O alto preço dos adubos químicos e insumos agrícolas afeta a agricultura familiar. Tecnologias sociais e práticas de manejo tem apoiado a produção das famílias agricultoras.
Produzir alimentos, convivendo com as mudanças climáticas, nunca foi fácil para a agricultura familiar. E, nos últimos meses, tem sido ainda mais desafiador. O aumento dos custos de produção tem comprometido diretamente o campo, principalmente com a alta dos adubos químicos e insumos agrícolas, matérias-primas utilizadas em larga escala no país, principalmente pelo agronegócio, que produz mais commodities do que alimentos. Mas, será que esta situação também afeta a produção de alimentos pela agricultura familiar? A extrema dependência do Brasil em determinados produtos estrangeiros demonstra que sim!
A importação de adubos químicos e insumos agrícolas de diversos países, mas principalmente da Rússia, se intensificou a partir do fechamento de três fábricas de fertilizantes da Petrobras durante os governos de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), entre 2016 e 2020. Informações da Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda) exemplificam o cenário. Conforme os dados apresentados pela entidade, em 2021, das mais de 40 milhões de toneladas de fertilizantes consumidos no país, 85% foram importadas. Além disso, a parcela das importações na demanda interna de adubos e fertilizantes tem crescido ano a ano: em 2017, os importados representavam 76% do total.
Dados do Boletim Logístico da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) divulgados neste mês, demonstram que mesmo com a guerra entre russos e ucranianos, as importações brasileiras de fertilizantes em abril/22 atingiram 3,25 milhões de toneladas, cerca de 550 mil toneladas superior ao ocorrido no mês passado. Segundo a entidade, “apesar das sanções econômicas impostas por diversos países ocidentais contra a Rússia, o Brasil segue comprando fertilizantes do seu maior fornecedor, a Rússia”.
Fabio Junior Pereira da Silva, biólogo e assessor técnico da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, entidade que atua na conservação da agrobiodiversidade e das sementes crioulas na região centro-sul do Paraná, explica que esta situação vivida pelos agricultores familiares em relação à produção e aos altos custos dos insumos agrícolas, é resultado das constantes investidas do agronegócio, com o seu “desmodelo” produtivo pautado nas monoculturas e commodities, o controle dos recursos e os créditos produtivos.
“Para a agricultura familiar, essa crise se agravou muito a partir de 2020. O sistema do agronegócio vem há décadas encurralando os agricultores familiares, seja pelo crédito ou pelo mercado. E, com a pandemia esta crise que, na verdade, vinha se aproximando da agricultura familiar ganhou ênfase, pois não só os adubos duplicaram de preço, mas os insumos de maneira geral tiveram um aumento de mais de 150%”, explica Silva.
De acordo com ele, toda essa situação afeta também as famílias que produzem de forma agroecológica e orgânica. “A crise dos insumos não afetou somente os sistemas convencionais de produção, os agricultores que cultivam de forma orgânica e agroecológica também sofrem com os altos custos dos insumos. Um exemplo foi que assim que subiu o preço do NPK – Nitrogênio (N), Fósforo (P) e Potássio (K)-, os adubos orgânicos tiveram um aumento de 100%.”
Mesmo o governo brasileiro buscando atrelar os altos preços dos produtos à pandemia e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, Silva ressalta que isso não se justifica. “A verdade é que o Brasil tem um “gigante com os pés de barro”, ou seja, o agronegócio mais uma vez dá exemplo que não tem sustentabilidade e que os agricultores deste sistema dependem de tudo quem vem de fora, em especial os adubos”.
O assessor ressalta que os problemas causados pelo agronegócio nesse contexto, obrigam muitos agricultores a venderem suas terras, situação que acentua o êxodo rural, principalmente dos mais jovens. “O agricultor não tem como competir neste mercado de escala, ficando cada vez mais descapitalizado e encurralado por este sistema, onde em especial a juventude não vê como ficar na agricultura familiar e acaba indo trabalhar nas cidades. E ocorre que muitas vezes esta família tem que vender suas terras ou perdê-las para os bancos em função de dívidas causadas por este sistema e/ou por perda de produção, como ocorreu na safra 2021/2022 onde a seca ocasionou perda de até 90% em algumas áreas”.
