José Guilherme Marinho Guerra, Aly Ndiaye, Renato Linhares de Assis e José Antonio Azevedo Espindola
A produção e o consumo de hortaliças são, respectivamente, atividade e hábito bastante característicos do estado do Rio de Janeiro. O nível de consumo per capita é o maior do país, alcançando 54 quilos por ano, ao mesmo tempo em que o volume de produção representa cerca de 8% do total nacional (Embrapa Horta- liças, 2000). Na região serrana fluminense, que se destaca nesse contexto, o cultivo de hortaliças é desenvolvido, principalmente, em pequenos estabelecimentos de base familiar. Em geral, essas unidades produtivas empregam intensiva- mente as tecnologias da agricultura industrial, notadamente os fertilizantes sintéticos concentrados e os agrotóxicos.
Em 1984, foi criada no estado a primeira associação de produtores orgânicos do Brasil, a Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (Abio). Desde então, o volume da produção orgânica vem crescendo gradualmente no estado, principalmente o de hortaliças.
Além de propiciar a oferta de alimentos saudáveis para a população, o manejo orgânico elimina os riscos de contaminação de trabalhadores rurais e dos mananciais de água por agrotóxicos.
A despeito das vantagens acima enumeradas, os sistemas orgânicos têm seus impactos positivos restringidos quando se fundamentam unicamente na substituição dos insumos sintéticos por outros de origem biológica. Isso porque essa abordagem de conversão produtiva não chega a alterar estruturalmente os agroecossistemas, o que limita o restabelecimento de funções ecológicas importantes para a sustentabilidade ambiental e a eficiência econômica dos mesmos.
A Agroecologia propõe estratégias para superar as limitações estruturais e funcionais intrínsecas a sistemas simplificados de produção. Essas estratégias visam à otimização e ao estímulo dos processos biológicos do solo, favorecendo a ciclagem de nutrientes. Priorizam também a adoção de técnicas com abrangência multifuncional, capazes de melhorar ou manter a fertilidade do solo, amenizar processos erosivos, favorecer populações de organismos benéficos e exercer controle sobre as plantas espontâneas.
O uso de plantas de cobertura de solo é uma dessas técnicas, que consiste no emprego de espécies com características desejáveis em rotação ou consórcio com culturas de interesse econômico (Espindola et al., 2005). Quando tais espécies são da família das leguminosas, promove-se de maneira natural o aporte de nitrogênio ao solo, devido à simbiose formada entre esse grupo de plantas e as bactérias fixadoras do nitrogênio atmosférico, reduzindo ou até mesmo eliminando a necessidade da aplicação de fertilizantes nitrogenados.
Embora trabalhos de pesquisa já tenham evidenciado os benefícios do uso de plantas de cobertura e da adubação verde para a produção vegetal, é importante entender as potencialidades e dificuldades para adoção em unidades produtivas de base familiar, mesmo naquelas envolvidas com o manejo orgânico. Experiências desenvolvidas há vários anos por famílias de agricultores orgânicos da comunidade dos Albertos, localidade do Brejal, município de Petrópolis, são ricas em ensinamentos nesse sentido.
A EXPERIÊNCIA NA COMUNIDADE DOS ALBERTOS
A comunidade dos Albertos encontra-se em uma faixa de altitude que varia de 1.000 a 1.100 m, apresentando um clima tropical de altitude. A comunidade caracteriza-se pela presença de proprietários, arrendatários, parceleiros e meeiros, que ocupam áreas inferiores a 10 hectares. Foi nessa comunidade que se estabeleceu, em 1978, o primeiro núcleo de agricultores orgânicos fluminenses, associado à Abio desde a sua fundação.
A organização desse grupo de agricultores ocorreu no final dos anos 1970, a partir do envolvimento do proprietário da Fazenda Terras Altas com o processo de consumo de alimentos naturais liderado pela Cooperativa de Consumidores de Produtos Naturais (Coonatura), sediada na cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente na forma de parceria e posteriormente por meio de arrenda- mento, parte da Fazenda Terras Altas passou a fornecer alimentos orgânicos in natura para a cooperativa. A motivação dos agricultores familiares então envolvidos estava ligada à expectativa de viabilização de maiores ganhos por meio do esquema de venda direta de seus produtos.
