Maria José Guazzelli, Laércio Meirelles, Ricardo Barreto, André Gonçalves, Cristiano Motter e Luís Carlos Rupp.
Na agricultura, como na natureza, a sanidade de um sistema é alcançada mais facilmente em ambientes que apresentam a maior variedade possível de espécies. Um sistema agrícola diversificado tem mais possibilidades de manter o equilíbrio pelas múltiplas relações entre os seus componentes bióticos e abióticos.
Esse equilíbrio ideal, propiciado pela alta diversidade, ainda não é realidade em muitas situações de produção de agricultores ecologistas. É necessário um tempo até que um agroecossistema seja capaz de regular problemas de pragas e de doenças por meio do controle biológico realizado por predadores e parasitas.
A agricultura atual, mesmo quando ecológica, acaba tendo áreas de monoculturas, ainda que em pequena escala, seja para atender exigências de consumidores ou para se ter acesso a mercados. Reduzir essas monoculturas depende, entre outras condições, de mudanças de hábitos dos consumidores e dos mercados.
Além disso, situações de estresse ambiental, provocadas por instabilidades climáticas como seca, excesso de chuvas, de frio ou calor, podem favorecer a incidência de pragas ou doenças, colocando em risco a produção dos agricultores ecologistas.
Há muito já se tinha claro que as plantas que cresciam adubadas com matéria orgânica não apresentavam maiores problemas de pragas e doenças. Também já era bem conhecido o fato de que a modernização da agricultura tinha acarretado um aumento significativo do número de espécies que haviam se tornado pragas ou doenças. Estudos feitos e/ou compilados pelo pesquisador francês Francis Chaboussou forneceram as bases para a elaboração da teoria da trofobiose, que permite estabelecer o elo significativo entre esses dois fenômenos verificados na prática dos agricultores.
Nos anos 80, a equipe técnica do Centro Ecológico (então CAE Ipê), uma ONG que atua no Rio Grande do Sul, junto a agricultores da serra gaúcha, e outros técnicos colaboradores, como Sebastião Pinheiro e Delvino Magro, buscaram formas de superar limitações técnicas apresentadas na produção ecológica. Essa busca foi orientada pelo exercício prático das idéias sistematizadas por Chaboussou, ou seja, fundamentava-se na noção de que o estado nutricional da planta é resultado da interação entre sua genética, as práticas de manejo e o meio ambiente. Dessa forma, as práticas de cultivo passaram a ser direcionadas procurando entender as causas prováveis do problema e não simplesmente atacando as suas evidentes consequências, manifestadas pelas pragas e doenças e pela baixa produtividade.
A APLICAÇÃO DA TEORIA NA PRÁTICA
A região declivosa, no subtrópico úmido em transição para o temperado, foi ocupada predominantemente por colonos italianos, que desenvolveram uma agricultura de subsistência e, posteriormente, introduziram o cultivo da uva como principal produto para comercialização. Com a modernização da agricultura, houve um grande aumento na produção de hortaliças e, principalmente, de frutas para o mercado, com o uso intensivo de adubos solúveis e de agrotóxicos, o que ocasionou incidência elevada de pragas e doenças, além de problemas de saúde e ambientais.
Os solos erodidos, a baixa fertilidade decorrente e a incorporação de variedades modernas de horta- liças (principalmente cebola e tomate) e frutas (basicamente maçã, pêssego e uva), menos adaptadas ao ambiente e sofrendo ataques intensos de insetos-praga e doenças, eram desafios a serem superados pelos agricultores ecologistas. A mudança começou por eliminar o fator imediato de desequilíbrio do solo e da planta: o uso de adubos químicos solúveis. Introduziu-se o emprego de adubos orgânicos e de adubos verdes, inclusive nos pomares já implantados no sistema convencional. A seguir, buscaram-se meios de complementar a nutrição das plantas de forma adequada. Essas mudanças tornaram toleráveis os níveis de ataque da grande maioria de pragas e doenças.
Em termos práticos, em vez de dar uma resposta simplificada (ou uma receita) para resolver uma de- terminada situação, o entendimento do contexto se dá por meio de uma série de perguntas, que vão desde a leitura da paisagem até aspectos mais específicos relacionados ao manejo da planta. Assim, perguntas sobre o tipo de adubação utilizada; como foi feita a irrigação – com água demais ou de menos; como está o clima – muito frio, muito quente, muito seco ou muito úmido; qual a adaptação da variedade ao local; se o plantio foi realizado na época adequada; quais os tratos culturais emprega- dos; entre outras, assumem um papel de destaque para se propor soluções baseadas no entendimento dos desequilíbrios ecológicos existentes.
Para responder a várias dessas questões, lançamos mão das informações dadas pelos indicadores biológicos existentes na área e/ou cultivo em questão: as plantas espontâneas, especialmente as ervas, e o desempenho das próprias plantas que estão sendo cultivadas.
