Qual a escala dos danos causados pela liberação desenfreada dos transgênicos no país? As empresas alegam que as sementes transgênicas são tão seguras quanto as convencionais. Os órgãos reguladores limitam-se a confirmar esse ponto de vista, transmitindo para a sociedade uma suposta sensação de segurança. O fato é que a contaminação das variedades crioulas de milho cresce a cada dia, irradiando impactos negativos sobre a vida e a história dos guardiões que preservam essas sementes e de suas comunidades, afetando o princípio da partilha, que anima feiras e festas de sementes por todo o país. A contaminação das sementes crioulas ameaça também o ciclo da produção e do consumo de alimentos saudáveis, chegando mesmo a bloquear a execução de políticas públicas estaduais e federais voltadas para a agricultura e a alimentação. Segundo relatório da Embrapa, a área estimada para a próxima safra de milho no país é de 16 milhões de hectares, 93% dos quais deverão ser semeados com cultivares transgênicas. Essa nova safra pode representar um novo ciclo de ameaças ao patrimônio genético e alimentar, caso a omissão prevaleça nas instâncias governamentais, o Ministério Público não intervenha urgentemente e as empresas do agronegócio continuem ditando a regra.
Para entender como ocorreu a contaminação do milho crioulo no estado e também para debater as potencialidades dos programas públicos de compra de sementes crioulas para o fortalecimento da agricultura familiar e a promoção da segurança alimentar, conversamos com Ivi Dantas, agrônoma do Centro Feminista 8 de Março (CF8), e com Alexandre Lima, secretário de Agricultura Familiar do estado do Rio Grande do Norte (Sedraf). Confira como foi essa conversa realizada por telefone.
Boletim – Como as sementes crioulas têm sido manejadas pela agricultura familiar no estado?
Ivi Dantas – O trabalho do CF8 está na região oeste do Rio Grande do Norte, principalmente com as mulheres e seus quintais. É uma região muito rica em termos de articulação social e política. A pauta das sementes tem permeado todo esse processo e está presente nos encontros regionais e estaduais para trocas e aprendizados sobre as sementes crioulas. Aqui temos uma grande diversidade de variedades crioulas de milho, feijão macassa, sorgo, arroz vermelho e cajueiro, adaptadas ao semiárido. Todas essas espécies fazem parte do programa do estado.
Boletim – Como foi construída a experiência do PAA sementes no estado e quais as motivações para implementar essa política de compra de sementes da agricultura familiar?
Alexandre Lima – A construção de um programa de sementes crioulas era proposta que já fazia parte do programa de governo da Fátima Bezerra. Entendemos que o tema da agrobiodiversidade é parte central de uma estratégia para o desenvolvimento rural. No primeiro ano de governo, já criamos então o Programa Estadual de Sementes Crioulas. Nossa principal inspiração foram as ações com sementes já desenvolvidas pela Articulação do Semiárido (ASA). Hoje são 74 casas de sementes no estado, que foi por onde começamos. Em paralelo, a Sedraf enviou projeto para concorrer ao edital nacional do PAA Sementes em parceria com a cooperativa Coofarn e organizações ligadas à ASA. Aprovamos proposta no valor de 492 mil reais. A Funai também aprovou projeto neste edital, e os dois projetos juntos chegaram a 60 toneladas de sementes. O passo seguinte foi iniciar um amplo processo de discussão com a sociedade civil para definir as espécies que entrariam e mobilizar as comunidades para multiplicar as sementes, considerando que o inverno, período chuvoso, já havia passado. Metade das sementes demandadas já estava em estoque com as famílias agricultoras. A Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa) e a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uergn) entraram na parceria e apoiaram atividades de formação sobre qualidade de sementes. A Ufersa realizou os testes de pureza, germinação e vigor das sementes e a universidade estadual fez os testes de transgenia no milho. As organizações da sociedade civil montaram uma rede de 23 campos de multiplicação de sementes, distribuídos em 13 municípios dos cinco territórios do estado, garantindo, pelo menos, 30% de participação de mulheres.
Boletim – Quais foram os principais desafios para a execução da política?
Ivi Dantas – Fácil nunca é, mas as pessoas aceitaram bem a proposta, pois já havia um processo de resgate das sementes a partir dos trabalhos da ASA. Os preços pagos pelas sementes eram justos e isso animou os agricultores e também as pessoas que iriam receber as sementes. Junto com o GT Biodiversidade da ASA, as organizações da sociedade, o poder público e as comunidades começamos a identificar onde havia volume de sementes, porque sabíamos que havia sementes domésticas, mas não sabíamos os volumes. A universidade apoiou os processos de formação. Depois veio o desafio de montar os campos de multiplicação, pois precisávamos aumentar o volume de sementes e as áreas de plantio precisavam ser irrigadas porque o inverno já tinha passado.
Alexandre Lima – O principal desafio foi já começar com um volume grande de 60 toneladas de sementes. Dificilmente teríamos conseguido implementar a ação sem a parceria com as organizações da ASA. A Secretaria ofereceu equipe para o apoio técnico.
Boletim – Como se deu a descoberta de que o milho estava contaminado? O que isso representou para as comunidades, tanto possíveis prejuízos econômicos quanto para o engajamento social e político?