Atualmente, as unidades são conduzidas por famílias de agricultores que se dedicam, principalmente, à produção de hortaliças folhosas cultivadas em canteiros. Apesar dos sistemas prescindirem totalmente da aplicação de agroquímicos, aspectos relacionados à conservação do solo ainda necessitam maior atenção por parte dos agricultores. Por exemplo, o preparo do terreno é feito de forma intensiva com mecanização, empregando-se enxada rotativa acoplada a microtrator. Esse padrão de manejo favorece a erosão do solo, maior incidência de ervas espontâneas e o aparecimento de doenças provocadas por fungos de solo.
Ações orientadas para a busca de manejo mais adequado a esses sistemas de produção tiveram início com a experimentação, junto a um agricultor, do plantio direto de hortaliças sem o uso de herbicidas. Esse trabalho foi coordenado pelo agente de desenvolvimento rural Aly Ndiaye, que então residia na comunidade, e contou com a colaboração do pesquisador Vinícius Vitoi Silva, da Em- presa de Pesquisa Agropecuária do Estado do Rio de Janeiro (Pesagro-Rio). A atividade consistiu na introdução da gramínea aveia-preta e da leguminosa ervilhaca-comum, semeadas a lanço em mistura, com vistas ao posterior transplantio direto de brássicas. Ao contrário do manejo no qual as plantas de cobertura são dessecadas com a aplicação de herbicidas, realizou-se o pisoteio da macega para em seguida plantar as mudas de repolho. Os resultados iniciais obtidos, notadamente em relação ao controle da vegetação espontânea, repercutiram de forma positiva, inclusive junto aos vizinhos, o que tornou os agricultores mais receptivos a novas experiências com plantas de cobertura.
O mesmo agente de desenvolvimento rural articulou a continuidade das ações, agora com o envolvimento de pesquisadores da Embrapa Agrobiologia. Inicialmente, introduziu-se a leguminosa guandu, a partir da demanda dos agricultores por maior disponibilidade de biomassa para o enriquecimento de compostos orgânicos, utilizados na produção de hortaliças. Tal fato foi justificado pela necessidade de reduzir os custos de produção desses compostos, com a substituição de parte da cama de aviário, tradicionalmente utilizada como matéria-prima. Face à reduzida disponibilidade de área, os agricultores optaram por semear o guandu em faixas. Essa decisão facilitou a introdução da leguminosa e permitiu que as áreas fossem divididas em glebas, o que favoreceu a ampliação da percepção dos agricultores em relação à gestão espacial das unidades de produção.
O estabelecimento das faixas de guandu demandou visitas regulares dos pesquisadores à comunidade, instituindo uma rotina de diálogo com os agricultores. Durante esse processo continuado, foi possível promover uma reflexão coletiva sobre as dificuldades do uso de plantas de cobertura nas unidades de produção. Identificou-se, por exemplo, o impacto negativo da intensa mecanização na capacidade produtiva das áreas de cultivo, o que permitiu o debate sobre os benefícios potenciais da utilização de plantas de cobertura associadas ao plantio direto de hortaliças.
A partir do vínculo criado com a comunidade, estabeleceu-se um grupo com a participação de quatro agricultores orgânicos certificados pela Abio, os quais destinaram uma gleba de aproximadamente 300 m em suas unidades de produção para a instalação e condução de unidades de experimentação participativa. O grupo é formado por três arrendatários e um proprietário. Cada arrendatário cultiva cerca de três hectares, enquanto o sítio do agricultor proprietário tem área em torno de dez hectares. Todos trabalham com suas famílias e, eventualmente, contratam diaristas.
Além de aspectos relacionados ao uso de plantas de cobertura e do plantio direto de hortaliças em substituição ao preparo mecanizado do solo, a abordagem do trabalho buscou valorizar a adubação verde, a inoculação de bactérias fixadoras de nitrogênio nas sementes de leguminosas, os consórcios, as sucessões culturais e a introdução de uma variedade de feijão-de-vagem de porte determinado e ciclo curto (cv. alessa).
A instalação das unidades de experimentação foi iniciada em maio de 2003, em dois talhões contíguos de aproximadamente 150 m cada um. As áreas foram preparadas com auxílio de enxada rotativa acoplada a microtrator. Em um dos talhões foi feita a semeadura, a lanço, de uma mistura contendo três volumes de aveia-preta e um volume de ervilhaca-comum, de forma que a mistura representasse o equivalente a uma densidade de 60 kg de sementes por hectare. No outro talhão, foi permitida a reinfestação da área com a vegetação espontânea formada principalmente de losna, labaça, picão-preto, brinco-de-ouro e azedinha.