As plantas espontâneas mostraram-se capazes de nos fornecer várias informações a respeito do solo em que apareciam. Por exemplo, um solo dominado por gramíneas estoloníferas, como a milhã (Digitaria sanguinalis), apresentava estrutura física deficiente, ou seja, não era um solo solto. Conseqüentemente, a planta cultivada provavelmente gastava muita energia para se estabelecer, podendo apresentar deficiências de nutrientes (ver quadro 2). E, do mesmo modo que as ervas, as pragas e doenças indicavam a origem das dificuldades que as plantas estavam tendo, como, por exemplo, carências de nutrientes (ver quadro 3). Esses nutrientes até podiam estar presentes no solo, mas não estavam sendo aproveitados pela planta, como no caso da podridão apical em tomateiro, que ocorre devido à falta de cálcio, em períodos que o solo está demasiado seco, e não necessariamente por falta do mineral.
Com o tempo, tornou-se evidente para nós que o agricultor, ou quem o está assessorando, não necessita saber detalhes técnicos do que está ocorrendo, mas pode buscar formas de melhorar o metabolismo da planta. Isso pode ser feito por meio da seleção, a cada ano, das melhores plantas para colher as sementes, a fim de ter variedades mais adaptadas ao seu próprio local; pela mudança no manejo do solo, incrementando a adubação verde; ou deixando a vegetação espontânea crescer ao máximo para servir de adubo verde.
O agricultor também pode interferir diretamente na nutrição da planta, no sentido de fortalecê-la para que possa superar as dificuldades. A isso damos o nome de controle fisiológico. Quer dizer, um vegetal saudável, bem alimentado, dificilmente será atacado por pragas e doenças, pois estas morrem de fome numa planta sadia. Insetos, ácaros, nematóides, fungos, bactérias e vírus são a conseqüência e não a causa do problema. Por exemplo, os tripes “desaparecem ”de cebolas atacadas, após períodos intensos de chuva, quando é pulverizado biofertilizante enriquecido. Segundo relatos de alguns agricultores ecologistas:
“Quando começamos a fazer mais tratamentos nutricionais (via foliar), o parreiral reduziu os problemas de mortalidade, melhorou o vigor e a uva vem mais ‘grossa’. Os tratamentos nutricionais engrossam a folha e reduzem a ‘mufa’(míldio).”(Élio Chilanti, Antonio Prado/RS)
“Nós fazemos de seis a sete tratamentos com biofertilizantes ou caldas por safra. Os nossos vizinhos, que produzem convencional, fazem de 12 a 15 aplicações de venenos”. (Jamir Vigolo, Antonio Prado/RS)
A partir dessa perspectiva de controle fisiológico, diversos produtos, simples e baratos passaram a ser uti- lizados e/ou foram desenvolvidos como insumos para os sistemas agrícolas. Em geral, são insumos abundantes, localmente disponíveis e facilmente incorporados nas práticas de manejo pelos agricultores. Destacam-se a cinza de madeira e os pós de rocha, que geralmente são um refugo de marmorarias e pedreiras. Sobretudo, destaca-se o desenvolvimento dos biofertilizantes enriquecidos, uma tecnologia barata, da qual os agricultores realmente se apropriaram, e que hoje se encontram difundidos em praticamente todas as experiências de agricultura ecológica da América Latina.
BIOFERTILIZANTES ENRIQUECIDOS
A nomenclatura usada para denominar os biofertilizantes enriquecidos tem sido bem criativa. No sul do Brasil, chamam de super-magro, gororoba e biolocal. Em Sergipe e Alagoas, é conhecido como biogeo. Já em Pernambuco, é super-tará, e, no Rio, é agrobio, mas também pode ser biol e muitos outros nomes.
Os biofertilizantes enriquecidos podem ser feitos com qualquer tipo de matéria orgânica fresca. Na maioria das vezes, utilizam-se estercos, mas também podem ser usados apenas restos vegetais. Se possível, é conveniente acrescentar soro de leite ou caldo de cana para dar condições às bactérias de se desenvolverem com maior velocidade. O biofertilizante pode ser enriquecido com alguns minerais, oriundos de cinzas ou rochas finamente moídas, assim como de restos das plantas espontâneas. Além de melhorar o produto final, esses minerais proporcionarão uma fermentação mais eficiente. São utilizados tanto no solo como em pulverizações foliares. Neste último caso, são muito eficazes para o controle de diversas enfermidades, por propiciarem à planta um funcionamento fisiológico mais harmônico e equilibrado.
Muito se questiona sobre a necessidade de se trabalhar com pulverizações foliares em agricultura ecológica. No entanto, está comprovado que ao redor da superfície de uma folha, na filosfera, acontece uma série de reações bioquímicas, bem como convivem dezenas de microrganismos. Essas reações liberam nutrientes importantes, tanto minerais quanto orgânicos, diretamente para as plantas. A análise dos ecossistemas de florestas tem mostrado que a água da chuva que escorre desde as camadas superiores da vegetação é muito rica em nutrientes, tanto de elementos químicos quanto em formas mais complexas, como aminoácidos, enzimas, açúcares, ácidos húmicos, hormônios vegetais, etc. O que não tiver sido absorvido pela vida nas diferentes camadas das plantas será consumido pela intensa atividade na rizosfera (raízes) ao alcançar o solo. Dessa forma, as pulverizações foliares feitas pelos agricultures ecologistas tentam justamente imitar esse processo ecológico de partilha dos nutrientes do ecossistema entre as diversas plantas.