Alexandre Lima – Foram cadastradas no MAPA 05 variedades de feijão macassa, 03 de milho, 01 de sorgo, 01 de arroz vermelho e 01 de caju (castanha), sendo que o milho foi testado antes de ser plantado nos campos de multiplicação. Em algumas das oficinas territoriais realizadas na etapa de mobilização, já foi possível detectar sementes contaminadas. Só foram plantadas sementes que deram negativo para a presença de transgênicos. Então a gente tinha uma certa garantia de isolamento porque, além dos testes prévios, os plantios foram feitos na entressafra, ou seja, na ausência de lavouras vizinhas. Não era de se esperar que a contaminação aparecesse nas sementes colhidas. Mas os resultados das análises moleculares feitas pelo laboratório do Ministério da Agricultura, em Goiás, apontaram um número grande de amostras contaminadas por transgênicos. Não conseguimos chegar na meta prevista que era de 15 toneladas de sementes de milho. A grande maioria do milho não foi comprada, uma vez que a Conab não compra semente contaminada por transgênico. Foi uma grande surpresa, porque mesmo as sementes de guardiões históricos e reconhecidos por suas caminhadas como defensores das sementes apareceram contaminadas.
Ivi Dantas – Esse foi de fato o momento mais dramático de todo o processo. As sementes que apareceram contaminadas nas atividades de formação já tinham sido descartadas. Fizemos os testes de fita. Foi uma situação muito delicada e difícil para nós que acompanhamos os grupos, e mais ainda para quem produz e acreditava que tinha uma semente crioula livre de transgênicos. Teve um campo de multiplicação das mulheres que também apareceu contaminado, quando a amostra foi enviada para o laboratório do MAPA. Foi bem difícil dar a notícia para elas, são muitas frustrações. Foram longos meses de dedicação. Era uma área coletiva, onde as mulheres iam de manhã e de tarde e se dedicavam ao manejo, irrigação, limpeza da área e a manutenção das cercas. Foram meses de trabalho dessas mulheres. E havia ainda a expectativa de geração de renda, pois era uma comercialização certa. No final de tudo, as sementes que você guardava há tantos anos acreditando que estava guardando e se alimentando de um alimento saudável vira um conjunto de incertezas. Pode ter acontecido algum problema com o teste da fita, mas nossa avaliação é que a maior probabilidade é que o teste da fita que a gente encontra no mercado não faz análise de todos os eventos transgênicos que estão presentes no estado.
Boletim – Depois dessa experiência mudou a avaliação em relação à importância de políticas de compras públicas de sementes crioulas?
Ivi Dantas – Consideramos que a política pública é necessária e eficiente, inclusive para superar as dificuldades identificadas. Estamos cultivando as sementes que não foram contaminadas e que puderam ser distribuídas. Estamos plantando as sementes das sementes crioulas. O sentido da política é alcançar mais pessoas e fazer multiplicações e distribuições ainda mais amplas no estado.
Alexandre Lima – Isso deixou muito claro que algo precisa ser feito. Não podemos simplesmente aceitar a situação, porque isso significa colocar em risco a diversidade genética da nossa alimentação, que foi historicamente produzida pelas famílias agricultoras do Rio Grande do Norte. Estamos buscando parcerias para entender melhor o problema e definir que tipo de solução o estado deve adotar. A determinação política está dada e é agir no sentido de proteger essas sementes. O problema já está diagnosticado, temos agora que traçar as alternativas para proteger essas variedades.
Boletim – Que aprendizados ficam?
Alexandre Lima – A expectativa das famílias para vender sementes é grande. O potencial para ampliar a aquisição de sementes também. Além disso, as análises de pureza, germinação e vigor feitas pelos laboratórios credenciados pelo MAPA confirmaram a qualidade das sementes crioulas. São sementes que estão dentro dos mesmos parâmetros que as sementes que as empresas fornecem. Não deixam nada a desejar em relação àquilo que as empresas fazem. Isso está demonstrado. Vamos continuar com esse Programa. Novo edital para compra pública de sementes será lançado este ano. Também vamos continuar trabalhando com a ideia de que cada território produz a sua semente. É uma espécie de circuito curto, porque as variedades cultivadas em cada território são diferentes. As sementes são distribuídas nos próprios territórios onde foram produzidas. Não são levadas de um território para outro.
Ivi Dantas – O principal aprendizado foi a construção coletiva entre sociedade civil e poder público. Isso precisa ser reconhecido e valorizado, especialmente quando lutamos tanto para a construção conjunta das políticas públicas. Tivemos várias organizações envolvidas, a Coofarn, instituição compradora, é uma cooperativa central que comprava de outras cooperativas menores. Isso demonstra a fortaleza da política. É muito importante também que as políticas garantam participação mínima das mulheres, porque seu trabalho nos roçados ainda é muito invisibilizado. Há uma narrativa muito forte de que semente não é o que você tem, mas o que você compra. É a ideia da produtividade. Pra enfrentar isso, é fundamental o envolvimento das pessoas nas comunidades para entender os sentimentos de cada um e a importância da manutenção e do resgate das sementes.