Após cinco meses da semeadura da mistura de aveia-preta e ervilhaca-comum, a macega dessas plantas de cobertura e da vegetação espontânea foi cortada com auxílio de roçadeira costal. A palhada de aveia e ervilhaca foi mantida em cobertura sobre o terreno; enquanto que, no talhão destinado ao preparo convencional do solo, a vegetação espontânea foi incorporada com auxílio de enxada rotativa. Nessa ocasião, agricultores e pesquisadores fizeram uma avaliação da produção de biomassa em ambos os talhões. Depois dessas operações, foi realizado o transplantio das mudas de repolho (híbrido sekai).
Para o plantio dessa hortaliça, três agricultores utilizavam um espaçamento de 0,70 x 0,50m, enquanto que o quarto agricultor realizava o plantio em canteiros, com o espaçamento de 0,70 x 0,40m. A partir da observação por parte dos pesquisadores do espaço existente entre os canteiros na área desse último, construiu- se com os agricultores uma proposta de ajuste no arranjo espacial de plantio: a introdução da leguminosa Crotalaria juncea para adubação verde de verão, consorciada com a cultura do repolho nos talhões sob plantio direto. Assim, nos talhões com preparo convencional do solo, manteve-se o espaçamento tradicionalmente adotado por cada um dos agricultores, ao passo que, nos talhões sob plantio direto, o repolho foi transplantado em sistema de faixas com linhas triplas no espaçamento de 0,40 x 0,50m e de 1,20m entre as faixas. No corredor formado entre as linhas triplas de repolho, foi feita a semeadura de três linhas de Crotalaria juncea 30 dias após o transplantio da hortaliça, o que coincidiu com o momento da primeira capina. A densidade utilizada foi de 30 sementes por metro linear em linhas espaça- das de 0,40m. Nessa ocasião, bactérias fixadoras de nitrogênio foram inoculadas nas sementes. Na condução da lavoura de repolho, dois agricultores se afastaram do processo: um deles devido ao encharcamento da área que provocou a morte da hortaliça e do adubo verde; o outro por problemas de ordem familiar.
Após a colheita do repolho, na área sob preparo de solo convencional, introduziu-se o cultivo de feijão- de-vagem (cv. alessa) com espaçamento de 0,50m entre sulcos e densidade de oito sementes por metro linear. No talhão sob plantio direto, realizou-se a semeadura de três linhas de feijão-de-vagem (cv. alessa), com espaçamento de 0,40m e densidade de oito sementes por metro linear. Em ambas as áreas de cultivo, bactérias fixadoras de nitrogênio foram inoculadas nas se- mentes do feijão-de-vagem. Somente no talhão sob plantio direto, por ocasião da floração, a crotalária foi cortada rente ao chão com o auxílio de catana, mantendo-se a biomassa em cobertura. Procedeu-se então o transplantio de mudas de alface lisa em covas abertas no espaçamento de 0,40 x 0,30m na palhada da crotalária. Assim, integraram-se ações de sucessão e consórcio de culturas.
Por meio dessa experiência, agricultores e pesquisadores puderam constatar os diferentes benefícios do sistema de plantio direto no cultivo de hortaliças, tais como: redução da movimentação e perda de solo; diminuição da infestação de ervas espontâneas; e desempenho agronômico similar ou superior. Também foi possível verificar que, nas áreas sob plantio direto, a ocorrência da doença conhecida como mofo branco, causada pelo fungo Sclerotinia sclerotiorum, na cultura de feijão-de-vagem, foi muito inferior àquela da lavoura conduzida na área sob preparo de solo convencional. Tal fato foi debatido com os agricultores, chegando-se ao entendimento de que o não-revolvimento do solo e a manutenção da palhada sobre o terreno foram determinantes para a redução da disseminação dos propágulos desse fungo.
