Esteban Abbona, Santiago Sarandón e Mariana Marasas
Na localidade de Berisso, situada nas encostas da bacia do rio da Prata, Argentina, o cultivo de videira para a preparação de vinho artesanal é praticado desde o fim do século XIX. Essa atividade teve o seu apogeu em meados do século XX, mas desde então sofreu grande decadência. Entretanto, com a ajuda da Faculdade de Ciências Agrárias e Florestais da Universidade Nacional de La Plata (UNLP), a produção do vinho foi reativada em 1999, criando uma situação mais favorável para os produtores (Marasas e Velarde, 2000).
Os vinhedos mais antigos foram estabelecidos nas partes mais baixas da paisagem. Estavam, por isso, sujeitos a enchentes periódicas do rio da Prata e, como conseqüência, eram estruturados e manejados de forma bem particular. Apesar de adotarem há muito tempo um manejo com baixo uso de insumos externos, esses sistemas sempre mantiveram uma produção relativamente estável e com uma baixa incidência de insetos-praga e doenças. Foram exatamente essas características consideradas desejáveis que motivaram o presente estudo.
Em um trabalho conjunto entre produtores, extensionistas e pesquisadores da universidade, o funciona- mento desses sistemas foi analisado, com o objetivo de com- provar a existência de princípios ecológicos subjacentes às práticas de manejo que explicassem a sustentabilidade agroecológica desses vinhedos. Além disso, foram analisados vinhedos estabelecidos recentemente em áreas ligeiramente mais altas e que não estão sujeitas às enchentes do rio. A intenção era estudar em que medida as práticas que tiveram êxito nas áreas mais baixas poderiam também funcionar mais acima nas encostas.
O funcionamento ecológico dos vinhedos foi avaliado por meio do emprego do enfoque sistêmico. No estudo completo, foram observados vários componentes, interações e processos ecológicos. Neste artigo, apresentamos somente os processos relacionados aos ciclos de nutrientes.
BREVE DESCRIÇÃO DOS VINHEDOS
Os vinhedos de Berisso são compostos pela videira americana (Vitis labrusca L.), manejada na forma de parreirais. Na região baixa, eles contam com um sistema de drenagem feito de pequenas valetas que permitem o escoamento da água logo após as enchentes do rio para canais maiores, denominados coletores, que conduzem a água para fora da área de cultivo.
As valetas são localizadas a cada seis metros e entre elas são cultivadas duas fileiras de videira, de forma que cada fileira fique a três metros uma da outra e a um metro e meio das valetas (figura 1). A limpeza é realizada anualmente no período que antecede a rebrota das videiras (julho). Os sedimentos trazidos pelo rio que se acumulam nas valetas são depositados nos pés das videiras.
Os vinhedos localizados nas encostas dispensam o sistema de drenagem, mas tanto nas encostas como nas partes baixas, os solos são mantidos cobertos durante todo o ano por vegetação espontânea composta por espécies nativas e naturalizadas. Os produtores fazem cortes periódicos dessa vegetação para facilitar os trabalhos de manejo, e a biomassa vegetal obtida é deixada sobre o solo. Os produtores empregam poucos agrotóxicos, utilizam fungicidas somente para o controle do míldio (Plasmopara viticola), não aplicam fertilizantes e, em geral, não usam herbicidas e inseticidas.
O ENFOQUE DE SISTEMAS
Para compreender os processos ecológicos desses agroecossistemas tão particulares é necessário adotar um enfoque holístico e sistêmico. Esse enfoque permite identificar, a partir da definição dos limites do sistema, as entradas e saídas do mesmo, assim como os seus componentes e as interações entre eles (Hart, 1985). Em geral, o estudo dos sistemas agrícolas se baseia na análise isolada de componentes (solo, cultivo, plantas invasoras, insetos-praga, doenças) e, poucas vezes, busca-se entender quais são as interações que existem entre eles. Essa visão limitada é assinalada por vários autores como forte obstáculo para o entendimento do funcionamento do sistema como um todo.
Várias visitas às propriedades e entrevistas com os produtores foram feitas para conduzir a análise dos vinhedos. Também foram realizados encontros com o grupo de produtores com a finalidade de conhecer a percepção deles sobre o funcionamento de seus sistemas. Diferentes aspectos dos ciclos de nutrientes dos vinhedos foram debatidos com os viticultores, entre eles: a reciclagem da biomassa vegetal, o aporte de nutrientes do rio, o papel da cobertura vegetal e, de forma mais específica, a diferença entre a disponibilidade de nutrientes para as plantas e o conteúdo total de nutrientes no solo.
a) A ciclagem da biomassa vegetal
Um dos temas discutidos com os produtores foi o que ocorre quando eles deixam os resíduos provenientes do corte da cobertura vegetal, da poda e da desbrota da videira sobre o solo das áreas de cultivo. Para vários viticultores, o corte periódico da cobertura implicaria na entrada de nutrientes à área de cultivo. Para ajudar a esclarecer esse assunto, delimitamos fisicamente o sistema, tendo definido a parcela do vinhedo, com seus respectivos limites superiores, inferiores e laterais, como unidade de análise. Para facilitar a visualização dos fluxos de nutrientes, utilizou-se um esquema simplifica- do (figura 2), a partir do qual os agricultores chegaram à conclusão de que a biomassa da vegetação espontânea e do cultivo nada mais faziam do que reciclar os nutrientes já existentes no sistema. Portanto, não de- viam ser consideradas como insumos externos que possuem a capacidade de recuperar os nutrientes exporta- dos com a colheita da uva.