Saídas para a crise – Com uma produção focada no cultivo diversificado, morar no campo é uma realização para o jovem casal de agricultores Everton Cleber Borges e Gislaine de França Ferraz, da Comunidade Campestre de Vieiras, do município de Palmeira, Paraná. “Nossa produção de alimento é tudo orgânica, nada vai veneno, só na base da enxada e do esterco, urina de vaca, citronela para espantar bichinhos. Temos porco, galinha, angolistas, pato, vacas, produzimos nosso arroz, feijão, milho, batata-doce, batatinha, pipoca, abóbora, soja; na horta temos de tudo, desde o repolho, a alface, pepino, ervilha, couve-flor, até o brócolis e pimentão. Também temos os remédios e as flores. Só compramos algumas coisas no mercado, como o trigo, açúcar, café e o sal”, comentam orgulhosos.
A partir da diversificação da propriedade, a família tem buscado implementar tecnologias sociais e práticas de manejo na produção de adubos para aproveitar a matéria-prima da propriedade e baratear os custos, garantindo principalmente sua autonomia em relação à compra de insumos externos. O caminho foi retomar uma experiência iniciada há 20 anos por diversas organizações de base da agricultura familiar na região centro-sul do Paraná e planalto norte catarinense. Na família Borges, a prática do adubo da independência (veja como fazer) tem se fortalecido através da nova geração, com o jovem casal, que já colhe os resultados.
“Minha lembrança do adubo é de ainda criança, quando tinha uns seis anos. Me recordo que tinha um grupo de produção orgânica na comunidade há muitos anos atrás, foi onde apareceu essa receita. Depois acabou o grupo e nós fomos plantar fumo, trabalhei com isso por 14 anos. Daí pegamos ora-pro-nóbis, não deu certo. Aí já tínhamos as vacas, fomos vendendo os bois e comprando mais vaca, daí surgiu a leiteria, tiramos leite. Há dois anos encontrei a receita novamente e comecei a fazer o adubo de independência. Desde então, já fizemos três receitas, cerca de 4 mil quilos foram jogados na terra. E estamos produzindo mais 2 mil quilos”.
Borges comenta que o resultado do uso do adubo da independência já pode ser visto na terra, nas roças, na horta e também no bolso. “Compensa muito fazer o adubo. Para fazer duas toneladas de adubo gasto cerca de R$800,00, uma tonelada de adubo químico sai R$5 mil. Fora que você não vai tá matando à terra, vai tá dando um alimento pra ela, porque a bactéria come a palhada e transforma o terreno em matéria orgânica. Já o químico não, onde ele cair mata os bichinhos e também a terra. Então, acaba ganhando nas duas pontas, no valor que você investe, na qualidade do produto que você colhe e também na matéria orgânica que fica na terra”.
Para Silva, a iniciativa da família Borges é um exemplo vivo que existem saídas para superar a crise e se manter na agricultura familiar. “Muitas famílias de nosso território – centro-sul do Paraná-, vem construindo ao longo de suas trajetórias processos que demonstram que existem sim alternativas para se manter na agricultura familiar com sustentabilidade, autonomia e geração de renda. Claro que não é um caminho fácil, mas é possível de se trilhar e construir uma segurança própria sem sofrer tanta influência deste mercado neoliberal, que não respeita fronteiras”.
Por fim, o jovem casal destaca que mesmo com as investidas e a propaganda constante do “Agro é Pop”, há muitas alternativas possíveis e saudáveis para as pessoas, o meio ambiente e toda a agrobiodiversidade. “O agronegócio fez uma lavagem na cabeça das pessoas, diz que só com adubo químico e sementes transgênicas que produz, eles fazem as pessoas pensarem que outra forma de produzir não dá certo. Mas não, dá certo, produz sim e muito melhor do que agro”.
História do adubo da independência – Famílias agricultoras que faziam parte do grupo “Alimentos para a Vida”, das comunidades de Arroio da Cruz e Terra Vermelha, no município de São Mateus do Sul, desenvolveram um adubo orgânico apelidado de adubo da independência, no início dos anos 2000. Esse grupo testou a experiência e começou a divulgar os resultados para outras comunidades.
Durante muito tempo o adubo foi fabricado em muitas comunidades da região centro-sul do Paraná e planalto norte catarinense. E, em cada lugar, ia ganhando um nome diferente, como: adubo dos colonos, adubo caseiro, super gordo, super adubo orgânico e adubo da independência. É interessante perceber que os agricultores e agricultoras usam os produtos que existem na propriedade, para diminuir os custos.
Por diversas razões, o feitio do adubo da independência, que usualmente era produzido de forma comunitária e adaptado às diferentes realidades e territórios, diminuiu. Com a crise atual, tanto da alta dos custos de produção quanto a liberação recorde de agrotóxicos, saídas alicerçadas em tecnologias sociais e inovações da agricultura familiar camponesa, de povos indígenas e comunidades tradicionais, se mostram como caminhos de superação e construção de projeto político para o campo, cidades, águas e florestas.
Texto e imagens Comunicação ReSA