Nos últimos tempos, temos observado o fortalecimento da Agroecologia em vários setores, inclusive na pesquisa científica. O que já se pronunciava nos movimentos sociais e nas ONGs, ganhou espaço em ambientes acadêmicos, bem como em instituições e políticas públicas. A recente realização do 4º Congresso Brasileiro de Agroecologia, a criação da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), sua atuação junto à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e o lançamento do Marco Referencial em Agroecologia pela Embrapa, juntamente com iniciativas de universidades e empresas estaduais de pesquisa, sustentam esta afirmação.
Os textos aqui publicados tornam evidentes que a pesquisa em Agroecologia tem dimensões que extrapolam o viés produtivista que domina o enfoque da investigação científica convencional. Eles apresentam casos concretos de construção do conhecimento agroecológico por meio da interação entre a pesquisa científica e processos locais de desenvolvimento rural.
O relato da experiência do Vale do Jequitinhonha, do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica e da Universidade Federal de Lavras aborda algumas dessas dimensões. Por exemplo, o problema da tradução ou da mediação entre ambiente acadêmico e agricultores revela a recorrente falta de articulação entre os conhecimentos empíricos e a ciência. Além disso, faz referência à inadequação metodológica, o que compromete a aproximação de atores e saberes. Enfrentando essas dificuldades, a experiência aponta para o aumento da cidadania, obtido pela coerente articulação metodológica e adoção de estratégias tecnológicas apropriadas.
O texto sobre a experiência da cooperativa Ecocitrus e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) também cita a falta de articulação entre os setores produtivo e de pesquisa agropecuária, a insuficiência dos métodos convencionais de pesquisa e a necessidade do uso de metodologias participativas para apreender a complexidade dos sistemas agroecológicos. Relata ainda o esforço na busca de soluções tecnológicas, principalmente no campo do controle biológico de insetos-praga e doenças.
A parceria multinstitucional liderada pela Embrapa Clima Temperado se sustenta no protagonismo construído com a criação do Fórum da Agricultura Familiar e na influência dos próprios agricultores familiares nas políticas de apoio e na consolidação da Agroecologia na região sul do Rio Grande do Sul. O conteúdo da experiência se baseia em princípios teóricos, passando pelas questões social, metodológica e tecnológica.
Em contexto sociocultural muito diferente do nosso, a experiência da ONG chinesa Centro para Biodiversidade e Conhecimento Tradicional (CBCT) aborda a dificuldade de integração da criação de animais com outras atividades, um problema relevante na Agroecologia. A descontinuidade de programas, projetos e políticas e o desconhecimento de tecnologias existentes por aqueles que deveriam ser seus usuários são alguns obstáculos freqüentes que também são enfocados no artigo. O texto mostra como o emprego de processos participativos pode aproximar os programas públicos das necessidades dos agricultores.
Já o relato da Universidade Veracruzana, no México, menciona o paradigma agroecológico, mas está muito mais voltado para as questões tecnológicas. Em comum com as outras experiências, a busca de processos participativos como referência para a construção de novas realidades.
Outra experiência mineira, envolvendo o Centro de Tecnologias Alternativas e alguns setores da Universidade Federal de Viçosa, traz uma importante contribuição ao debate sobre inovação agroecológica ao revelar um aspecto ainda comum em alguns programas: a tentativa de desenvolver e implementar tecnologias alternativas lançando mão de metodologias convencionais. No caso relatado, as instituições parceiras superaram essa limitação ao promover reajustes metodológicos para a realização de pesquisas científicas articuladas a processos locais de desenvolvimento rural. A experiência revela como às vezes é necessário (e possível) relativizar o método para intensificar a participação dos agricultores e, assim, aumentar o rigor do processo de pesquisa.
Uma questão até certo ponto comum às experiências aqui apresentadas é que elas partiram de iniciativas isoladas de grupos ou pessoas para gradativamente consolidarem a institucionalização, o que remete a uma estratégia essencial para o avanço da Agroecologia: a adesão de técnicos e especialistas que possuem conhecimentos pertinentes, mas que ainda não comungam da causa agroecológica. Para isso, são necessárias rupturas institucionais e individuais.
Como reflexão teórica, a partir dos relatos aqui apresentados, mas também como contribuição para outras experiências, é importante não esquecer que a pesquisa em Agroecologia contém dimensões epistemológicas, metodológicas, sociológicas e tecnológicas.
Em primeiro lugar, devemos atentar para a dimensão epistemológica. Os princípios de correntes filosóficas como empirismo, racionalismo e positivismo, que orientam a pesquisa clássica, são insuficientes na Agroecologia, onde não existe a busca de verdades científicas nem de princípios universais para a produção e circulação de conhecimento. O processo científico é visto como construção social e, portanto, não pretende deter o monopólio sobre o conhecimento válido. São os processos participativos que resgatam os saberes dos agricultores, articulando-os com o ambiente científico, e constituem a base do conhecimento agroecológico.
Outra dimensão a considerar é a metodológica. O locus da pesquisa agroecológica não se restringe aos laboratórios e campos experimentais. O conjunto de técnicas e métodos de investigação não se limita ao estatuto das ciências exatas ou naturais. Nesse tipo de enfoque, é necessário pluralismo metodológico, com princípios da pesquisa participativa e de outras correntes das ciências humanas. Não basta o domínio sobre as regras e técnicas para produzir resultados científicos. É necessário realizar o texto no contexto, ou seja, trazer o processo para o meio real, onde as coisas acontecem. Essa dimensão remete a outra: a sociológica. Como não existe conhecimento neutro e desinteressado do mundo, os atores sociais são sempre os protagonistas. Portanto, a pauta dos projetos deve partir deles e não da oferta de especialistas. Para que isso ocorra, são necessários arranjos locais, como demonstram as experiências aqui relatadas. Outra dimensão é a tecnológica. Para que avanços tecnológicos na Agroecologia aconteçam, é preciso superar várias lacunas de conhecimento no campo da fisiologia, da microbiologia, da bioquímica, entre outras, que explicam fenômenos ecológicos nos agroecossistemas. Outro grande desafio é suprir a necessidade de insumos adequados ao novo formato tecnológico. A tarefa da pesquisa é justamente descobrir ou validar insumos que viabilizem a independência dos agricultores e que não representem apenas uma mera substituição de pacote tecnológico, o que tem ocorrido em alguns casos. É necessário pesquisar práticas de agricultores, assim como iniciativas fomentadas empiricamente por organizações de desenvolvimento. Além disso, é preciso promover adaptações de tecnologias desenvolvidas em outros contextos, sintetizando inclusive aquelas produzidas pela pesquisa convencional. Assim, ainda que a pesquisa em Agroecologia dependa de base epistemológica, metodológica e sociológica definida e aceita, a base tecnológica não pode ser negligenciada, pois é nesse campo que os agricultores que iniciam a transição agroambiental depositam mais expectativas e apresentam mais carência.
João Carlos Costa Gomes
chefe-geral e pesquisador da Embrapa Clima Temperado
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Revista V3N4 – As muitas dimensões da pesquisa em Agroecologia