b) O aporte dos nutrientes do rio
Nas conversas com os produtores, ficou claro que eles não compreendiam bem qual era o papel do sedimento proveniente do rio em relação ao ciclo de nutrientes. Utilizando um diagrama simplificado do sistema, percebeu-se que os aportes do rio constituíam insumos externos de nutrientes. Dessa maneira, esse fluxo poderia sim ser contabilizado como uma entrada no balanço de nutrientes do sistema. Mas ainda faltava avaliar se esse aporte compensava as saídas de nutrientes causadas pela colheita. Para isso, foram coletadas amostras do sedimento do rio e determinou-se o conteúdo total de nitrogênio, fósforo e potássio. O balanço de nutrientes apontou para um saldo positivo de aproximadamente 30 quilos de nitrogênio, 88 quilos de fósforo e 46 quilos de potássio por hectare a cada ano. Ou seja, a quantidade de nutrientes trazidos com as enchentes é superior à quantidade extraída na colheita das uvas.
Já os sistemas localizados nas encostas, por não estarem sujeitos às enchentes periódicas, não recebiam os nutrientes provenientes do rio. Mesmo assim, os produtores não consideravam necessário fertilizar, já que por tradição essa prática nunca foi adotada. Por essa razão, os balanços de nutrientes nesses sistemas apresentaram um saldo negativo. Com esses resultados, foi possível refletir com os produtores sobre a necessidade de reposição dos nutrientes exportados do sistema de acordo com as condições ambientais específicas do local, de forma a evitar que o sistema fique comprometido pela perda de nutrientes a cada colheita.
c) O papel da cobertura vegetal
Outro aspecto analisado junto com os viticultores foi o papel que a vegetação espontânea exerce nos ciclos dos nutrientes. Alguns produtores afirmavam que, se não aportasse nutrientes ao sistema, a cobertura não seria necessária. Outros produtores, entretanto, assinalaram que a cobertura “alimenta o solo”. Em grande medida, isso é verdade, uma vez que ela fornece biomassa, que é fonte de energia e nutrientes para os organismos heterótrofos do solo (macro-, meso- e microfauna). De fato, os solos com alta atividade biológica apresentam maiores taxas de decomposição da matéria orgânica, o que resulta, indiretamente, numa maior disponibilidade de nutrientes para as plantas. Essa maior atividade biológica, contudo, não aumenta a quantidade de nutrientes no sistema, somente aumenta a porcentagem de nutrientes assimiláveis pelas plantas do total já existente no sistema. Outro papel atribuído à cobertura vegetal foi o da retenção temporária dos nutrientes que não são aproveitados pelo cultivo. Ao ficarem retidos na biomassa das plantas espontâneas, evita-se que os nutrientes sejam perdidos nos processos de lixiviação. Essa função é essencial nesse tipo de solo que inunda e que apresenta oscilações do lençol freático perto da superfície.
d) Disponibilidade de nutrientes e conteúdo total (ou estoque)
Quando o tema do aumento da disponibilidade de nutrientes foi abordado nos debates com os produtores, foi necessário realizarmos um aprofundamento sobre o assunto. Esclareceu-se que os nutrientes disponíveis são apenas os que estão dissolvidos na água do solo e representam somente uma pequena parcela dos nutrientes totais do solo. A maior parte deles encontra-se numa forma que as plantas não podem absorver diretamente. Essa parte indisponível constitui o que se chama de reserva. Já o conteúdo total de nutrientes no solo, ou estoque, é a soma dos nutrientes disponíveis com os de reserva.
Outra noção apresentada aos agricultores foi a de ciclos de nutrientes, em particular o fato de que parte dos nutrientes de reserva se tornam disponíveis quando as plantas espontâneas ou as espécies cultivadas os extraem do solo. Com o retorno da biomassa das plantas espontâneas e dos cultivos após a roçagem, as podas e outros manejos, os nutrientes são devolvidos ao solo. A maior parte desses nutrientes devolvidos passa a formar uma reserva no solo associada à matéria orgânica. Assim, somente os nutrientes que são extraídos com a colheita são perdidos do sistema. Enfatizou-se novamente que, nos sistemas da região baixa, o sedimento do rio restitui os nutrientes e permite manter o seu conteúdo total nos vinhedos.
Todos esses esclarecimentos fizeram com que os produtores compreendessem que para manter a produção a longo prazo é importante conservar o conteúdo total de nutrientes no sistema e que os nutrientes disponíveis somente são aproveitados no curto prazo.