Do ponto de vista pedagógico, a experiência relatada possibilitou demonstrar, didaticamente, que o preparo mecanizado contínuo do solo não é a única opção de manejo do terreno que confere altos rendimentos produtivos de hortaliças. Isso estimulou a reflexão dos agricultores sobre a necessidade de evolução na transição agroecológica das unidades de produção. Destaca-se também o papel da introdução de plantas de cobertura com vistas ao favorecimento de distintos processos ecológicos, fazendo com que os sistemas de produção orgânica possam ser entendidos como algo além de uma simples substituição de insumos. O caráter multifuncional dessa prática permitiu que os agricultores e pesquisadores percebessem os vários benefícios da presença das plantas de cobertura: a proteção do solo, a produção in situ de matéria orgânica, o controle de plantas espontâneas, a redução da incidência de doenças de solo e, até mesmo, o potencial para aumento de produtividade de suas lavouras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ações desenvolvidas na comunidade dos Albertos possibilitaram a construção de novos conhecimentos, agregando as experiências práticas dos agricultores e acadêmicas dos pesquisadores. Ao longo dessa trajetória, buscou-se aprofundar a transição agroecológica de sistemas de produção orgânica com a incorporação de novas práticas de manejo que otimizassem os processos ecológicos e que favorecessem o desempenho produtivo e econômico das unidades agrícolas. De maneira geral, os conceitos trabalhados foram bem recebidos pelos agricultores, que adaptaram algumas das práticas avaliadas para a sua realidade, com destaque para a utilização do guandu para a divisão dos talhões cultivados, bem como o uso da cultivar alessa de feijão-de-vagem como uma nova opção para essa cultura. Além disso, em algumas unidades, a adubação verde, seja de inverno e/ ou de verão, foi introduzida, mesmo que eventualmente, nos sistemas de produção.
Todavia, algumas dificuldades foram identificadas. Destaca-se o alcance limitado da disseminação das iniciativas realizadas junto aos agricultores, em parte decorrente da reduzida experiência do grupo de pesquisadores com a utilização de métodos pedagógicos construtivistas. Isso associou-se à dificuldade de conciliação do tempo disponível de pesquisadores e agricultores e à interrupção do processo de assistência técnica conduzido pelo agente de desenvolvimento rural, após seu afastamento da comunidade.
Cabe também registrar a pouca tradição associativa dos agricultores, restrita a algumas ações colaborativas no campo da comercialização. Na comunidade dos Albertos, nota-se que as atividades conduzidas nas unidades de produção são realizadas isoladamente pelas famílias, dificultando ações conjuntas que favoreçam a troca de experiências entre os agricultores.
Outro aspecto a ser destacado refere-se aos obstáculos relacionados ao acesso às sementes de plantas de cobertura. Normalmente, há dificuldade para aquisição dessas sementes, principalmente de leguminosas para adubação verde, nos estabelecimentos comerciais da região. Por outro lado, motivar os agricultores para multiplicarem sua própria semente é um grande desafio, haja vista a pouca disponibilidade de áreas para cultivo, que por sua vez são intensivamente manejadas para a produção de hortaliças.
Apesar dos obstáculos, a partir da realização desses trabalhos tornou-se possível debater conceitos de conservação de solo junto aos agricultores e disponibilizar aos mesmos novas opções de manejo que favoreçam a introdução de práticas de caráter agroecológico, principalmente considerando que nessa região concentra-se um importante núcleo de agricultores orgânicos fluminenses. Em adendo, a oportunidade de conduzir ações participativas estimulou a sensibilidade dos pesquisadores no sentido de buscar soluções locais para superar as dificuldades encontradas pelos agricultores na incorporação de conceitos e técnicas que potencializem processos ecológicos na gestão espaço-temporal de unidades de produção de base familiar.
Finalmente, gostaríamos de agradecer aos agricultores Ailton Lima da Ponte, Antônio Carlos Silva Correa, Geraldo Alexandre da Silva e Oswaldo Correa da Lima pela oportunidade de interação que possibilitou a realização deste trabalho.
José Guilherme Marinho Guerra, Renato Linhares de Assis e José Antonio Azevedo Espindola
pesquisadores da Embrapa Agrobiologia
Aly Ndiaye
consultor em agroecologia
Referências Bibliográficas:
ESPINDOLA, J. A. A.; GUERRA, J. G. M.; DEPOLLI, H.; ALMEIDA, D. L. de; ABBOUD, A. C. de S. Adubação verde com leguminosas. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2005. 49 p.
EMBRAPA. Centro Nacional de Pesquisa de Hortaliças (Brasília, DF). II Plano Diretor da Embrapa Hortaliças. Brasília, 2000. 44 p.
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Revista V4N1 – Uso de plantas de cobertura na valorização de processos ecológicos em sistemas orgânicos de produção na região serrana fluminense