Jorge Arnaiz Perales e Martha Torres
A população da bacia do rio Madre de Dios, distrito homônimo ao sudeste do Peru, na região amazônica, está constituída majoritariamente por imigrantes recém-chegados das zonas altas andinas de Cuzco, Puno e Apurímac, que foram para esse local atraídos pelo ouro que se encontrava nas margens do rio. O ouro proporcionou algumas fortunas para os primeiros exploradores, mas foi se esgotando rapidamente e, para a maioria dos imigrantes, sua extração não constituiu mais do que uma forma de sobrevivência. Em muitos casos esses colonos se dedicaram a outras atividades, como a extração de madeira e a caça, explorando intensivamente os recursos pela falta de conhecimento sobre como manejá-los. Nessas comunidades a agricultura tem sido sempre uma atividade de segundo plano, destinada ao auto-abastecimento de alguns produtos, como a mandioca (Manihot esculenta) ou as bananas (Musa spp.), e utilizando o sistema de roça e queima de parcelas, as quais são aproveitadas por curtos períodos.
O estabelecimento definitivo nessa região começou com a chegada dos primeiros colonos mineiros à localidade de San Juan Grande, nos anos 1960. Desde então, os habitantes viram decair progressivamente seu nível de vida, devido ao esgotamento dos recursos, tanto os minerais (ouro) quanto a madeira e as peles que obtinham do bosque, em razão, principalmente, do seu uso irracional. Nesse contexto, surge a necessidade de conhecer e manejar melhor os recursos disponíveis que permitam às comunidades se assentarem definitivamente e aspirarem por uma melhor qualidade de vida. Isso inclui manejar adequadamente o solo e aumentar a produtividade das terras que já sofreram intervenção ou que foram degradadas, como sítios abandonados, terrenos baldios e áreas afetadas pela extração do ouro.
A FLORESTA DAS CRIANÇAS
A comunidade de Boca Amigo, situada na confluência dos rios Madre de Dios e Los Amigos, é representativa pelo número de imigrantes dedicados tanto ao comércio quanto à mineração. Ali, a Associação pela Infância e seu Ambiente (Ania) vem realizando há três anos um projeto-piloto de educação ambiental, conhecido como BoNi, o Bosque de los Niños (a Floresta das Crianças). O BoNi consiste em um terreno que os adultos entregam às meninas e meninos para que estes o manejem e adquiram conhecimentos, habilidades e valores que promovam o aproveitamento sustentável dos recursos naturais e culturais. O projeto divide o trabalho em três componentes principais: um de socialização e saúde ambiental (que inclui uma área de recreação, um “curral ”como lugar de reunião e a instalação de banheiros e silos), um componente de autogestão e um de recursos naturais, com o qual se pretende que as crianças e seus pais manejem os próprios recursos.
Com o componente de manejo de recursos naturais do BoNi, as crianças implementam uma parcela agroflorestal, sendo capacitadas com técnicas agroecológicas que as permitam maximizar a produtividade da terra e, junto com isso, fortalecer sua capacidade de ler e escrever, sua lógica matemática e seu senso crítico. A implementação da parcela também busca valorizar esse processo e criar uma fonte de alimentação mais nutritiva. Tudo isso responde diretamente aos objetivos do projeto, que pretende validar essa experiência-piloto para assim promover sua aplicação em outras áreas da Amazônia, adaptando o BoNi a outros ecossistemas do país (e assim criar a praia das crianças, o vale das crianças ou o lago das crianças), e áreas urbanas e suas periferias.
COMO SE FAZ?
A parcela agroflorestal consiste em uma área cercada de aproximadamente 900m, que fica sob a responsabilidade de todas as crianças participantes. Dentro da mesma, existem parcelas individuais de 12m destinadas a cada participante. Há também uma área comum que serve como viveiro, para a preparação de composto orgânico e depósito de materiais.
No manejo das parcelas, participam as crianças que cursam o ensino fundamental no colégio local e também os pais e irmãos mais novos, como uma forma de envolver toda a comunidade na educação. As crianças são incentivadas pelo professor (o sistema educativo é unidocente e reúne mais de uma série, por haver na comunidade somente 12 alunos entre 6 e 13 anos) e pelas coordenadoras do projeto a participarem de forma ativa nas tarefas das parcelas, seja organizando a irrigação, a retirada das ervas invasoras, a semeadura em viveiros e todas as demais atividades. Tanto as crianças quanto os pais estão organizados em comitês, o que facilita a coordenação dessas atividades, assim como a realização de conversas e ações de capacitação por especialistas no tema.
O QUE SE PROMOVE?
Na parcela agroflorestal, as crianças são estimuladas a valorizar as plantas locais e a utilizar técnicas e insumos agroecológicos que as permitam cumprir com nossos objetivos. Ao mesmo tempo, são promovidos também os valores de solidariedade e do trabalho.
A valorização das espécies locais ou regionais se realiza por meio do plantio de árvores ou arbustos que irão proporcionar sombra, proteção e, em alguns casos, fertilização na parcela. As plantas mais usadas são biribá (Rollinia mucosa), cupuaçu (Theobroma grandiflorum), araçá-boi ( Eugenia stipitata ), caju ( Anacardium occidentale), cubiu (Solanum sessiliflorum ), “shimbillo” e “pacae ”( Inga spp. ) –esses dois últimos como frutos e fertilizantes. Todas essas espécies estão ganhando importância na região e têm, em alguns casos, um bom potencial para a industrialização, tal como demonstram as experiências brasileiras com o cupuaçu ou o caju. Utiliza-se, também, no estrato arbóreo plantas exóticas, como o limão galego (Citrus aurantifolia) e a laranja (Citrus sinensis).