CONHECIMENTO TRADICIONAL OU PRÁTICA TRADICIONAL
O trabalho com o grupo de produtores deu origem a uma série de questionamentos sobre a relação entre o conhecimento tradicional e a existência de uma racionalidade ecológica no manejo dos agroecossistemas, tal como é indicado na literatura especializada em Agro- ecologia. Por meio desse trabalho relacionado ao manejo dos nutrientes, foi possível demonstrar que o processo de coevolução dos agricultores com o meio natural em que produzem contribui para o desenvolvimento de práticas de manejo dos agroecossistemas adaptadas às condições ambientais particulares do local. Isso confirma, portanto, a existência de uma racionalidade ecológica nos manejos tradicionais (Toledo, 1993).
Os estudos nos vinhedos de Berisso revelaram que, apesar de os cultivos nas partes baixas apresentarem maior sustentabilidade ecológica (Abbona et al, 2007), os produtores nem sempre sabem por que optaram pelo manejo que realizam. No caso particular de Berisso, os produtores mais idosos conhecem as razões que estão por detrás do emprego de algumas práticas. Já os mais jovens, que herdaram essas práticas dos pais, em geral desconhecem os motivos. Esse fato sugere uma diminuição da capacidade de adaptação ao ambiente, uma espécie de erosão cultural, que se manifesta claramente quando os vinhedos são implantados nas encostas. Isso mostra que os agricultores tentaram reproduzir o manejo tradicional adotado nas partes baixas em ambientes que possuem condições ecológicas distintas. Com base no método de “tentativas e erros”, talvez os produtores no futuro acabem incorporando algumas técnicas de reposição de nutrientes que permitam manter a fertilidade dos solos dos vinhedos das encostas, substituindo o trabalho que as enchentes realizam nos solos das partes baixas da paisagem. Contudo, é importante entender que o erro significa quedas na produtividade ou mesmo perda total da produção. Portanto, cabe ressaltar que é o entendimento dos princípios ecológicos subjacentes às práticas de manejo que permiti- rá minimizar essas conseqüências negativas e reduzir o tempo de adaptação às novas condições.
Por essa razão, é necessário fazer um esforço sistemático para que os princípios ecológicos dos manejos sejam compreendidos, mesmo quando as experiências são bem-sucedidas. Concentrar esforços nesse sentido é mais importante do que conformar-se com a simples difusão de novas técnicas. O caso dos produtores de Berisso é um bom exemplo da relação existente entre as práticas de manejo sustentável dos agroecossistemas e o saber dos agricultores, relação esta bastante enfatizada e valorizada pela Agroecologia. A compreensão desses aspectos é condição fundamental para que se avance no desenho e manejo de agroecossistemas sustentáveis.
CONTRIBUIÇÃO DESTE ENFOQUE AOS ATORES DO PROCESSO
A partir da experiência em Berisso foi possível perceber mudanças na atitude dos produtores. Alguns deles se mostraram satisfeitos por conseguirem aprofundar alguns conhecimentos. Por exemplo, ao entenderem por que as plantas espontâneas são um “alimento para o solo”. Outros viticultores se motivaram e demonstraram interesse em observar e experimentar inovações. Em certa ocasião, um produtor experimentou não colocar sedimentos do rio em algumas parreiras e comprovou que elas tiveram menor crescimento que aquelas que receberam os sedimentos. Os produtores mais jovens, que antes percebiam o rio como um problema, começaram a valorizar as enchentes e a sua função de tornar a produção dos vinhedos mais estável.
Esse enfoque permitiu que os extensionistas e os pesquisadores adquirissem a compreensão de que o manejo tradicional dos vinhedos nas partes baixas assegura sua sustentação a longo prazo. Isso porque a reciclagem de nutrientes é otimizada com o manejo e porque existe um equilíbrio entre a extração e o aporte de nutrientes ao sistema. O enfoque sistêmico foi uma ferramenta imprescindível para esse fim.
Esteban Abbona
Faculdade de Ciências Agrárias e Florestais da UNLP
[email protected]
Santiago Sarandón e Mariana Marasas
Comissão de Pesquisa Científica da Província de Buenos Aires
Referências Bibliográficas:
ABBONA, E. A.; SARANDÓN, S. J.; MARASAS, M. E., ASTIER, M. Ecological sustainability evaluation of traditional management in different vineyard systems. Agriculture, Ecosystems and Environment, Argentina, n.19, p. 335-345, 2007.
HART, R. Conceptos básicos sobre agroecosistemas. Costa rica: Centro agronómico tropical de investigación y enseñanza, 1985. Serie material de enseñanza, n. 1. 159 p.
MARASAS M; VELARDE, I. Rescate del saber tradicional como estrategia de desarrollo: los viñateros de la costa. Leisa. v. 16, n. 2, 2000.
TOLEDO, V. M. La racionalidad ecológica de la producción campesina. In: Sevilla-Guzmán; MOLINA, González de. Ecología, campesinado y historia. Madrid: Ed. La piqueta, 1993. cap. 5, p. 197-218.
Baixe o artigo completo:
Revista V4N1 – O manejo dos nutrientes pelos viticultores de Berisso: um exemplo bem-sucedido da aplicação de princípios ecológicos