Além disso, na formulação do biofertilizante enriquecido, existe a intenção de fazer com que o agricultor possa entender o processo e fabricá-lo em casa, com ingredientes facilmente acessíveis e de baixo custo. Ocorre, as- sim, uma transferência de poder dos cientistas e técnicos para os agricultores. Formulações caseiras de biofertilizantes enriquecidos têm, por essa razão, o mérito de serem facilmente apropriadas e reproduzidas pelos produtores.
Por meio da fermentação, os agricultores transformam produtos que não poderiam ser absorvidos pelas plantas em nutrientes facilmente assimilados. Portanto, o biofertilizante enriquecido alimenta a planta, mas sua ação não é só essa. Uma das importantes propriedades descobertas nos biofertilizantes é que ele protege a planta, agindo como um defensivo.
Essa defesa pode ser propiciada por diversos fatores. Um deles é que a planta mais bem nutrida tem maior resistência, como nos explica a trofobiose. Se uma planta tem à sua disposição tudo o que necessita, na quantidade e no momento corretos, ela tem todas as condições de se defender, por si só, de algum ataque de insetos, nematóides, ácaros, fungos, bactérias, etc. Também, como o biofertilizante é um produto vivo, os microrganismos presentes nele podem entrar em luta com os microrganismos que es- tão atacando a planta e destruí-los ou paralisá-los.
CONCLUSÃO
Para os agricultores assessorados pelo Centro Ecológico, entender e aplicar a teoria da trofobiose tem sido uma experiência preciosa. A teoria tem sido uma ferramenta que possibilita uma abordagem inovadora e facilitadora para tentar entender e manejar, com sucesso, os problemas técnicos apresentados pelos agricultores ecologistas, os quais buscam produzir alimentos sem o uso de adubos sintéticos e/ou agrotóxicos, mas que também não querem simples- mente substituir insumos sintéticos por venenos naturais (fitoterápicos, cobre, neen, etc…).
Apesar de estar baseado em sólidos e pioneiros conhecimentos científicos, grande parte do saber acumula- do a esse respeito é fruto de experimentação participativa e tem a intenção de servir como estimulador de novas iniciativas por parte dos agricultores.
Adquirindo a compreensão de que, para qualquer ação malfeita (adubação química solúvel concentrada, falta de matéria orgânica, falta ou excesso de água, falta de luz, uso de agrotóxicos, tratos culturais errados, solo mal estruturado, etc), haverá sempre uma reação da natureza (na forma de ataque de algum agente, como insetos, ácaros, nematóides e microorganismos, indicando um erro no manejo), passamos a possuir a chave para corrigir as situações de desequilíbrio. De acordo com essa perspectiva, a maneira correta de proteger as plantas é prevenir o ataque desses agentes da natureza, proporcionando um ambiente e uma alimentação saudável e equilibrada. Esse enfoque pode ainda ser reforçado ao estimularmos o controle fisiológico por meio do uso de biofertilizantes enriquecidos.
“O biofertilizante ajuda as plantas quando o solo está desequilibrado e, com o tempo, vai se usando menos. Hoje, depende muito, não basta ter um solo bem equilibrado, porque o tempo está mudado: faz frio e calor fora de época e tem também a insolação maior”. (Pio Bernardi, agricultor ecologista, Ipê/RS)
Nossa experiência ensinou que, por meio do emprego dessa perspectiva, podemos manejar ecologicamente uma unidade produtiva isolada, ou até mesmo parte dela. Além do mais, essa tem sido uma abordagem muito útil durante os processos de transição agroecológica de sistemas de produção e em momentos de estresse ambiental.
Maria José Guazzelli, Laércio Meirelles, Ricardo Barreto, André Gonçalves, Cristiano Motter e Luís Carlos Rupp
membros da equipe técnica do Centro Ecológico
Centro Ecológico: ww.centroecologico.org.br
Escritório Ipê-Serra: centro.ecoló[email protected]
Escritório Litoral Norte: [email protected]
Referências Bibliográficas:
CENTRO ECOLÓGICO. Cartilha Agricultura Ecológica (Princípios Básicos), março de 2005. Disponível, sem custo, em: www.centroecologico.org.br/agricultura.php
CHABOUSSOU, Francis. Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos (A Teoria da Trofobiose). Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.
Primavesi, A. Agricultura sustentável. São Paulo: Nobel, 1992.
Primavesi, A. Curso de solos e manejo ecológico de pragas e doenças. s.l, s.ed., 1991.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N1 – Aplicação da teoria da trofobiose no controle de pragas e doenças: uma experiência na serra gaúcha