Como forma de incentivar o cuidado dessas espécies, cada criança tem em sua parcela pelo menos uma árvore planta- da, que faz parte do programa “A árvore da minha vida”. Esse é um programa no qual se registra o “nascimento” da árvore em aula. Isso se dá através de um jogo e, com o tempo, passa a ser possível acompanhar o crescimento, o número de folhas, se dá frutos ou se apresenta alguma outra característica particular. Todas as espécies em suas parcelas são identificadas com placas.
Além das árvores, várias hortaliças são plantadas e os resultados, avaliados pelas mesmas crianças que, dessa forma, sabem quais sementes pedir aos coordenadores em uma próxima ocasião. Para essas plantações, as crianças aprendem diferentes técnicas agrícolas em cada fase do processo. Durante a preparação das mudas é feita uma mistura do solo da horta com areia do rio e terra do morro. Estas são recolhidas em carrinhos pelas crianças, que recebem um número igual de bolsas para plantio, junto com as sementes que elas pedem de acordo com seus resultados na safra anterior. Cada criança é responsável por regar as bolsas e cuidar delas até o momento do transplante.
Ao preparar o solo, para cada parcela é trazida terra rica em nutrientes proveniente do bosque. Nesse momento se explica às crianças sua importância, mostrando também que, quando houver composto orgânico suficiente, isso não será mais preciso. Coloca-se também cinza ou ninhos de cupins trazidos dos arredores para corrigir a acidez e introduzir minerais; são incorporadas ervas invasoras à mistura. Tudo isso é feito por cada criança em sua parcela e pelos coordenadores na área de amostragem. Finalmente, as crianças aprendem a fazer canteiros altos e a cobrir o solo com ervas invasoras dos arredores, sendo explicado o propósito de cada tarefa. Para isso há aulas especiais de capacitação, pois preferimos não interferir no horário escolar. Essas aulas são dadas por especialistas, que visitam periodicamente o local e pelos voluntários ou coordenadores, quando capacitados para isso. Os professores estimulam e orientam os alunos nesse processo, mesmo fora de seus horários habituais.
As crianças transplantam as mudas que necessitam e semeiam outras diretamente no campo. Elas mesmas se encarregam de arrancar as ervas invasoras e de regar suas plantas, seja separadamente ou em grupo, junto com os coordenadores que supervisionam todo o processo e incentivam a participação dos que estão descuidando de suas parcelas. Como fertilizante, está sendo usada a terra descansada proveniente dos “eco-silos”– pequenos depósitos domiciliares de composto orgânico, com capacidade de um metro cúbico, para coletar o lixo orgânico e transformá-lo em adubo a ser utilizado nas parcelas. Uma função importante desses eco-silos consiste em melhorar as condições de saúde nas habitações, já que permitem coletar os excrementos dos animais, o que é desperdiçado e o que fica nos pátios ou muito próximo às casas, lugar onde as crianças brincam. A esse composto orgânico se adiciona o esterco, recolhido pela comunidade na outra margem do rio, onde se encontram algumas vacas. As crianças aprendem como preparar biofertilizante utilizando esterco e o rúmen de vaca como ativador. Para este último, pensa-se em usar um insumo mais disponível, que poderia ser as vísceras de alguns peixes herbívoros da região.
Em relação ao manejo das pragas, ensina-se às crianças a diferenciar os insetos que são benéficos dos danosos, pois os benéficos realizam o controle natural das pragas que aparecem na parcela, basicamente compostas por lepidópteros e alguns afídeos. Apesar das plantas que poderiam ser usadas como biocidas serem abundantes na região, não se tem trabalhado com elas. Várias crianças que participam desse projeto têm hortas nos morros onde replicam essas experiências que, com o tempo e mais organização, poderiam converter-se em uma importante fonte de recursos para suas famílias e para a comunidade.
O QUE VEM DEPOIS?
Com a parcela agroflorestal do BoNi, busca-se dar às crianças as bases de uma agricultura sustentável. Como parte do projeto, são promovidos o turismo social, a produção de peças artesanais e, entre outras atividades, a piscicultura. Mas para a Ania os objetivos vão muito mais longe. A Associação considera que uma sociedade sem valores e sentido de responsabilidade social e ambiental não será sustentável, e que é na infância que se desenvolvem esses valores e atitudes. As formas como os recursos naturais são utilizados e os valores que afloram no processo influenciam o desenvolvimento da criança e a sua relação com o ambiente. Para aquelas que vivem em zonas rurais, o maior impacto será pelas atividades produtivas que irão realizar; para os que vivem na áreas urbanas ou periferias, será pelos hábitos de consumo que irão adotar. Por isso, torna-se imprescindível que as crianças participem na conservação da natureza, compreendam que ela sustenta suas vidas e tomem decisões que as façam cuidarem dela.
Até meados do ano 2004, mais de 280 hectares de terras foram entregues a aproximadamente 700 crianças em sete localidades de diferentes regiões do país. A forma com que isso vem sendo feito varia de acordo com as circunstâncias de cada comunidade. O objetivo proposto é conseguir que, ao final desse ano, existam 500 hectares manejados com a participação de crianças na Amazônia e em outros ecossistemas do Peru. A visão da Ania é que as meninas, meninos e jovens do Peru, que representam 40% da população, participem do manejo sustentável de pelo menos 1% da superfície do território peruano. Dessa forma, a porcentagem de terras manejadas por crianças se converteria em um novo indicador de desenvolvimento sustentável para o país e para o mundo.
Jorge Arnaiz Perales
colaborador do projeto BoNi
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Martha Torres Cabrera
coordenadora do BoNi em Madre de Dios
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Baixe o artigo completo:
Revista V2N1 – A parcela agroflorestal das crianças em Madre de Dios