, sementes da paixão, locais, caboclas, nativas, etc. Independente do nome atribuído, elas se distinguem simbólica e materialmente das sementes comerciais produzidas pelas empresas do agronegócio. Pelo seu estreito vínculo com a natureza, as designamos nesta revista de sementes da biodiversidade.
Com a Revolução Verde, a agricultura industrial impôs variedades “melhoradas”,os híbridos e, mais recentemente, os transgênicos. Por meio dessas sementes, o agronegócio consegue condicionar todo o sistema técnico, tornando-o cada vez mais dependente dos insumos industriais. Por intermédio de vários mecanismos de políticas públicas que induzem os agricultores ao plantio das sementes comerciais, a prática multimilenar dos agricultores de produção própria das sementes foi sendo aos poucos abandonada.
A substituição das sementes da biodiversidade pelas sementes do agronegócio tem desencadeado processos drásticos de erosão genética, assim como uma acelerada deterioração das culturas agrícolas também responsáveis pelo uso e conservação da biodiversidade. A liberação comercial dos cultivos transgênicos produzirá contaminações irreversíveis às variedades dos camponeses, como deixam claro os entrevistados da matéria da página 26. Simultaneamente, a expansão das monoculturas, inclusive as voltadas para a produção de agrocombustíveis, ocupa territórios biodiversos, acelerando ainda mais os processos de erosão genética e cultural.
Ao almejar crescentes níveis de controle do mercado, as grandes empresas vêm pressionando os poderes públicos a estabelecer novas legislações e políticas para a regulação do sistema de produção e comercialização de sementes no Brasil. Atualmente, há duas leis principais que regulamentam o uso das sementes no país. A primeira é a Lei de Cultivares, de 1997, que institui a proteção das variedades registradas. Trata-se na prática de um sistema de patente que proporciona às empresas e a seus pesquisadores o recebimento de royalties pela venda de suas sementes. Se por um lado essa lei atribui recompensa às empresas melhoristas, por outro não faz referência ao fato de que as sementes utilizadas por elas em seus programas de melhoramento foram desenvolvidas a partir de esforços de gerações de agricultores.
Apesar dessa incongruência, a lei de 1997 preserva o direito do agricultor de reproduzir em sua propriedade as sementes protegidas, desde que para uso próprio, o que, segundo as empresas, constitui um privilégio. Novas pressões vêm sendo feitas pelas empresas sobre o governo federal para acabar com esse dito privilégio dos agricultores.
A segunda legislação importante na área é a Lei de Sementes e Mudas, que regulamenta toda a produção, uso e comércio de sementes e mudas. Em sua última formulação de 2003, após pressões de organizações da sociedade civil, a lei passou a reconhecer oficialmente as sementes crioulas, o que permite que elas sejam distribuídas ou fomentadas por programas governamentais. Além disso, a lei admite a possibilidade de que agricultores familiares, assentados da reforma agrária e indígenas produzam e comercializem suas próprias sementes entre si sem a necessidade de registrá-las no Ministério da Agricultura. A promulgação dessa lei criou as bases legais para a implantação de políticas públicas orientadas ao resgate, à conservação e ao uso de sementes crioulas. Infelizmente, muito pouco foi feito nesse sentido até o momento.
A despeito do reconhecimento legal das sementes crioulas, algumas contradições entre legislações federais colocaram novas dificuldades aos camponeses. Embora as sementes crioulas possam agora ser empregadas em lavouras financiadas pelo crédito oficial–vinculado ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) –, as regras do Seguro da Agricultura Familiar (Seaf), obrigatório para os que acessam o crédito, não prevêem a cobertura financeira dos(as) agricultores(as) em caso de frustração de safra. Para receber o seguro, a lavoura deve ser implantada com sementes cadastradas no Registro Nacional de Cultivares (RNC), um sistema concebido para atender às especificações técnicas das sementes comerciais e não das crioulas. A nova lei também impôs um rígido protocolo burocrático à produção e comercialização das sementes registradas, o que tem praticamente inviabilizado a produção dessas sementes por parte de organizações da agricultura familiar que as comercializam. Como se vê, os desafios ainda são grandes para o livre uso das sementes da biodiversidade.
Para o movimento agroecológico, o domínio das sementes da biodiversidade e dos conhecimentos a elas associados é estratégico. A diversidade das sementes selecionadas localmente, adaptadas aos sistemas de cultivo, ao ambiente e às preferências culturais, é matéria-prima para qualquer iniciativa de transição agroecológica. A perda da biodiversidade não apenas compromete o equilíbrio técnico dos sistemas, mas também sua capacidade de reprodução econômica. Assim, ao revalorizar e assegurar a reprodução de suas sementes, os agricultores vêm conseguindo se livrar do uso de insumos industriais, bem como vêm se mantendo desimpedidos de cumprir normas restritivas ao livre domínio e circulação de sementes.
Os artigos que compõem esta revista põem em evidência as formas de resistência dos camponeses aos processos que vêm induzindo à perda de suas sementes e conhecimentos tradicionais. Essa resistência compreende complexas estratégias individuais e coletivas de identificação, resgate, intercâmbio, multiplicação e armazenamento de sementes da biodiversidade. Multiplicam-se pelo Brasil feiras, festas, campanhas, encontros, casas e bancos de sementes comunitários. Essas iniciativas em geral são fortemente associadas a esforços de revalorização das culturas alimentares que se valem dos recursos genéticos locais.
Os artigos evidenciam a capacidade mobilizadora e a grande abrangência do tema. As narrativas mostram a face técnica, quando tratam da melhoria da qualidade das sementes produzidas e armazenadas e da reconstrução de sistemas de produção diversificados; a dimensão metodológica, quando são desenvolvidas, pelas próprias organizações locais, variadas formas de recuperar a biodiversidade a partir de enfrentamentos de problemas e da valorização de oportunidades locais; e o caráter social, uma vez que a maioria das experiências revela a existência de um forte viés político, demonstrando que as ações para a promoção das sementes da biodiversidade guardam íntima relação com as disputas na sociedade em torno de modelos de desenvolvimento rural. Em outras palavras, essas experiências técnicas e metodológicas criam também ambientes sociais para a politização dos agricultores e suas organizações. Prova disso é que algumas das iniciativas são realizadas explicitamente a partir de interações com organismos governamentais e/ou se valendo das oportunidades de políticas públicas vigentes.
Além dos sete artigos sobre uso e conservação das sementes da biodiversidade, o presente número da Revista Agriculturas traz uma entrevista com pessoas que têm atuado, a partir de diferentes organizações da sociedade e do Estado, na promoção da agroecologia e na defesa do princípio da precaução frente aos riscos dos transgênicos.
Paula Almeida
eng. agrônoma, assessora técnica da AS-PTA
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Revista V4N3 – Sementes da Biodiversidade